Por ANA KEHL DE MORAES*
1.
A loucura
de alguém dormir
onde outros pisam.
2.
Corpo sem guia,
dor coletiva.
3.
Palavra pressão interna
e fogo pra passarem as horas,
palavra ideia e matéria sonora.
4.
Gato escaldado
atrás do que desconhece.
Gato atrás da vontade.
Não teme água fria, só fareja novidade
oculta e rica.
Mas não sei se isto
explica
morar sob a tempestade.
5.
Marchinha
Quero ver o céu da boca de um passista libertário
quero ver o fel da cova do fascismo anistiado
quero ver o céu verter num sufoco acelerado.
6.
– Bem-vindo ao nosso amor. Eu estive imaginando coisas por tanto tempo – sozinha – que o terreno já está construído, só tem que caber seus planos. E botar flor onde é de flor, concreto onde é de concreto.
– Pode ser bioconstrução?
7.
Prefiro virar bicho do que tratar do animal
como soo correndo do animal que sou.
8.
Três horas da manhã, centro da cidade,
ponto de ônibus vazio, ouço um miado.
atrás da grade, o gato.
Avança, recua,
corpo esguio entre brechas
estreitas demais.
Encaixa exato sua escápula, clavícula, duas patas,
mas trava, não passa
a bacia de gato.
Me encara, cabeça de lado, um miado a mais.
E se esfrega contra as barras de ferro,
gato, pó e fuligem, agoniado.
Até que de tamanha vontade, de rotação certa na ossada,
cospe-se pra fora.
Breve demora em que não podemos nos sustentar,
arrepio de gato, suspensão.
Mas nem passado o tempo de me olhar,
Silhueta, eriçado,
volta o gato
como mágica
pra trás das grades.
9.
Matutando
Não sei o vento que me bate
na cara,
se levanta ou me resiste,
e não sei em qual sentido:
de cima pra baixo ou contra meu grito.
Não sei em qual abismo
estou voando.
*Ana Kehl de Moraes é poetisa. Autora, entre outros livros, de Bichim (editora Versiprosa).
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A





















