Crise de um sistema político mórbido

Imagem: Thandy Yung
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Por JALDES MENESES*

A explosão das ruas sacudiu o interregno mórbido do cesarismo parlamentar, abrindo uma fresta histórica para que um projeto nacional e popular possa, enfim, nascer das cinzas de um sistema político em crise orgânica

1.

A semana passada foi a mais importante do governo Lula 3. Marcada pela aprovação, por inusitado consenso e unanimidade na Câmara, da isenção do imposto de renda para as baixas rendas, ela representa o ponto final de um microciclo decisivo. Este ciclo, uma retrospectiva virada na conjuntura, teve uma duração de 99 dias, começou em 25 de junho, com uma derrota acachapante do Planalto no Congresso, e “micro” “encerrou-se” na Sessão vitoriosa de quarta-feira (1 de outubro). Para muitos analistas apressados, o governo batera o chão do abismo e chegara a um melancólico fim. Naquele dia, uma articulação precisa e surpreendente entre a Câmara, sob a iniciativa de Hugo Motta, e o Senado, sob a batuta de Davi Alcolumbre, resultou na derrubada de três decretos presidenciais que aumentavam o IOF. O golpe foi histórico: 383 votos a favor na Câmara, 242 deles vindos de partidos da base governista. Apenas 98 deputados da base governista se mantiveram fieis ao considerado decrépito governo.

Deste marco para a frente, poucas vezes, em tão curto espaço de tempo, se viu uma transformação tão rápida da conjuntura. Foram 99 dias entre aquele tombo e esta vitória. A pauta política, outrora defensiva, tornou-se redistributiva, nacional e democrática. Até o slogan do governo se transformou, adotando o lema “do lado do povo brasileiro”. O que explica essa virada radical?

Uma das respostas esteve na erupção das ruas no domingo, 21 de setembro. O estopim foi a aprovação no Congresso da chamada “PEC da Bandidagem” e do regime de urgência para a anistia de Jair Bolsonaro e seus aliados. Esses atos escancararam a crise do regime político híbrido e informal que vigora no Brasil – um semipresidencialismo de fato que substituiu o antigo “presidencialismo de coalizão”. Este modelo, que atingiu seu ápice com a dobradinha Arthur Lira-Ciro Nogueira no governo Bolsonaro e se manteve no primeiro período de Lula, é sustentado por um “cesarismo parlamentarista”, onde o controle do orçamento via “emendas secretas” concentra um poder imenso nas mãos de poucos “donos do poder” legislativo.

O bolsonarismo, em conluio com este Centrão, cometeu um erro crasso de leitura da conjuntura: atrelou sua campanha pela anistia à impopular “PEC da Blindagem”. Ignorou o sentimento difuso de indignação que já fervilhava na base da sociedade, um sentimento que os artistas, como “antenas da razão”, captaram primeiro. Caetano Veloso, em tom de santa ira, ecoou o descontentamento geral em um vídeo que viralizou, convocando para os atos. Em 48 horas, mais de um milhão de pessoas foram às ruas em todo o país – com destaque para o belo encontro das estrelas da MPB, Caetano, Gil e Chico e tantos outros grandes artistas, em Copacabana –, não apenas para rejeitar a anistia e a PEC, mas para mostrar, através da cultura, um profundo sentimento nacional-popular (nos termos de Antonio Gramsci, que serve como uma luva para o caso de nossa MPB, uma grande arte que ganha uma dimensão nacional quando se integra organicamente ao povo de uma nação), valores tão vilipendiados pelo bolsonarismo de um Eduardo Bolsonaro.

Essas manifestações foram, acima de tudo, um grito contra o sistema político vigente. Elas revelaram que o país vive o que Gramsci chamou de “crise orgânica(que é sempre uma crise de hegemonia): “o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. O “velho” é o regime consolidado na Constituição de 1988, corroído por dentro. Os “sintomas mórbidos” são a manifestação desse colapso: o cesarismo parlamentar, o orçamento secreto e a transformação de uma democracia de sufrágio universal em uma fachada constitucional para o poder de facções.

A acomodação de parte da esquerda a este sistema, criando uma espécie de “centrão de esquerda” e vendo as mobilizações populares como “antipolítica”, é uma manifestação de cretinismo parlamentar. A dimensão dos protestos indica que a população rejeita tanto a anistia quanto os arranjos que fortalecem este semipresidencialismo informal. As demais pautas – contra a anistia e o novo fascismo bolsonarista, contra o imperialismo neocolonial de Trump, pela taxação dos super-ricos e o fim da escala 6×1 – precisam ser articuladas em uma camada mais profunda: a da reforma política. É preciso reencarnar este debate, que sumiu do mapa exatamente quando é mais necessário.

2.

O que se vislumbra agora, pela primeira vez desde os acontecimentos de 2015-2016, é a abertura de uma fresta que pode escancarar uma passagem de uma conjuntura essencialmente defensiva para uma outra, ofensiva. A aliança espúria entre o Centrão e o bolsonarismo, ao extrapolar e ignorar o sentimento popular, fez explodir a indignação. A pauta do país começou a mudar. Embora seja um tema ainda escamoteado na própria esquerda, o semipresidencialismo que estava sendo imposto a partir do impeachment golpista de Dilma, e se aprofundou no governo Bolsonaro, entrou em xeque. A ordem fraturada de Arthur Lira, continuada aos trancos e barrancos por Hugo Mota, como a necessidade de um César entre os pares da corporação parlamentarque punha “ordem na orgia” da “deputatocracia”, encontra-se claramente ameaçada.

Esta análise não estaria completa sem uma reflexão estética, que é também política. A relação com a herança cultural da MPB tornou-se um campo de batalha simbólico. Assistir aos shows de seus ícones gera uma esperança, pois eles funcionam como sismógrafos da sociedade. O grito “sem anistia” que irrompia nos shows de Caetano e Gilberto Gil era um gemido esculpido que, contido, explodiu em 21 de setembro. O último álbum de Caetano, “Meu Coco”, soa como uma mensagem no bottle, lançada ao futuro, endereçada à geração de “Enzo Gabriel”. O verso “Enzo Gabriel, qual será seu papel na salvação do mundo?” é um balanço existencial e um reconhecimento solene de que a tocha – ou o fardo – deve ser passado.

Assim como o grande professor José Paulo Netto, então jovem estudante secundarista, testemunhou o povo “sorrindo” ao sair do Comício da Central em 1964 e das Diretas Já em 1984, nós voltamos para casa sorrindo após os comícios de domingo. Foram comícios de felicidade, menos épicos que as Reformas de Base ou as Diretas-Já, mas que marcaram o fechamento de um microciclo e a abertura de uma nova possibilidade histórica na luta política travada em 2025, que passa necessariamente pela confluência nas importantíssimas eleições do próximo ano. A conjuntura mudou radicalmente. O que está em jogo agora não é apenas uma pauta, mas a própria travessia para fora deste interregno mórbido, na esperança de que um novo projeto de país, soberano, nacional, democrático e popular, possa finalmente nascer.

*Jaldes Meneses é professor titular do Departamento de História da UFPB.

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