A socialização da força de trabalho

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Por LINCOLN SECCO*

Prefácio do livro recém-lançado de Carmen Sylvia Vidigal Moraes

1.

É raro que hoje uma tese permaneça tanto tempo recôndita, enquanto transcorre uma importante trajetória acadêmica, sendo debatida e citada. A autora Carmen Sylvia Vidigal Moraes ingressou em 1969 na Universidade de São Paulo, teve uma formação eclética que era a marca da Faculdade de Filosofia. Estudou psicologia, educação, sociologia e escreveu uma tese de doutoramento que exigiu o concurso da história, o estudo da historiografia sobre o período republicano e a pesquisa paciente em fontes primárias.

A tese de 1990 teve uma banca notável e de outros tempos: Luiz Antonio Cunha, Sergio Micelli, Celso Biesiegel, Brasílio Sallum Júnior e Irene Cardoso. Seu título “A socialização da força de trabalho: instrução popular e qualificação profissional no estado de São Paulo – 1873 a 1934” anunciava um tema, um método e um compromisso: trabalho assalariado e educação; a abordagem marxista; e a preocupação com a educação dos pobres.

Por mais de dez anos a tese permaneceu inédita, numa época em que só um exemplar físico datilografado permanecia à disposição de consulentes. O livro que agora temos em mãos esperou 35 anos! Em 2003 houve uma pequena edição do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação, logo esgotada e transformada em raridade bibliográfica.

A reedição pela editora Lutas Anticapital é um prêmio para uma carreira de estudos e militância pela educação brasileira. O Brasil é um desses paradoxos em que a objetividade científica exige a tomada de partido quando se trata da educação pública. Estudá-la é defendê-la. A honestidade intelectual, como dizia Florestan Fernandes, consiste em afirmar nosso ponto de partida teórico e não em escondê-lo. Dessa maneira, a autora, nesse meio tempo, produziu conhecimento, formou pessoas e interveio nos grandes debates em defesa da escola pública.

A nova edição é um presente aos leitores. Trata-se de obra ímpar pelo rigor da pesquisa. Ela se nutre de mensagens presidenciais, anuários estatísticos, livros de matrículas e demais documentos de arquivo morto de antigas escolas paulistas. A bibliografia a um só tempo revela o extenso repertório da autora em sua fase inicial como doutoranda e o momento em que escreveu, quando ainda era essencial revisitar os clássicos do pensamento social brasileiro e da produção acadêmica. Infelizmente, essa não é mais a regra.

2.

A autora trata de um momento delicado da história brasileira na transição do escravismo ao assalariamento da força de trabalho. E nesse processo, seu ângulo é privilegiado: como a educação foi pensada e posta em prática pelas elites face às necessidades de disciplinamento e formação profissional da classe trabalhadora. Para isso, analisou liceus, escolas normais da maçonaria, a atuação pedagógica da Liga Nacionalista, os seminários, institutos disciplinares, cursos profissionais e a própria dinâmica do mercado de trabalho.

Carmen Sylvia revela profundo conhecimento do período histórico que marcou a transição das relações de trabalho na economia brasileira. O livro transita da infraestrutura econômica à superestrutura política e intelectual sem que perca de vista que esses recortes analíticos compõem um todo, estruturado por relações de força, posições de poder e discursos ideológicos. Onde tradicionalmente se viam oposições de concepções de educação entre dois grupos das classes dominantes, a autora matiza os antagonismos, disseca as propostas e dissolve grande parte das diferenças.

Entre os reformadores e os “carcomidos” do Partido Republicano Paulista encontramos mais aproximações do que divergências programáticas. Na reforma de 1920, por exemplo, não havia duas concepções antagônicas e as querelas tinham origem nas disputas de facções no interior da oligarquia paulista.

O livro desvenda as redes de negócios que envolviam o Liceu de Artes e Ofícios. Ao lado da descrição da situação social de dirigentes das escolas, há também exemplos de resistência. Nem toda escola foi pensada para destinar obrigatoriamente uns ao mando e outros a posições subalternas no mundo do trabalho, mediante a formação profissional unilateral e especializada.

Onde nascia a hegemonia daquela classe dominante paulista? Na escola – fábrica. Claro que ela também se fundamentava no progresso material, na economia cafeeira, na infraestrutura pública (estradas, segurança, serviços de saúde, universidades, escolas). As elites dos pequenos e médios municípios de São Paulo, como as de outros estados, frequentam espaços de sociabilidade centenários como sindicatos empresariais e associações de ruralistas, a maçonaria, Rotary, clubes esportivos e outras instituições, em geral masculinas (particularmente na época tratada neste livro).

Há tempo se estabeleceu um poder moderador paulista na vida nacional, hoje abrangendo um espaço que vai além das fronteiras estaduais. Trata-se da liderança conservadora de uma classe social poderosa, baseada numa região econômica dominante, mas incapaz de fazer sacrifícios corporativos para produzir consensos majoritários. Também não possui armas para impor o seu programa, como aliás tentou em 1932. Não podendo constituir uma hegemonia nacional, sobra-lhe a força política e cultural que ou modera ou desestabiliza a ordem, abrindo o espaço para rupturas militares e fascistas. Integra esse poder de atração e difusão ideológica uma rede de escolas e instituições superiores. Escolas hoje precárias, é claro.

Carmen Sylvia revela que desde o século XIX a elite paulista era dotada de projeto próprio na área da educação. Ela soube gerar e gerir um programa de modernização para adequar a força de trabalho à emergência da sociedade classes; ainda no período monárquico buscou adaptar a instrução escolar à expansão das relações urbano-comerciais. Sua sagacidade foi ao ponto de inventar um passado democrático e reformista em que cabiam idealizadores de uma escola aberta contra uma oligarquia incapaz de entender e aceitar projetos do seu próprio interesse.

Carmen Sylvia mostrou que o projeto foi sim implementado por meio de uma escola que se expandiu, mas manteve uma marca elitista e excludente. A escola única era diversificada, mas hierárquica e permeada pelos ideais de racionalização administrativa, pelo taylorismo e o fordismo tão ao gosto de intelectuais industriais como Roberto Simonsen.

O livro finaliza num momento marcante. Em 1932 o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova pretendia “servir não aos interesses de classes, mas aos interesses do indivíduo”; em nome da Constituição, a oligarquia paulista levantou-se em armas contra o governo provisório; e no mesmo ano o paulista Plínio Salgado lançou o manifesto integralista. Em 1934 se instalou a Constituinte e a USP foi fundada. Descortinava-se um novo tempo para a educação em que as classes dominantes iriam reorientar-se nesse campo sem jamais aceitar a cidadania plena para a classe trabalhadora. Mas não compreendemos o que se seguiu sem a excepcional tese de Carmen Sylvia Vidigal Moraes.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de A revolução dos cravos: economias, espaços e tomadas de consciência (1961-1974) (Ateliê Editorial) [https://amzn.to/3S476E6]

Referência

Carmen Sylvia Vidigal Moraes. A socialização da força de trabalho: instrução popular e qualificação profissional no estado de São Paulo – 1873 a 1934. Marília, editora Lutas Anticapital, 2025, 566 págs. [https://encurtador.com.br/q6CSa]

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