A inteligência subordinada

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Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*

A inteligência artificial, quando submetida à lógica do capital fictício e da dependência estrutural, não democratiza – classifica. Seu uso crítico exige mais que adaptação: demanda ruptura. A universidade, espaço de pensamento lento e dissenso, deve resistir à tirania do quantificável, lembrando que sua missão não é produzir eficiência, mas significado

1.

O artigo de Claudinei Luiz Chitolina, publicado em 31 de julho de 2024 no site A Terra é Redonda, propõe uma reflexão inadiável sobre os impactos da Inteligência artificial nas esferas social, educacional e subjetiva da sociedade brasileira.

Longe de qualquer neutralidade contemplativa, o texto se inscreve com vigor no campo das disputas contemporâneas ao denunciar a ubiquidade da automação algorítmica e convocar o leitor a encarar os limites éticos, políticos e civilizatórios impostos pela racionalidade técnica. Esta contribuição, em espírito dialógico, busca expandir, desdobrar e tensionar os argumentos de Claudinei Chitolina, amparada por uma análise ancorada nas categorias de dependência estrutural, financeirização da vida e dominação tecnocrática da razão instrumental.

Desde suas primeiras linhas, o texto recusa a concepção reducionista da Inteligência artificial como mera ferramenta neutra cujo impacto dependeria exclusivamente de seu uso. A ênfase na variável da intenção humana ignora o cerne da questão: a técnica não é instrumento passivo, mas forma histórica de dominação.

Como demonstram Nancy Fraser (2022) e Leda Paulani (2021), a tecnologia digital contemporânea integra um projeto de captura que subordina tempo, saber e vida à lógica expansiva do capital fictício. A Inteligência artificial, nesse quadro, opera como instância ativa de disciplinamento social e reconfiguração das subjetividades.

No Brasil, país marcado pela condição estrutural de dependência, pensar a Inteligência artificial exige reconhecer que sua implementação não escapa às assimetrias históricas. Como ensinou Ruy Mauro Marini (2005), a dependência não é fase superável, mas lógica reprodutiva. Os modelos de linguagem, algoritmos e bases de dados são importados de estruturas epistêmicas do Norte global, reiterando a subalternidade cognitiva sob o disfarce da inovação técnica. A modernização aparece como atualização da exclusão.

Desse processo emerge o que se pode denominar colonialismo algorítmico. Importam-se tecnologias e, com elas, lógicas decisórias que não apenas ignoram, mas deslegitimam os repertórios locais de sentido. Como assinala Eleutério Prado (2022), o saber se converte em ativo intangível – forma de capital que circula por sua promessa reputacional e expectativa de valorização simbólica. A pesquisa transforma-se em mercadoria moldada às exigências dos mercados de métricas, ranqueamentos e algoritmos de avaliação.

2.

O capital simbólico, na acepção de Pierre Bourdieu, sofre mutação profunda: transmuta-se em capital reputacional. Seu valor passa a ser determinado por visibilidade digital, produtividade quantificada e reconhecimento indexado. A universidade, submetida a esses critérios, perde a capacidade de autorreflexão. A avaliação interna cede lugar a avaliações automatizadas, e a Inteligência artificial, longe de servir, governa.

As repercussões sobre o trabalho docente são brutais. O professor é reconfigurado como gestor de si, imerso em um regime de autovigilância contínua. O relatório do ANDES-SN (2023) indica que mais de 60% dos docentes sofrem com sintomas de exaustão. Como observa Byung-Chul Han (2022), a dominação contemporânea já não se impõe por coerção, mas por liberdade monitorada e internalizada.

O paradoxo é gritante: a Inteligência artificial, apresentada como solução para o cansaço docente, reforça o regime performativo. Delegando tarefas repetitivas às plataformas, transfere-se também a exigência de disponibilidade permanente. No ensino básico, os efeitos são ainda mais cruéis. O INEP (2023) revela que a carência de infraestrutura torna a introdução da Inteligência artificial um simulacro de inclusão. Onde faltam condições materiais, a Inteligência artificial aprofunda a exclusão e normaliza a precariedade como se fosse inovação.

Leda Paulani (2021) denomina esse processo de verticalização simbólica. A elite projeta os sistemas; a base executa, sem voz nem mediação. A “inclusão digital” converte-se em subordinação algorítmica. Os estudantes das periferias têm acesso a diagnósticos padronizados, enquanto os filhos da elite exploram ferramentas criativas. A Inteligência artificial, nesses termos, classifica – e classificar, nesse contexto, é sentenciar.

Nas universidades, o padrão se repete. Decisões relativas a financiamento, progressão e avaliação passam a ser mediadas por sistemas que privilegiam o quantificável. As humanidades, os saberes lentos, os territórios de dissenso e conflito são depreciados. A Inteligência artificial não promove democratização: ela normatiza, homogeneíza, enquadra.

O capital reputacional, como formulado por Eleutério Prado (2022), converte a universidade em plataforma de performance. A reputação, transformada em mercadoria, passa a ser o ativo mais valioso – não por seu conteúdo, mas por sua capacidade de circulação. O docente é diluído em funções administrativas, privadas de sentido e de escolha. As plataformas antecipam respostas, desqualificam o vínculo, anulam a escuta. O ANDES-SN (2023) aponta: há uma crise de sentido e de pertencimento.

3.

Bernard Stiegler (2009) compreende a técnica como fármaco – simultaneamente remédio e veneno. A Inteligência artificial pode, sim, organizar o cotidiano e aliviar tarefas. Mas, sob o império do capital fictício, ela expropria tempo, afeto e crítica. A governança algorítmica simula autonomia, mas reproduz controle. A planilha substitui o juízo pedagógico. Relatórios do Tesouro Nacional (2024) evidenciam o deslocamento: o financiamento público encolhe, enquanto a cobrança por desempenho cresce exponencialmente.

Ajusta-se, assim, o espaço público aos imperativos do mercado. Fraser (2022) e Paulani (2021) chamam isso de privatização simbólica: o Estado renuncia à garantia de direitos, mas impõe métricas e controles. A Inteligência artificial encena eficiência e mascara a precarização. A justiça epistêmica é silenciada diante do dado automatizado. O que se produz é um epistemicídio operado por algoritmos.

Recusar essa lógica não significa rejeitar a Inteligência artificial em si, mas negá-la como fetiche. Como advertiu Francisco de Oliveira (2003), o Brasil é especialista em criar ornitorrincos institucionais – formas híbridas de modernização e atraso. A Inteligência artificial pode integrar o projeto universitário, desde que submetida à democracia epistêmica e ao juízo crítico da coletividade.

A disputa é política. É preciso reivindicar outros sentidos para inteligência, saber e docência. Não se trata de negar a técnica, mas de redefinir sua finalidade. No Brasil financeirizado e estruturalmente dependente, a IA pode ser mais uma forma de subordinação — e por isso, há que resistir.

Resistir, aqui, é proteger o tempo de pensar. A universidade não deve ser eficiente: deve ser significativa. E isso, nenhuma IA é capaz de calcular. A escolha não é técnica. É política. E como toda escolha política, exige coragem, imaginação e tempo.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]

Referências


ANDES-SN. Relatório Nacional sobre Condições de Trabalho Docente nas Universidades Públicas. Brasília: Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, 2023.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

CHITOLINA, Claudinei Luiz. A inteligência artificial e os limites do humano. Periódico Digital, 31 jul. 2024.

FRASER, Nancy. Capitalismo canibal: como o nosso sistema devora a democracia, o cuidado e o planeta – e o que podemos fazer a respeito. São Paulo: Boitempo, 2022.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder. Petrópolis: Vozes, 2022.

INEP. Censo Escolar da Educação Básica 2023: resultados consolidados. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2023.

LOVINK, Geert. Extrema dependência: crítica das redes sociais em tempos de caos. São Paulo: Ubu, 2023.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2005.

OLIVEIRA, Francisco de. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

PAULANI, Leda Maria. Capitalismo em desencanto: crônicas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2021.

PRADO, Eleutério F. S. Valor, trabalho e capital fictício: ensaios de crítica da economia política. São Paulo: Outras Expressões, 2022.

STIEGLER, Bernard. Pour une nouvelle critique de l’économie politique. Paris: Galilée, 2009.

TESOURO NACIONAL. Execução Orçamentária da Educação Superior: 2015–2023. Brasília: Ministério da Fazenda, 2024.


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