Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
Marcel Proust e o Em Busca do Tempo Perdido são recursos pelos quais se pode identificar a força da lei natural e a negação dela pela linguagem – esse extraordinário imperativo (dialético) de nós-no-mundo
“todos admitem que só pode haver direito natural se os princípios do direito forem imutáveis […] [e] a vida conforme à natureza é a da excelência humana […] [de modo que] o melhor regime […] é conforme à natureza […] [e] o melhor regime [de acordo à natureza] é aquele no qual os homens excelentes, ou a aristocracia [natural] costumam governar”
Leo Strauss, Direito Natural e História
“Literatura é linguagem carregada de significado […], [e] a linguagem foi […] criada”
Ezra Pound, ABC da Literatura
Uma boa parte das condições de vida enfrentadas pelas individualidades está localizada na interação entre nossa situação de expressividade plena – enquanto humanos – e as estruturas naturais impostas pelos arranjos ordinários da vivência. No mundo antigo, particularmente, no universo cosmológico (grego), a circunstância era atenuada na própria disposição política da cidade de Atenas, bem como no modo em que a filosofia platônica e aristotélica representaram os estilos de conformação cultural, na qual, por um lado, seus pensamentos expressavam, e por outro, quando não o faziam dessa perspectiva, contraditoriamente, ecoavam o momento de angústia pela possibilidade do belo firmamento (natural) da Ática sucumbir diante do vendaval da democracia da polis. Com a Idade Média, a sombra densa da ordem do destino se lançou com amplitude e impacto tão formidáveis que não permitiu nem mesmo a recusa elaborada e fina daqueles que sentiam seus espíritos sufocados na metaxi (Eric Voegelin).
A modernidade, em geral, assentou características às quais o exercício do duplo estatuto das formas de vida – da loquacidade e dos fins naturais (compelidos) – tornar-se-iam mais, conscientemente, dramáticos. Pelo que, a excitação latente da linguagem em se autoenunciar adquire elementos de urgência, ocasionando ambiências de enfrentamento radical com o propósito da lei natural em prescrever o sentido mesmo do existir. O fluir intrínseco de nossa grandeza humana esplendorosa na era moderna reverter-se-ia, portanto, mais intenso e luminoso, em-si e para-si, e ao mesmo tempo, por um movimento contraditório, enfrentaria anéis densos de obstaculização natural – “forjados” pela razão ingênita que se quer absoluta e imutável. (Walter Benjamin, nomeou esse fenômeno humano de destino e caráter – alegorizado na recusa do mito estático pela história-tempo de dizer a mundanidade – em ensaio de mesmo nome em 1919, no qual trata da criação disruptiva de outras instâncias existenciais possíveis por meio da astúcia da linguagem; daí que, Destino e Caráter, bem como “O Idiota” de Dostoiévski, Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem do Homem e Para a Crítica da Violência do crítico literário alemão propiciarão certas construções interpretativas no que segue neste ensaio.).
De todas as esferas sociais e culturais que compõem o instante epocal de Balzac[i], a literatura, em particular o romance de vanguarda, com seu mundo próprio[ii], é o que nos propõe figuras de sensibilidade mais adequadas para compreendermos o que está em jogo concernente a nós humanos. Marcel Proust e o Em Busca do Tempo Perdido são recursos pelos quais se pode identificar a força da lei natural e a negação dela pela linguagem – esse extraordinário imperativo (dialético) de nós-no-mundo.
*
No fim de No Caminho de Swann, lemos: “Que horror! Pensava eu: como pode a gente achar esses automóveis tão elegantes como as antigas carruagens? Decerto já estou muito velho – mas não fui feito para um mundo onde as mulheres se entravam em vestidos que nem sequer são de fazenda. Para que vir aqui à sombra dessas árvores, se nada mais existe do que se reunia sob estas delicadas folhagens amarelas, se a vulgaridade e a loucura substituíram o que elas enquadravam de fineza? Que horror! Meu consolo é pensar nas mulheres que conheci, agora que não há mais elegância. Mas como é que essa gente que contempla essas horríveis criaturas com seus chapéus cobertos de um aviário ou de um pomar poderia sentir o encanto que havia em ver a sra. Swann com uma simples touca malva e um chapeuzinho de onde apenas emergia, reta, uma flor de íris? Poderia acaso fazer-lhes compreender a emoção que sentia nas manhãs de inverno, ao encontrar a sra. Swann a pé, de casaco de lontra e um simples gorro com duas lâminas de penas de perdiz, mas que evocava a artificiosa tepidez de seu apartamento apenas com o ramo de violetas preso ao colo, e cuja florescência viva e azul em face do céu gris, do ar gelado, das árvores desnudas, possuía o mesmo encanto (de não tomar a estação e o tempo senão como um quadro e de viver numa atmosfera humana, a atmosfera daquela mulher) que possuíam, nos vasos e jardineiras do seu salão, perto do fogo aceso, diante do canapé de seda, as flores que olhavam pelas vidraças fechadas o tombar da neve? Aliás, não me bastaria que as toaletes fossem as mesmas que naqueles anos. Devido à solidariedade que guardam entre si as diferentes partes de um recordação e que nossa memória mantém em equilíbrio num conjunto a que não é permitido tirar nem recusar coisa alguma, eu desejaria ir terminar o dia em casa de uma daquelas mulheres, diante de uma taça de chá, num apartamento de paredes de cor sombria, como ainda era o da sra. Swann (no ano seguinte àquele em que termina a primeira parte desta narrativa) e onde brilharia o fogo alaranjado, a rubra combustão, a flama rósea e branca dos crisântemos no crepúsculo de novembro, por uns instantes iguais àqueles em que eu (como se verá mais tarde) não soubera descobrir os prazeres que desejava. Mas agora, mesmo não me conduzindo a nada, aqueles instantes me pareciam ter tido em si mesmos um encanto considerável. Eu desejaria encontrá-los tais como os recordava. Ah! Mas só havia apartamentos luís XVI inteiramente brancos, esmaltados de hortênsias azuis. Aliás, agora, só muito tarde se regressava a Paris. A sra. Swann ter-me-ia respondido, de um castelo, que só voltaria em fevereiro, muito depois do tempo dos crisântemos, caso lhe tivesse eu pedido que reconstituísse para mim os elementos daquela recordação que sentia ligada a um ano longínquo, a de milésimo ao qual não me era dado remontar, os elementos daquele desejo que por sua vez se tornara inacessível como o prazer que outrora perseguira em vão. E também seria preciso que fossem as mesmas mulheres, aquelas cujas toaletes me interessavam, porque, no tempo em que eu ainda tinha crença, minha imaginação as tinha individualizado e cercado de uma lenda. Ai! Na avenida das Acácias – alameda dos Mirtos – tornei a ver algumas, velhas que não eram mais do que as sombras terríveis do que tinham sido, errantes, a procurar desesperadamente não se sabia o quê, pelos bosques virgilianos. De há muito já haviam desaparecido e eu ainda a interrogar em vão os caminhos desertos. O sol se havia posto. A natureza recomeçava a reinar sobre o Bois, de onde se alara a ideia de que era o Jardim Elísio da mulher; acima do moinho false, o verdadeiro céu era cinzento; o vento enrugava o Grande Lago em pequeninas vagas, como um lago; grandes pássaros cruzavam rapidamente o Bosque, como a um bosque, e soltando gritos agudos, pousavam um sobre o outro nos grandes carvalhos que, sob a sua coroa druídica e com majestade dodônea, pareciam proclamar o vazio inumano da floresta desapropriada, e me ajudavam a melhor compreender a contradição que existe em procurar na realidade os quadros da memória, aos quais faltaria sempre o encanto que lhes vem da própria memória e de não serem percebidos pelos sentidos. A realidade que eu conhecera não mais existia. Bastava que a sra. Swann não chegasse exatamente igual e no mesmo momento que antes, para que a avenida fosse outra. Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não eram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que formavam nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casa, os caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente como os anos.”
Com efeito, na dimensão do enredo, o personagem de Proust vive entrelaçado aos fatos postos pela natureza mesma. Ao atravessar os momentos não-humanos que se elevam até o entendimento memorial ao qual se constata o fugidio do tempo, a narrativa que porta o sujeito do Em Busca do Tempo Perdido no trecho acima, desvela os óbices forjados pelos círculos naturalísticos enfrentados por ele. Assim, o cenário da passagem de interatividade extrínseca de Marcel – “hortênsias azuis […] crisântemos […] Mirtos […] sol […]” – não quer dizer a presença de signos a serem decifrados, simbolizações que exigem um olhar presciente de modo a expor caracterizações textuais.
O princípio da composição final de No Caminho de Swann é a denúncia da função cumprida por modalidades variadas de organização do cosmos que desapossam a individualidade de si. Trata-se da tentativa de forças desapiedadas em interromper a conformação de delicadezas disruptivas; no enlace das linhas inamovíveis lançadas nas peripécias de Marcel, oculta-se não apenas a descrição de arranjos orgânicos – mas, a recusa do mundo burguês (aristocratizado) em permitir a construção de temporalidades demoníacas que interrompam o primordial[iii]. Proust, ao contrário da superfície que o excerto citado apresenta, não faz declamações poéticas de elogio às múltiplas possibilidades às quais a natureza se exprime; a obsessividade em descrevê-la a cada instante da tessitura das frases é a exigência paradoxal do narrador-personagem na autoconstituição de Eu.
No quadro ordinário que se erige diante da configuração do conceito de sujeito no âmbito do Em Busca do Tempo Perdido, a vida humana deveria ser expediente da sina. Assim, o fundamento organizativo das locuções da passagem final, o instante de Marcel se perceber como linguagem manifestada, metaforiza a intenção mesma da estrutura constitutiva da trama; os universos de acontecimentos formadores da subjetividade em Proust são transpostos com desmedida concreção nos quadros e aspectos naturalísticos da passagem analisada. Ora, nos recônditos do círculo transcendente (natureza-aristocracia-salões guermantianos) que quer repudiar o percurso de Marcel[iv] – ergue-se a imediatidade mágica da linguagem que se lança na infinitude (Walter Benjamin). Circunscritos à totalidade literária do Em Busca…, não se deve separar a travessia do personagem pelos salões da onipresença arraigada – “dos bosques virgilianos, […] [dos] desertos, […] [do] vento que enrugava, […] [dos] grandes carvalhos”. Deste modo, na posição peculiar de Marcel, o impulso do caráter tem de emular a si: “eu desejaria encontrá-los tais como os recordava. Ah! mas só havia apartamentos Luiz XVI inteiramente brancos, esmaltados de hortênsias azuis”. Quem Marcel desejava encontrar?
Na inocência que o acompanha ao adentrar o patíbulo da natureza, Marcel se percebe tendo de enfrentar momentos de remissão; pois o segredo e o mistério intransponíveis do irrefletido desafiam sua peregrinação no anseio de tornar-se-quem-se-é[v]. O encadeamento das múltiplas cenas do recôndito, propicia, na sua significância literária, portanto, os expedientes compulsórios para a bem-aventurança. Proust escreveu uma prosa em que o todo humano das vivências é entrincheirado nos costumes guermantianos (naturalizados) – de modo que a estrutura narrativa do trecho não é a sobreposição descritiva de momentos do mundo inumano com demonstrações do interior do antigo regime. No parágrafo final de No Caminho de Swann, o que se ergue são “alegorias” fatídicas na trajetória do sujeito proustiano, lançando sobre e ao redor dele laços tangíveis de inautenticidade.
A falsa “luminosidade” da natureza irradiada pela memória de Marcel, engendra contrapartes enunciadas na constituição do seu interior na forma de fabulação: o arranjo proposto na estética da lembrança de Proust revela que, malgrado o destino sublime dos “crisântemos”, dos “mirtos”, dos “grandes pássaros”, havia no sentimento disseminado pelas frases derradeiras do primeiro esplendor do Eu no Em Busca… o entendimento de que, no “vazio inumano [de toda] […] floresta desapropriada”, presenciavam-se exaltações vivenciais que se erguem na contingência. Com efeito, a agonia do principal personagem proustiano em falar por através da condição pura do ermo enfeitiçado – deificado –, era uma dialética que sibilava a evocação de-si. Pois, o desmoronamento de toda ordem natural-aristocrática-burguesa foi a exigência mesma da lírica incontida de Marcel Proust; era o que ele almejava.
Contudo, somente se a lírica que atravessa toda a obra se transfigurasse em linguagem é que a ideia forte de aniquilamento do arbítrio natural hierárquico e anti-histórico – a ferida no humano causada em todas as variações mundanas que objetivam remeter a individualidade (moderna) ao espaço de sujeição forjado pela totalidade (afásica) inautêntica – poderia ser erigida. O conceito de natureza, com isto, tem de ser adequadamente desafiado pelo impulso estilizado dos múltiplos temperamentos dos signos da fala. Desse modo, a contrapartida, o negativo, à lei natural que forma a parte que encerra o No Caminho de Swann, constitui-se na combinação entre uma sintaxe bem elaborada e a mimese de si. Derramado por todo o trecho – estão as temporalidades de significação do sujeito da reminiscência.
Ora, intricado aos procedimentos compactos do destino, Marcel pode predicar exaltado que, dadas “as diferentes partes de uma recordação e que nossa memória mantém em equilíbrio num conjunto […], [não se] é permitido tirar nem recusar coisa alguma […]”, pois o essencial da confissão de nós-mesmos não é a articulação racionalizada da palavra a confrontar os momentos exteriores do pretensamente orgânico, mas é a agonia feliz desdobrada pela expressividade lançada (por-si e para-si) em nossas copiosas trajetórias. Toda a consecução artística de Proust no trecho se devota a soerguer a parte de um enredo que deseja tornar concreto o espírito (etéreo) característico da forma-da-linguagem.
As figuras da armação narrativa no percurso de Marcel são acometimentos aos dispositivos da natureza; as cintilações do Eu, oscilando entre a sociabilidade presente na outridade – “eu desejaria ir terminar o dia em casa de uma daquelas mulheres, diante de uma taça de chá […]” – e a percepção estetizada do mundo – “[com a] sra. Swann […] brilharia o fogo alaranjado, a rubra combustão, a flama rósea e branca dos crisântemos no crepúsculo de novembro” –, situavam-se como criações que nomeavam os momentos aos quais nosso personagem irrompia na composição narrativa do Em Busca…, vislumbrando tornar-se-quem-se-é. Assim, o enredamento da linguagem (criada) de Marcel no instante decisivo do primeiro volume daquele é a representação absoluta da capacidade humana de sentir com extremo ardor a esfera (determinada) do exprimível – na recorrência de dizer coisas acerca da mundanidade variada, elabora-se o próprio tempo de nós.
Há uma certa candura aqui. Porquanto, a impulsividade do desejo em ser si-mesmo-no-outro, a verdadeira face irredutível da modernidade para o sujeito proustiano, cogitava modalidades de dicção que rompessem com os enquadramentos dos esquemas sórdidos de convivência. Proust, acalentou por toda a passagem final de No Caminho de Swann a esperança de fazer seus leitores transporem, com o fervor dos modos de dizer a profusão de firmamentos, todos os “nexos de culpa” impostos que configuravam a ética cínica (natural) da aristocracia francesa e europeia. Nas conexões imanentes que sustentam o perturbador edifício harmonioso do romance da rememoração (a contradição entre o celeste e o impetuoso que institui o modernismo radical), Marcel enunciava, narrava, que havia desafiado com ousadia a ordem inerte do primevo; de modo que, mesmo a Sra. Swann, habitando um “castelo”, com suas significações socio-históricas, ele interpela-a compulsivo – fazendo emular o, supostamente, inacansável: o personagem de Proust intima a agora (conforme à natureza) dama Swann a recordar a vida de então, “eu pedi […] que [ela] reconstituísse para mim os elementos daquela recordação que sentia ligada a um ano longínquo; […] [relembrar] elementos daquele desejo […]”, seja esse qual for.
A elevação apaixonada da língua (humana), a linguagem do homem para falar com Walter Benjamin efetuada por Proust – o estatuto formador da negatividade moderna, dialética – ofusca, sobremaneira, os costumes naturalísticos. Com denodo inigualável entre os grandes personagens da literatura romanesca, a histórica e a de vanguarda, Marcel quer um estilo de viver que erradique a unicidade do destino; em que toda a lei natural, pretendida a se tornar um conceito mitológico-eterno (violência mítica), é por ele posta a enfrentar os sortimentos de ardores espontâneos de nosso dizer as formas de vida.
Na imensidão das realidades imaginadas por Proust, às quais se entrelaçam designações de uma interioridade que quer a luminosidade reconhecida em-si no para-si, Marcel, singularmente, invoca a linguagem que se configura no tempo, pois os cenários para fazer a cultura de Guermantes “compreender a emoção que sentia nas manhãs de inverno ao encontrar a sra. Swann a pé, de casaco de lontra e um simples gorro com duas lâminas de penas de perdiz” só poderiam ser erigidos na identidade rebelde que ia se tecendo na exterioridade. Com efeito, em No Caminho de Swann, mais do que o momento inicial na jornada do narrador-personagem em direção à sua memorialística, é a experiência de ruptura do fado, fissuras na ordem do perene, que estamos lendo e nos autopercebendo. Toda a poética do Em Busca do Tempo Perdido, condensada no parágrafo final do primeiro volume, está na inquietude bem compreendida entre dois modos de entendimento do porvir.
A vida de Marcel foi forjada a partir de quadros sucessivos de inúmeras metaxis, “simbolizações” de venturas teologizadas, que o asfixiavam – “[…] ramo violeta preso ao colo […], face do céu gris, […] ar gelado […] [e] árvores desnudas” –; contudo, na fulgurante história que construiu para-si, os momentos mais significativos foram aqueles nos quais a forma da elocução era enlaçada por êxtases imponderáveis: “eu desejaria encontrá-los tais como os recordava […] porque, no tempo em que eu ainda tinha crença, minha imaginação [sempre fértil] as tinha individualizado e cercado de uma lenda”. Trata-se, assim, de designações imaginadas que, ao estabelecer o teor imanente da subjetividade do narrador, fazem dele o portador mesmo de fulgurações de-si com têmperas belas e, simultaneamente, inocentes.
A verdade poética de Proust jamais condescendeu diante do reino divinizado dos elementos da natureza; a possibilidade de quietismo, que está presente em toda modalidade de (não-)existência cujo quadro é marcado por fortes traços de ventura, foi recusado pelo enredo do Em Busca do Tempo Perdido, de tal maneira que a ideia proustiana de tempo criado nas sendas da linguagem (memoriada), armava na prosa de (e via) Marcel, tensões literárias inexauríveis. Ora, sua vivência, por então expressando momentos decadentes quase irreversíveis das aristocracias e suas virtudes, violentamente, naturais, era motivo de prazer – mas, sem antes ele dizer com denodo: “Que horror! Meu consolo é pensar nas mulheres que conheci, agora que não há mais elegância. Mas como é que essa gente que contempla essas horríveis criaturas com seus chapéus cobertos de um aviário ou de um pomar poderia sentir o encanto que havia em ver a sra. Swann com uma simples touca malva e um chapeuzinho de onde apenas emergia, reta, um [enfeite] de íris”.
Com efeito, a sra. Swann é a insígnia da imensidade da língua; nela, o sistema de alegorias do trecho derradeiro de No Caminho de Swann obtém imediatidade e veemência. Contra ela: a natureza se emudece. A distintividade do sujeito (moderno-proustiano), portanto, está nos gestos incontáveis que seus modos de dizer o mundo podem constituir. Originado, como obra de arte, na angústia de Proust em romper a taciturnidade dos esquemas afetados de sentenciação naturalizados da aristocracia, o romance do tempo que se quer revelado, se faz – por uma dicção insubmissa estilizada – abalando os modos de servidão prescritos pela falsa “cultura” guermantiana. Toda a estrutura profunda da natureza (Walter Benjamin), lei natural, é desafiada pelo espectro da linguagem impertinente que emerge no trajeto final-inicial[vi] de Marcel no encerramento do volume 1.
A posição dele ao se evidenciar nos entrelaçamentos do primevo (imutável), conformava aspectos significativos de plenitude da palavra; pois a cada instante de manifestação do seu Eu na mundanidade que ambiciona o inerte, ele principiava inauditos signos de nomeação enlouquecidos. Quando lemos o personagem-narrador confessar de que na interação com muitas mulheres, sua “imaginação as tinha individualizado e cercado de uma lenda”, diante de nós se acende o fogo inesgotável de salvação da vida pela linguagem. Assim, o castigo que toda ordem transcendente intencionada – a natureza que na “história” transfigura-se em prescrição intransigente – põe como desígnio de expiação às irredutíveis individualidades (modernas), metamorfoseando-se em leis deificadas, é interpelado pelas múltiplas experienciações da língua.
Proust sabia que a particularidade extensiva das modalidades de dizer a-nós no mundo, que nos torna, efetivamente, homens e mulheres de entendimento prático, poderia aniquilar as inumanas e naturalísticas maneiras de vida da aristocracia dos Guermantes – a utopia de se expressar-quem-se-é na outridade, vale dizer, a instauração das possibilidades de completude de si no infinito das palavras estava inscrita na impetuosa dimensão sublime erigida pelo Em Busca do Tempo Perdido. Por isso, Marcel pode dizer, ao desafiar a lei natural: que face “ao mundo do espaço” – o momento por excelência da hierarquia da natureza imposta que se quer inconteste – é a linguagem (inventiva) das “recordações […]” de nossas vidas de então, cuja a narrativa ele dá forma literária (em seu périplo), que pode tornar aquilo ao qual os anos reverteram em “fugitivos […]”, em instantes de negatividade constitutivos de uma liberdade inacabada[vii].
*Ronaldo Tadeu de Souza é Professor de Teoria Política na UFRJ, Pesquisador do Cedec e no GPDET-UFRJ/CNPq.
Referências
[i] Sobre o mundo de Balzac em oposição ao antigo regime, ver Eric Hobsbawm, A Era das Revoluções, ed. Paz e Terra, em particular o capítulo sobre a Revolução Francesa.
[ii] Acerca da literatura de vanguarda, o romance moderno propriamente dito, e distinto do romance histórico, ver Fredric Jameson, Pós-Modernismo e Sociedade de Consumo, Novos Estudos Cebrap, nº 12, v. 2, 1985.
[iii] Ao longo do ensaio, me valho de uma série de sinônimos (primevo, originário, inerte, ventura, destino, inumano, etc.) para as noções de natureza, natural, lei natural e ordem natural: de modo a não tornar as páginas que seguem, excessivamente, repetitivas, e, portanto, nauseantes e enfadonhas ao extremo.
[iv] Sobre o nome do personagem do Em Busca… ser Marcel, o primeiro nome de Proust ver Derwent May – Proust, ed. Fondo de Cultura Económica, 2001.
[v] Essa expressão é a que organiza a interpretação hegeliana de Marcel Proust desenvolvida por Robert Pippin em “Becoming Who One Is” (and Failing): Proust’s Problematic Selves, a quem minha leitura e devedora aqui e em outros artigos que escrevi sobre o Em Busca do Tempo Perdido.O ensaio está contido no livro The Persistence of Subjectivity: on the kantian aftermath, ed. Cambridge University Press, 2005.
[vi] Final-inicial. O término da narrativa de No Caminho de Swann inicia a trajetória de Marcel, o narrador-personagem, pela redescoberta do tempo – através de sua subjetividade que ao criar a obra de arte (literária), recria sua própria vida de então. O enigma do Em Busca do Tempo Perdido, só será respondido no último volume da obra, em O Tempo Redescoberto.
[vii] A passagem de Proust citada no início e as demais são da 20ª Edição do Em Busca do Tempo Perdido, ed. Globo, Tradução Mario Quintana, Revista por Olgária Chaim Féres Matos, 1999.





















