Por DENÍLSON BOTELHO*
Só é possível compreender a militância de Lima Barreto contextualizando-a em meio aos embates políticos e ideológicos dos quais o escritor pretendeu participar
“Do calvário e porres desse grande pingente suburbano, urbano, brasileiro e universal é possível extrair tanta coisa, que encabulo. Só é possível dizer que as mais jovens gerações brasileiras estão perdendo muito por não conhecerem o criador de homens que sabiam javanês, de gentes que refletiam – sem postiços – um Rio suburbano ainda agora, como naquele tempo, esquecido; de uma arraia-miúda carioca de que talvez nunca mais se tenha tido notícia – com tal vigor, coerência, paixão e humanismo – na literatura deste país. De Afonso Henriques de Lima Barreto está tudo aí, vivo, pulando, nas ruas, se mexendo, incrivelmente sem solução, […] anos depois de sua morte. Da forma descarnada, crua, tupiniquim com que o mulato flagrou esta vida carioca, brasileira, sul-americana”. (João Antônio, Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, p. 14).
Pudéssemos nós viajar no tempo e voltar ao Rio de Janeiro do início do século, teríamos a deliciosa oportunidade de testemunhar o surgimento da música popular brasileira. Na verdade, desde o século XIX, diferentes gêneros musicais como a polca, a valsa e o tango vinham sendo “abrasileirados” pelos músicos cariocas, dando origem a estilos musicais com ritmos tipicamente locais – como o samba e o choro. Eram novos ritmos aos quais vinham se juntar temáticas do início do século, como era o caso de uma canção de sátira política do teatro de revista, gravada originalmente pela Discos Phoenix, que disputava o nascente mercado fonográfico da época com a lendária Casa Edison do Rio de Janeiro, primeira empresa gravadora de discos 78 rpm, fundada em 1902.
Carestia, tida como cançoneta humorística, é uma música de autor desconhecido, gravada em 1914 por Aristarcho Dias, autor da letra, e pela atriz Arminda Santos. A interpretação original da época, retrata os tempos difíceis vividos no Rio de Janeiro dos idos da década de 1910. Em pouco mais de dois minutos, os intérpretes encarnam um casal de noivos que, em três estrofes e um refrão, contam o drama que dá título à música e, certamente, é vivido pela maioria da população brasileira naqueles anos.
Na estrofe inicial, o cantor avisa: “Maricota não podemos casar mais, oh não!”, para em seguida explicar que “os feijões subiram tanto e ainda mais o pirão”. Enfim, “Subiu tudo, carne seca, carnes e feijões / Subiu tudo, sobe tudo, tudo há de subir/ Carne fresca, amado meu, já custa dez tostões”. Diante de tamanha carestia, o refrão revela a única solução percebida pelo letrista: “Esperar a crise passar / é melhor para o nosso amor / que desgraça, nunca vi / eu senti, eu senti”.[1]
A crônica alta do custo de vida impôs inúmeras dificuldades e precárias condições de sobrevivência a grande parte da população brasileira das primeiras décadas do século XX. O adiamento do casamento entre Maricota e seu noivo serviu de mote para a música e demonstrou a irreverência com que este grave problema econômico e social podia ser comentado.
No campo das letras, Lima Barreto (cuja morte completou 102 anos neste 1º de novembro) também colocava o dedo nesta ferida: “As várias partes do nosso complicadíssimo governo se tem movido para estudar e debelar as causas da crescente carestia dos gêneros de primeira necessidade à nossa vida. As greves que têm estalado em vários pontos do país muito têm concorrido para esses passos do Estado. Entretanto, a vida continua a encarecer e as providências não aparecem”.[2]
A economia brasileira nesse período da Primeira República passava realmente por um momento crítico. As camadas populares urbanas percebiam isto no seu cotidiano, sobretudo através dos frequentes aumentos dos preços dos gêneros alimentícios. A década de 1910 foi particularmente dolorosa para o bolso das classes sociais mais baixas, pois a grande guerra agravaria os problemas que já vinham se acumulando desde o final do século XIX.
Tal como no período imperial, a agricultura continuava a ser o principal setor da economia nas primeiras décadas republicanas, visto que em 1920 verifica-se que 66,7% da população economicamente ativa do país ocupa-se dessa atividade.[3] Esta predominância coincide com a permanência de uma estrutura fundiária de forte concentração. Em face da falta de liquidez e de crédito que marcaram o fim do século XIX, o governo busca uma forma de financiar a lavoura e adota uma política de ampliação do crédito interno e emissão de moeda, lastreada por empréstimos tomados no exterior.
Deste modo, pelo menos por duas vezes, em 1898 e 1914, o país esteve à beira de um colapso financeiro, tendo sido salvo pela assinatura de acordos com os credores externos, os chamados Funding Loans. Nessas ocasiões, o Tesouro Nacional conseguiu refinanciar suas dívidas, dispondo-se a pagar os antigos empréstimos com novos empréstimos e juros elevados. Mudaram os credores e os nomes dados aos acordos, mas a prática tornou-se recorrente no período republicano.
Paralelamente, os governos da Primeira República ainda procuravam contemplar os interesses dos produtores de café, que viam o preço e as exportações do produto despencar no mercado externo ao longo dos anos. Tentando ignorar a lei da oferta e da procura, os produtores reuniram-se em Taubaté, em 1906, a fim de implantar uma frustrada política de valorização e sustentação do preço do café, que consistiu em reduzir a oferta do produto e a taxa cambial.
A redução da oferta de café seria alcançada através da retirada de parte deste produto do mercado, o que por sua vez seria viabilizado por compras custeadas por empréstimos externos. Devido à resistência dos bancos internacionais, temerosos diante da situação financeira do Brasil, aqueles empréstimos seriam fornecidos por negociantes internacionais diretamente ligados ao comércio do café. Este último dado levou parte da historiografia a enfatizar que os grandes beneficiados pelas políticas de valorização do café foram os comerciantes e banqueiros internacionais, e só em segundo plano os fazendeiros. Seja como for, o fato é que tais políticas foram, na verdade, pagas pelo conjunto da sociedade (em particular pelas classes trabalhadoras).[4]
Enquanto o café mostrou-se um produto lucrativo e interessante, fazendeiros e comerciantes foram os primeiros a ganhar com isso. A partir do momento em que se desvalorizou, o prejuízo foi “democraticamente” compartilhado pelo conjunto da sociedade, reservando-se parte substancial do mesmo às classes trabalhadoras.
A esse contexto de crescente endividamento externo, vinham somar-se a inflação e a carestia generalizada. Cresce a demanda por gêneros alimentícios na Europa em guerra e, consequentemente, diminui a sua oferta no mercado interno, contribuindo ainda mais para a alta dos preços destes produtos. De novo, a conta vai parar no bolso dos menos favorecidos, que sofrem um aviltamento cada vez maior nas suas condições de vida. Como dizia a canção do teatro de revista: “Subiu tudo, sobe tudo, tudo há de subir”…
Diante disso, lá estava Lima Barreto a protestar pelas páginas d’O Debate, que começou a circular na segunda quinzena de julho de 1917, sob a direção de Adolpho Porto e Astrojildo Pereira. Seus escritos permitem-nos aquilatar como tudo isso foi vivenciado no cotidiano da Capital Federal. Foi a convite de Pereira que o escritor veio a colaborar neste jornal de 16 páginas, vendido a 100 réis todas as quintas-feiras. Talvez esse tenha sido o periódico em que o escritor sentiu-se mais à vontade e livre para externar suas opiniões, depois da sua própria revista, a Floreal.
É o que se pode supor a partir das palavras de Porto e Pereira, anunciando seus objetivos: “O programa desta folha, pode dizer-se, está contido no seu próprio título – O debate. Com efeito, o intuito que principalmente nos moveu a organizá-la foi o de criar órgão de debates, cujas colunas, (…) se abram à discussão dos mais interessantes problemas da atualidade, na política, na economia, nas letras, nas artes… Abordando os mais variados assuntos, enfrentando rijamente as questões mais graves, sustentando campanhas ardorosas – em suma, agitando a opinião pública e refletindo as suas ações e reações n’ O debate, assim o desejamos, será uma folha ardente, cálida, impetuosa”.
“(…) Sem ligações políticas ou sociais de quaisquer espécies, O debate surgido dessa necessidade inadiável terá sempre as suas páginas inteiramente consagradas às grandes causas das liberdades coletivas e individuais, indefectivelmente guiado por um amplo ideal de justiça e de equidade”.[5]
Esta proposta resume os ideais de imprensa almejados pelo literato militante: o enfrentamento das questões mais graves do momento, com a finalidade de agitar a opinião pública, aliada à possibilidade de escrever com autonomia e independência, sem vinculação a quaisquer correntes políticas. Nesse sentido, é importante registrar que, também em 1917, o escritor acalentava repetir o sonho de ter a sua própria revista. Desta vez ela se chamaria Marginália e o seu “programa” seria parecido com o da Floreal de dez anos antes e o d’O Debate.
Apesar da revista não ter passado de um projeto, podemos imaginar como ela seria pelo que ficou redigido no diário do escritor: “Tendo nós notado que artigos de certos dos nossos autores, quando aparecem em publicações difundidas, são lidos com interesse e avidez; e notando também que muitos escritores não possam fazê-los com independência e necessária autonomia intelectual, para não ferir interesses e suscetibilidades das grandes empresas dos nossos cotidianos, revistas e magazines; resolvemos editar uma pequena revista quinzenal em que coubessem artigos de semelhante natureza e onde também fossem feitos, sem a dependência de pequeninos interesses do momento, largos e francos comentários aos sucessos da nossa atividade, em todos aqueles departamentos onde os nossos colaboradores entendessem buscar assunto”.
“(…) O que nós desejamos é esclarecer fatos e opiniões, sob a luz de uma livre crítica, de forma que aqueles leitores, pouco enfronhados nos bastidores de certos aspectos da nossa vida e deles só tendo diante de si o fato bruto, possam melhor julgar o desenrolar dos acontecimentos políticos, literários e outros, assim também as individualidades envolvidas nesses acontecimentos”.[6]
No referido programa consta ainda um parágrafo revelador da identidade que o próprio escritor pretendia imprimir à revista: “Com esse espírito, resolvemos pôr, na direção intelectual da publicação, o Senhor Lima Barreto, moço autor, cujos livros, por demais conhecidos, são fiadores da diretriz que ele imprimirá a Marginália, de acordo com o que desejamos”.[7]
Editar uma nova revista seria reviver os tempos da Floreal dez anos mais tarde e, portanto, numa conjuntura bastante diversa. Em primeiro lugar porque à frente desta nova publicação estaria um escritor mais maduro e vivido, aos 37 anos de idade, ao contrário do jovem impetuoso e pouco conhecido de 27 anos, que buscava ainda uma inserção no meio literário da Capital Federal. Além disso, essa experiência de vida, que incluía livros publicados e passagens por vários periódicos da época, certamente o levaria a imprimir a esta revista um caráter muito mais assumidamente militante das causas que defendia.
Se a Marginália não chegou a ganhar as ruas, Lima Barreto terá então n’O Debate a oportunidade de exercer a sua militância crítica com autonomia e independência na companhia de outros colaboradores, como Agripino Nazareth, Domingos de Castro Lopes, Domingos Ribeiro Filho, Fabio Luz, Georgino Avelino, Gustavo Santiago, José Félix, José Oiticica, Luis Moraes, Manuel Duarte, Mauricio de Lacerda, Max de Vasconcellos, Pedro do Coutto, Robespierre Trovão, Sarandy Raposo, Santos Maia, Theo-Filho, Theodoro de Albuquerque e Theodoro Magalhães.
Nesse grupo, alguns nomes já soam conhecidos e identificá-los representa a possibilidade de conhecer a rede social na qual o escritor se movia. Afinal, são seus companheiros e interlocutores nas páginas de um jornal que surgia no auge da efervescência do movimento operário na década de 1910. Domingos Ribeiro Filho foi companheiro de repartição pública de Lima Barreto e um anarquista que também participou da Floreal.
Astrojildo Pereira nos dá um perfil da sua personalidade ao narrar como o conheceu: “Eu o conheci em 1910, quando era ele o colaborador principal de Renato Alvim no semanário ‘A Estação Teatral’. Pequenino de estatura, muito feio, o narigão recurvo, Domingos Ribeiro Filho constituía-se logo, em qualquer grupo, a figura central, graças ao sortilégio de um espírito em fulguração permanente. Era na verdade um conservador admirável, e escrevia como falava, com a mesma abundância e o mesmo encanto. Os seus ditos, os seus epigramas, os seus sarcasmos demolidores se sucediam e multiplicavam com uma vivacidade absolutamente pasmosa. Mas não só pela figura irreverente do espírito ou pelo talento perdulário de escritor exercia ele tal fascinação. Domingos era também o melhor dos camaradas, cordialíssimo com os amigos, sempre cheio de cuidados e ternuras com os companheiros, e nisso residia o segredo das amizades fiéis que conservou até os últimos dias de vida”.
“Lembro-me bem das longas tardes que passávamos a sua volta, no antigo Café Jeremias […] ou no velho Papagaio da rua Gonçalves Dias. Eu era o mais jovem da turma, e também o mais tímido, ouvindo muito mais do que falando, mas estou certo de que foi ali que eu aprendi melhor a rir com otimismo e a sentir como é realmente boa a alegria de viver”.[8]
No julgamento que faz anos depois, já na década de 1940, Astrojildo considera Domingos um “conservador admirável”. Contudo, ficamos sem saber exatamente em que aspectos o anarquista Domingos seria um conservador, na avaliação do companheiro. De qualquer forma, isso é indício de que sob a tenda do anarquismo podiam abrigar-se diferentes adeptos desta doutrina libertária.
José Oiticica foi um intelectual que acompanhou atentamente os desdobramentos da Revolução Russa. Tanto é que, no início de 1920, escreveu na Voz do Povo, uma série de artigos intitulados “Mau caminho”, exprimindo seu descontentamento com os rumos da revolução russa.[9] Esse jornal diário foi fundado – em 1920 – pela Federação Operária e era dotado de “oficinas próprias e um corpo de redatores recrutado entre os elementos que militavam à frente do movimento operário e tinham reais qualidades como dirigentes”[10]. Com sucessivas edições apreendidas e com agentes da polícia vigiando permanentemente as imediações da redação, este periódico em que Oiticica militara acabou tendo seus gráficos e redatores presos e deixou de circular: “não foi empastelado, mas estrangulado”.[11]
Oiticica e Fábio Luz, junto com Lima Barreto compunham um grupo de intelectuais que atuava n’O Debate. Oiticica era um crítico literário, filósofo e poeta que chegou a cursar Direito e Medicina. Declarava-se um anarquista com idéias próprias e independentes.[12] Fábio Luz, higienista carioca e também anarquista, escreveu alguns romances de conteúdo libertário que tiveram repercussão nos meios culturais operários: Ideólogo (1903), Os emancipados (1906), Elias Barrão e Xica Maria (1915), Virgem-mãe, Sérgio e Chloé (1910).[13]
O Debate também teve vida curta e contou com Mauricio de Lacerda em suas páginas, que fez carreira política e foi relator do primeiro Código do Trabalho, além de ter militado na defesa dos direitos trabalhistas, dos direitos civis da mulher e do direito de greve, prestando assim um importante apoio ao movimento operário do início do século.
O Debate tornou-se significativo na trajetória de Lima Barreto porque expressa com clareza e didatismo sua crítica política e social, como o fez a respeito da carestia, naquela edição de 15 de setembro de 1917.
Não se deixando enredar por argumentos mirabolantes e cálculos de difícil compreensão, explica: “Não há necessidade de ser muito enfronhado nos mistérios das patifarias comerciais e industriais, para ver logo qual a causa de semelhante encarecimento das utilidades primordiais a nossa existência. Nunca o Brasil as produziu tanto e nunca elas foram tão caras. O plantador, o operário agrícola continua a ganhar o mesmo; mas o consumidor as está pagando pelo dobro. Quem ganha? O capitalista. Ele e unicamente ele, porquanto o fisco mesmo continua a receber o mesmo ou quase o mesmo que antigamente”.[14]
A Primeira Guerra e a Revolução Russa, assim como o agravamento da crise econômica pela qual passava o país, parecem cobrar de Lima Barreto um engajamento mais efetivo nas lutas políticas e sociais daquele momento e isso se reflete na sua passagem pelo O Debate. O que podemos observar cada vez mais nos seus artigos e crônicas publicadas a partir de 1916 e 1917 é uma inclinação cada vez maior pelas idéias socialistas difundidas na época. Infelizmente este jornal, como tantos outros, também teve duração efêmera e não sobreviveu sequer ao fim da guerra. Contudo, foi nele que veiculou algumas de suas críticas mais contundentes à conjuntura política, econômica e social do país naquele 1917.
Neste ano, governava o Brasil o presidente Venceslau Brás, que externamente lidava com os desdobramentos da Grande Guerra iniciada em 1914 e, internamente, administrava um país em crise. Se até o começo do grande conflito mundial sediado na Europa, o Brasil importava a grande maioria dos produtos manufaturados que consumia, a partir daí viveu-se um incremento significativo da indústria nacional. “Súbito tudo faltou e o Brasil teve que produzir. O precário parque industrial que se arrastava desde os começos da República, deu um salto”.[15] Salto que pode ser medido pelo crescimento do percentual da população brasileira considerada como “operários industriais” nos recenseamentos oficiais. No início da República, em 1889, apenas 0,4 % da população se enquadrava nesse segmento, representando cerca de 54 mil operários. Em 1919, logo após a Guerra, esta porcentagem alcançava 1% da população, ou cerca de 275 mil operários.[16]
O país onde até então predominara a agricultura como principal atividade econômica, vê entrar em cena nos grandes centros urbanos um número cada vez maior de operários empregados na indústria. Foi durante os anos que durou a guerra que o proletariado ultrapassou a casa dos 200.000, chegando a totalizar no censo de 1920 o contingente de 293.673 operários. Essa parcela da população enfrentava então duras condições de vida e de trabalho: eram baixos salários, longas jornadas de 10 a 12 horas por dia, crianças e mulheres percebendo salários mais aviltantes ainda, e, além disso, os preços dos gêneros alimentícios andavam em constante alta, o que tornava a carestia insuportável.
Nesses momentos de crise, estabelecia-se uma dinâmica que “só poderia se manter às custas de uma superexploração das massas trabalhadoras, através da queda dos salários reais, aumento do desemprego, com a consequente carestia do custo de vida, escassez de gêneros básicos e fome. Uma dessas crises que mais atingiu as condições de vida dos trabalhadores foi a que despontou no final da Primeira Guerra Mundial. Numa pesquisa de preços feita pelo operário carpinteiro Marques da Costa, no Rio de Janeiro, enquanto o custo de vida, considerados apenas os itens básicos, havia aumentado 189% – no período de 1914-23 –, o salário médio profissional havia subido apenas 71%, no mesmo intervalo, significando uma queda de quase dois terços no valor real dos salários”.[17]
Segundo Foot Hardman e Victor Leonardi, um dos levantamentos mais completos sobre a pauperização crescente das famílias proletárias nesse momento foi feito por Hélio Negro e Edgard Leuenroth, mostrando que “a situação concreta da vida operária era mais grave do que essas estatísticas sugeriam”[18]. Vejamos: “Cinqüenta por cento dos chefes de família ganham, nas cidades e nos campos do Brasil, salários que variam entre 80$000 e 120$000. Uma família composta de marido, mulher e duas crianças, gastando o estritamente necessário, precisa, pelo menos de 200$000, como abaixo demonstramos”.
[…] Resumo:
Alimentação……………………..………………………89$000
Alojamento…………………….………………………..45$000
Outras necessidades………………………………… 32$000
Vestuário, calçado e outras necessidades….40$000
Total……………………………………………………207$000
Como se vê, nestas despesas não estão incluídos quaisquer divertimentos, bebidas, bonde, luz, educação das crianças, nada absolutamente que vá além do que é estritamente necessário à vida de 4 entes humanos.
Foi calculada uma alimentação parca e da mais inferior qualidade, e só para quatro pessoas, não obstante as famílias de operários serem geralmente mais numerosas.
Supomos também que o chefe da família trabalha desde o primeiro ao último dia do ano, embora saibamos que há as paragens forçadas, por doença, desemprego, greve, etc”.[19]
Morando no distante subúrbio de Todos os Santos – subúrbio que certa vez descreveu como o “refúgio dos infelizes”[20] –, sendo usuário frequente dos trens da Central do Brasil e sustentando a família com o minguado salário de amanuense do Ministério da Guerra, Lima Barreto não só convivia de perto com a parcela da população que mais sofria com a crise e a carestia, como sentia na própria pele as dificuldades impostas por uma vida material cheia de limitações.
Essa convivência permanente com a arraia-miúda salta frequentemente para as páginas da sua literatura. Mas nos artigos e crônicas que publicava na imprensa, ela ganha contornos nada ficcionais. O escritor insistentemente questiona a origem de tanta desigualdade imposta à sociedade e protesta contra esse estado de coisas. Nos periódicos onde atuou podemos perceber mais detalhadamente de que modo a crise pela qual passava o país e as ideias ligadas à Revolução Russa se refletiram nos seus textos.
Em 1918, as páginas de Brás Cubas, por exemplo, expressam a fúria do escritor contra um certo representante da firma Zamith, Meireles & Cia, chamado apenas de Franco, que vai à Associação Comercial do Rio de Janeiro – “ninho de malvados açambarcadores” – pressionar contra uma possível regulamentação sobre a exportação do açúcar e defender que o mesmo produto seja exportado por menos da metade do preço pelo qual é vendido no mercado interno.[21]
Num recado direto aos que “querem enriquecer com a miséria dos outros”, Lima Barreto observa e alerta: “Se o senhor enriquece ou enriqueceu com açúcar, não sabe quanta dor, quanto sofrimento, quanto sangue, custaram os maquinismos com que o açúcar é fabricado nas suas usinas. (…) As firmas de São Paulo, Matarazzo, e outros, Martinelli, aqui, e várias mais que eu não quero citar têm tido lucros fabulosos, sem que isso tenha vindo em melhoria dos operários que a elas servem”.
“Diz esse Senhor Franco que, se houver a regulamentação da exportação, dezenas de milhares de indivíduos, irão para a miséria. Pergunto eu agora; o que eles têm lucrado com os dividendos fabulosos que vocês têm tido? Os salários não aumentaram, enquanto todas as utilidades necessárias à vida sobem sempre de preço. (…) Desejo simplesmente dizer-lhes que tomem cuidado; que não é possível estar a abusar da paciência de nós todos, não é só dos operários aos quais não adulo, mas dos pequenos burgueses como eu, que receberam mais instruções do que todos os ‘francos’ e não admitem esses insultos de tirano, tirano do comércio, da agiotagem, da pirataria com que vocês querem saquear o mundo”.[22]
O artigo acima registra o descompasso profundo que atinge preços e salários no Brasil, no momento em que começam a chegar ao país as primeiras notícias do que ocorrera na Rússia. Embora nesse texto o escritor sequer aborde o tema da revolução, veremos que é o estado de miséria em que boa parte da população vai progressivamente mergulhando que lhe desperta a defesa de uma revolução capaz de inverter o quadro vigente na época. Por isso avisa, em tom de ameaça, aos capitalistas: “tomem cuidado!”
Note-se também que Lima Barreto se autodenomina um pequeno burguês, pois além do emprego público e da casa própria em que reside no subúrbio de Todos os Santos, essa condição surge associada ao grau de instrução que possui. Apesar de todas as dificuldades que enfrenta, das dívidas que em diversas ocasiões lhe pesam sobre os ombros, sua cultura e sua vida intelectual fazem dele um pequeno burguês assumido.
Por outro lado, faz questão de explicitar sua postura em relação aos operários, ressaltando que não se inclui entre os seus aduladores circunstanciais, mas apenas defende posições que considera justas sob o seu ponto de vista. Embora assumindo sua condição de pequeno burguês, não hesita em reconhecer a legitimidade das reivindicações do operariado sacrificado pela carestia e os baixos salários.
A edição inaugural d’O Debate trazia um artigo intitulado “A Revolução Russa”, assinado por Astrojildo Pereira, que mostra certa sintonia com Lima Barreto. Mesmo admitindo que um “movimento de tal magnitude e complexidade, revolvido por mil correntes diversas, há de por força manifestar-se confuso e contraditório, com altos e baixos, com claros e escuros violentos”, o articulista e diretor da folha apostava na vitória do “proletariado socialista e anarquista”.[23] Aliás, a seção mantida por Astrojildo para tratar de assuntos externos, terá sempre espaço reservado para informar o leitor sobre os acontecimentos na Rússia.
Além disso, um artigo assinado por J. Gonçalves da Silva e intitulado “Regime da rolha para os operários”[24], que condena a truculência repressiva do chefe de polícia Aurelino Leal e perfila-se ao lado dos operários grevistas, evidencia o caminho escolhido pelo jornal, que surgia na contramão de outros, como O Paiz, por exemplo – um dos órgãos mais conservadores do período.[25]
Aliás, Astrojildo sentiria na própria carne a repressão desencadeada por Aurelino Leal, amargando pouco mais de dois meses na prisão (entre 18 de novembro de 1918 e 26 de janeiro de 1919). Data desse período um hino cuja autoria lhe é atribuída e cujo mote inspirador teria sido a figura do Chefe de Polícia.
Esta “pérola” jaz entre os documentos do seu arquivo particular:
Ó seu doutor Aurelino,
Digno chefe da polícia;
Quero aqui tecer-lhe um hino
De admiração e respeito.
– Falo sério, sem malícia,
Mãos ambas postas no peito…
“Dentro desses cinco meses,
que vão de agosto ao corrente,
Preso hei sido duas vezes,
Para alegria e vingança
Sua e mais da boa gente
Do corpo de Segurança
“Ah! Imagino que alegria
Deve dar-lhes a prisão
De quem, como eu, não perdia
Nenhuma oportunidade
De abaixo do cú de um cão
Botar-lhes a dignidade!
“É verdade aqui estou preso,
entre estas grades metido,
exposto à chufa e ao desprezo
dos seus homens latrinários
que fazem grande alarido
da caçada aos libertários
“Centenas de encarcerados,
Na Detenção e na Central,
Há também, que eu sei, pegados
Em virtude de motivo
Semelhante ao pelo qual
Encontro-me aqui cativo
“Purgamos todos, de certo,
Este enormíssimo crime:
Pugnar, peito descoberto,
Pelos direitos do povo,
Contra este mundo que o oprime
Em prol de outro mundo novo.
“Somos todos criminosos
Da mesma idéia maldita
Que quer perturbar os gozos
Da atual casta dominante,
Dessa voraz comandita
Que você guarda, arrogante.
“Ora, pois
Pois bem vou usar da maior
Vou usar, seu chefe, da mór
Franqueza, aqui nesta carta:
Se a canzoada do Major
A tempo não nos pegasse
(Não minto, raio me parta!)
Antes que esse ano acabasse,
“Toda a ilustre burguesada
Da nossa plutocracia
Estaria destronada,
Reduzida a rebotalho,
Vencida pela Anarquia,
Batida pelo Trabalho!
“Seria um golpe de arromba,
que havia de desmanchar
Essa prosapia e essa tromba
Que lhe ornam as qualidades:
E aqui neste lugar
Você estaria, entre grades
E agora no meu lugar
“Pois seu chefe, aqui lhe digo
Bem alto e publicamente,
Sob palavra de inimigo:
Neste caso desastrado
Você mostrou amplamente
Que é mesmo um cabra sarado
“Atacou-nos, féro e duro
A nós outros anarquistas,
Metendo-nos num apuro,
Sob o sabre da Ordem Pública:
Cousa entre nós nunca vista
Desde que existe a República
Nos anais desta
“Dos operários no lombo
O peixe-espada roncou;
E a greve, de tombo em tombo,
Esboroou-se na impotência;
E no fim você ganhou
Mais esta benemerência.
“Espancaram-se mulheres,
Velhos inermes, petizes…
Gentes de vários misteres
Que clamavam por mais pão
Para as bocas infelizes…
E você: pau e facão!
“Que importa que a fome impere
Nos lares dos proletários?
Mais vale que não se altere
O bom sono aos rapinantes,
Gatunos e mais sicários
Das altas classes mandantes…
Por isso tudo, louvores
Você merece, seu chefe.
– Do futuro entre os rumores
Há de se ouvir o seu nome:
‘Aurelino – Magarefe,
Pior que a peste e que a fome!’”[26]
O “hino” do diretor d’O Debate revela não só a perseguição sofrida pelo seu autor, como também denuncia a situação vivida pelos operários. Serve ainda como testemunho dos desdobramentos das greves ocorridas em 1918, no Rio de Janeiro.
Na verdade, O Debate constiui-se numa folha genuinamente militante no que diz respeito ao movimento operário. Nas suas edições predominam os artigos e matérias de conteúdo político, com destaque especial para a cobertura das greves que se espalham não só pelo Rio de Janeiro e São Paulo, como pelo resto do país, e até mesmo países vizinhos, como a Argentina.[27] Trata-se de um jornal movido por preocupações com as condições de vida das camadas mais pobres da população e, particularmente, dos operários. Por isso discute a cada número o problema da carestia e expressa enorme entusiasmo com os acontecimentos que tomam conta da Rússia nesse momento, chegando mesmo a identificar indícios da formação aqui no Brasil de comitês de operários e soldados, a exemplo do que ocorria naquele país[28]. Este entusiasmo certamente é compartilhado pelos seus colaboradores.
Consequentemente, não houve uma edição desse periódico que perdesse a oportunidade de bater duro no governo de Venceslau Brás, criticando-o sob os mais variados aspectos. Além disso, o jornal abria espaço para questões polêmicas, como o debate acerca do voto feminino e da participação política da mulher na sociedade brasileira, ou da importância do Judiciário e da justiça num período tão frequentemente abalado pela decretação sucessiva de estados de sítio.
É nas páginas d’O Debate que Maurício de Lacerda defende o direito das mulheres ingressarem na cena política como eleitoras e candidatas, ao mesmo tempo em que Fabio Luz argumenta em sentido contrário, pois vê o papel transformador da mulher no interior da família e na criação e educação dos filhos.[29] É também nas páginas desse semanário que se discute à exaustão a necessidade de um judiciário menos comprometido com os desmandos do poder executivo e mais disposto a fazer cumprir os direitos garantidos pela Constituição, num momento em que operários são perseguidos e expulsos do país ao arrepio da lei, e em que um chefe de polícia como Aurelino Leal faz escola pelo país afora com as inúmeras arbitrariedades que comete na repressão ao movimento operário e às greves.
Pois é esse jornal, onde uma charge de Fritz quase sempre ocupa todo o espaço da folha de rosto, anunciando de forma satírica o crítico conteúdo das páginas seguintes, que abre espaço para alguns textos significativos de Lima Barreto, principalmente no que diz respeito ao tema da carestia. Atribuindo ao capitalista e, consequentemente, ao capitalismo a origem da alta do custo de vida, o escritor propõe um caminho a ser seguido.
Aliás, o alicerce sobre o qual Lima Barreto formula o seu pensamento e suas ideias parece ser mesmo a vivência e a observação da realidade cotidiana com a qual convive. O anarquismo ou o maximalismo jamais se apresentou como um mero capricho intelectual. A dura experiência de uma vida repleta de dificuldades financeiras e a convivência com a ralé dos subúrbios, que igualmente padece diante da alta do custo de vida, serve de base para suas reflexões, para as escolhas que faz e as propostas que formula. Nesse instante conturbado que é o ano de 1917, é sobretudo a carestia de vida que o impulsiona a defender publicamente o direito de greve e o leva a ver com crescente simpatia a Revolução em curso na Rússia.
É certamente por isso que direciona toda sua indignação contra os capitalistas que por aqui especulam com os preços do açúcar, do feijão, da carne verde e outros produtos. Eis o caminho proposto: “Em presença deles, devo proceder como em presença do salteador que me toma os passos, em lugar ermo, e me exige os níqueis que tenho no bolso. Só há um remédio, se não quero ficar sem os magros cobres: é matá-lo. Não há necessidade, entretanto, de o fazer, na parte relativa a esses cínicos do açúcar e outros. Semelhante gente não se incomoda em morrer: incomoda-se em perder dinheiro, ou em deixar de ganhá-lo. É tocar-lhes na bolsa que eles choram que nem bezerros desmamados. O povo até agora tem esperado por leis repressivas de tão escandaloso estanco (…). Elas não virão, fique certo; mas há ainda um remédio: é a violência”.
“Só com a violência os oprimidos têm podido se libertar de uma minoria opressora, ávida e cínica; e, ainda, infelizmente, não se fechou o ciclo das violências. (…) A nossa república com o exemplo de São Paulo, se transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os quais só se pode lutar de armas na mão. Deles saem todas as autoridades; deles são os grandes jornais; deles saem as graças e os privilégios; e sobre a nação eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que lhes convém. Só há um remédio: é rasgar a rede à faca, sem atender a considerações morais, religiosas, filosóficas, doutrinárias, de qualquer natureza que seja”.[30]
A preocupação com o custo de vida não é monopólio de Lima Barreto. De certa forma, grande parte da imprensa abordava o tema que era de enorme apelo nesse período, mas jamais os grandes jornais abririam espaço para alguém que quisesse vir a público propor “rasgar a rede à faca”, “lutar de armas na mão” ou o “remédio” amargo da violência. No próprio O Debate, o problema é atentamente acompanhado e, no mês anterior à publicação desse artigo de Lima Barreto, chegou a ocupar quatro páginas seguidas do jornal com o relatório de uma Comissão de Intendentes Municipais do Distrito Federal, encarregada de estudar e procurar soluções para a alta dos preços dos gêneros de primeira necessidade.[31]
Acompanhando a atuação de Lima Barreto nos diversos jornais e revistas em que escreveu, bem como os interlocutores com os quais debateu suas ideias, é possível tecer o seu perfil político. Passados aqueles primeiros anos de quase “anonimato” e da busca do reconhecimento literário, que só viria com a publicação das Recordações do escrivão Isaías Caminha, podemos identificar uma fase intermediária de aproximação e encantamento com as ideias e o movimento anarquista.
Um período marcado pela conquista de novos espaços na imprensa da época e pelo envolvimento cada vez maior com as questões políticas da década de 1910. E podemos observar também que a partir de 1916 e 1917 intensifica-se a sua presença em vários pequenos jornais e revistas, através dos quais exercerá sua militância literária, tornando-se cada vez mais um intelectual engajado na luta política por mudanças que levassem o Brasil a viver uma revolução nos moldes da que ocorrera na Rússia em 1917, ou seja, de caráter socialista.
Contudo, há que se ressaltar que, embora tivesse explicitado sua adesão aos ideais maximalistas que tanto o fascinavam na época, Lima Barreto jamais aceitou a filiação a qualquer doutrina política. Ao longo da sua curta trajetória de vida e de militante das letras, fez questão de que prevalecesse a sua liberdade de pensamento e de opinião e, sobretudo, a sua autonomia e independência, tendo recusado filiar-se a grupos ou correntes políticas.
As páginas do A.B.C., por exemplo, nos dão testemunho desta sua opção: “Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida. A esse respeito, porém, eu quero crer que a morte mereça maiores encômios. (…) A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isto, a morte é que deve vir em nosso socorro”.
“A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nos pareceres. Não há entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma ideia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco. (…) O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana”.
“Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes. (…) Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte”.[32]
Temos acima um dentre vários outros artigos em que o escritor reafirma sua condição independência, sobrepondo-se a sua inegável militância maximalista, apesar do desencanto com o país e a sensação de derrota. Estranhamente, este artigo de 1918 presta homenagem à morte que, precocemente, o retiraria de combate quatro anos mais tarde.
Diante de parte da trajetória percorrida por Lima Barreto na imprensa do Rio de Janeiro do início do século XX, em que procuramos identificar alguns dos interlocutores com os quais manteve diálogos, como defini-lo politicamente?
Ao invés de considerá-lo como contraditório ou independente, dada a imprecisão com que desenvolve seus argumentos, convém observar que no próprio seio do movimento operário há muita imprecisão também. Segundo Claudio Batalha, apesar das análises clássicas sobre o movimento sindical no Rio de Janeiro apontarem uma suposta hegemonia do anarquismo antes de 1930, o que se verifica é a existência de um mosaico de tendências e ideologias, que reproduzem as diferentes posições do movimento operário na Europa.[33]
O fato é que entre os adeptos da ação direta é notória a influência anarquista, dominante no cenário do movimento operário da Primeira República, embora sejam minoritários no Rio de Janeiro. Destacam-se, entre os princípios que defendiam, a rejeição de intermediários no conflito entre trabalhadores e patrões; a condenação à organização partidária e à política parlamentar; a proibição da existência de funcionários pagos nos sindicatos; a adoção de direções colegiadas e não-hierárquicas; a reprovação dos serviços de assistência nos sindicatos; a recusa da luta por conquistas parciais; e a defesa da greve como principal forma de luta, apontando para a greve geral. Esses princípios estiveram presentes nas resoluções dos congressos operários realizados em 1906, 1913 e 1920.[34]
Sob o guarda-chuva do sindicalismo revolucionário ou de ação direta, abrigam-se todas correntes do anarquismo internacional. Como assinala Claudio Batalha, reina uma certa “confusão ideológica”[35] no nascente movimento operário brasileiro.
Já os amarelos ou reformistas, corrente menos influente – embora mais visível na Capital, principalmente junto aos portuários e ao setor de transportes – e adversária da anterior, defendem concepções políticas sobre o funcionamento dos sindicatos que eram compartilhadas por socialistas de diferentes matizes, positivistas e sindicalistas pragmáticos.
Entre os princípios que defendiam destacam-se a necessidade de organizações duradouras, fortes e financeiramente sólidas para alcançar seus objetivos; o caráter mutualista, como forma de garantir a permanência dos associados, pagando suas mensalidades; a greve como último recurso, jamais como um fim em si mesmo, pois o que importava era a obtenção de ganhos, ainda que parciais; que as reivindicações fossem intermediadas por advogados, políticos e autoridades; a consolidação dos ganhos através das leis, já que toda conquista obtida podia ser provisória; e a participação na política oficial e a apresentação de candidatos operários às eleições legislativas.[36]
Em meio à tão variadas correntes ideológicas que disputam espaço na sociedade e, particularmente, no movimento operário, ressaltar o anarquismo ou o socialismo de Lima Barreto pode significar muito pouco. Afinal, se vimos o escritor algumas vezes defender a ação direta, recusando muitas vezes os canais e os meios oficiais de condução das demandas populares e dos trabalhadores, numa atitude que supostamente estaria em consonância com algumas correntes do anarquismo; o vimos também valorizar o parlamento, os programas políticos em detrimento dos nomes que se colocam a sua frente, as eleições e os meios formais de se fazer política tão ao gosto de correntes ligadas aos socialistas, por exemplo.
Deslocando o escritor do contexto histórico e político em que viveu, suas ideias podem se apresentar um tanto quanto incoerentes ou contraditórias, mas inseridas na “confusão ideológica” – apontada por Claudio Batalha – que caracteriza o período, torna-se possível compreender o significado da sua militância político-literária.
Note-se ainda mais uma vez que estamos tratando de uma militância que se desenvolve no âmbito dos jornais e revistas, circunscrevendo-se nos limites no mundo das letras da República Velha. Lima Barreto nunca foi um operário ou sequer um militante sindical. Sua aproximação dos temas políticos em discussão na arena do movimento operário se dá através da sua colaboração para a imprensa, em que os seus textos devem ser tomados como acontecimentos que movem a história, e não como mera representação do passado.
Como observa Todorov, “sozinhas, as ideias não fazem história, as forças sociais e econômicas também agem; mas as ideias não são apenas puro efeito passivo. De início tornam os atos possíveis; em seguida, permitem que sejam aceitos: trata-se, afinal de contas, de atos decisivos. Se eu não acreditasse nisso, por que teria escrito este texto, cujo objetivo é também agir sobre os comportamentos?”.[37]
No que diz respeito à filiação ideológica, tudo nos leva a crer que Lima Barreto, não age de forma singular ou muito diferente da conduta que tiveram as próprias lideranças políticas do movimento operário. A história do movimento sindical brasileiro durante a Primeira República é sobretudo a história dos seus dirigentes, que fazem prevalecer muito mais os seus pontos de vista do que os seus programas ou o que preceitua a doutrina político-ideológica a qual se filiam[38].
Não é à toa que os quadros do PCB, ao ser fundado em 1922, viriam surpreendentemente, na sua maioria, dos militantes do anarquismo (que negavam a via partidária) e não do socialismo, como aconteceu no resto do mundo.[39]
Portanto só é possível compreender a militância de Lima Barreto contextualizando-a em meio aos embates políticos e ideológicos dos quais o escritor pretendeu participar. Trata-se de um comportamento político pautado pelo ecletismo tão comum naquela época, embora o literato não deixe de reconhecer que, em certas circunstâncias, só restava mesmo “rasgar a rede à faca!”.
*Denílson Botelho é professor de História do Brasil na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Autor do livro A pátria que quisera ter era um mito (Prismas). [https://amzn.to/3ApC1FG]
Notas
[1] As breves informações sobre o contexto da produção musical no início do século e a música Carestia foram extraídas do texto do Professor Samuel Araújo, Doutor em Etnomusicologia, disciplina que leciona na Escola de Música da UFRJ, encartado no CD Rio de Janeiro 1842-1920 / Uma trilha musical, produzido pelo Instituto Moreira Salles.
[2] BARRETO, A. H. de Lima. “Sobre a carestia” in O Debate, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1917. Ou em: Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1956. pp. 191-194.
[3] FRAGOSO, João Luís. “O Império escravista e a República dos plantadores” In: LINHARES, Maria Yedda L. (Coord.). História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990. p. 167.
[4]Ibidem. p. 167. A reunião dos produtores de café ocorrida em 1906 ficou conhecida como o Convênio de Taubaté.
[5] PORTO, Adolpho e PEREIRA, Astrojildo. In: O Debate, Rio de Janeiro, 12 de julho de 1917, p. 4.
[6] BARRETO, A. H. de Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956. p. 193-5.
[7] Ibidem.
[8] PEREIRA, Astrojildo. “Domingos Ribeiro Filho” in Tribuna Popular, 15/7/1945.
[9] BANDEIRA, Moniz e outros. O ano vermelho. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 256
[10] SODRÉ, N. W. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p. 368
[11] Ibidem. p. 368.
[12] DULLES, John W. Foster. Anarquistas e comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. p. 35. Em balanço historiográfico sobre o movimento operário, Batalha observa que este livro de Dulles consiste num dos exemplares da safra de brasilianistas que estudaram o tema. Mas trata-se de um historiador de posicionamento político conservador, cujo livro reúne um grande volume de informação e pouca análise própria. Aqui fazemos uso precisamente desse vasto volume de informações disponibilizado por Dulles. Ver BATALHA, Claudio H. de Moraes. “A historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e tendências” in FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2000. p. 150.
[13] HARDMAN, Foot e LEONARDI, Victor. História da indústria e do trabalho no Brasil (das origens aos anos 20). São Paulo: Ática, 1991, p. 258.
[14] BARRETO, A. H. de Lima. “Sobre a carestia” in O Debate, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1917. Ou em: Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1956. pp. 191-194.
[15] BANDEIRA, Moniz, CLOVIS, Melo e ANDRADE, A. T. O ano vermelho; a Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 48.
[16] HARDMAN, Foot e LEONARDI, Victor. História da indústria e do trabalho no Brasil (das origens aos anos 20). São Paulo: Ática, 1991. p. 146. Ver também: ADDOR, Carlos Augusto. A insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Dois Pontos Editora Ltda., 1986. pp. 33-133.
[17] HARDMAN, F. e LEONARDI, V. Op. Cit. p. 156.
[18] Ibidem. p. 157.
[19] NEGRO, Hélio e LEUENROTH, Edgard. O que é o maximismo ou o bolchevismo. São Paulo: Editora Semente, s.d. Este livro foi publicado pela primeira vez em São Paulo, em 1919.
[20] BARRETO, A. H. de Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Brasiliense, 1956.
[21] BARRETO, A. H. de Lima. “O Franco…” in Vida Urbana. São Paulo, Brasiliense, 1956. pp. 143-144. (Publicado originalmente em Brás Cubas, em 4-7-1918).
[22] Ibidem.
[23] O Debate, Ano I, nº 1, 12 de julho de 1917. p. 12.
[24] O Debate, Ano I, nº1, 12 de julho de 1917. p. 7-8.
[25] Essa polarização é freqüentemente reafirmada. Já no segundo número d’O Debate, um artigo não assinado chama João de Souza Lage, dono d’O País, de “picareta” que “destila diariamente objurgatórias de pús sifilítico”. O confronto se deve à interpretação que João Lage dá ao movimento grevista em curso em São Paulo. “Quando mesmo os capitalistas não vacilam em reconhecer a justiça dos reclamos dos operários (…), é admirável audácia essa do Lage atribuir a estrangeiros perniciosos a formulação de queixas justíssimas, que ele (…) tem como impertinências de escorraçados de outras plagas”. O Debate, Ano I, nº2, 19 de julho de 1917. p. 10.
[26] O hino de 16 estrofes em “louvor” de Aurelino Leal, chefe de Polícia, data de 16 de dezembro de 1918, não está assinado mas é atribuído a Astrojildo Pereira. Esta é sua transcrição integral, respeitando a forma como foi originalmente redigido. Ver Arquivo Astrojildo Pereira, Doc. PP1P6, no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp.
[27] A cobertura das greves para além do eixo Rio-São Paulo, pode ser verificada na edição d’O Debate, Ano I, nº 10, 15 de setembro de 1917, p. 11, onde uma fotografia ocupa metade da página, registrando um comício realizado em Salvador, e abaixo da foto a legenda diz: “Um atestado fotográfico do que foi a última greve na Bahia”. Na edição de 29 de setembro de 1917 (Ano I, nº 12), a matéria intitulada “As greves na Argentina” também é acompanhada de uma foto de comício realizado em Buenos Aires.
[28] Os indícios da formação de comitês de operários e soldados no Brasil são acompanhados pelo jornal a partir da edição de 26 de julho de 1917 (Ano I, nº 3), em que aparece na pág. 7 a matéria intitulada “O exemplo da Rússia – Graves revelações de um soldado do exército – Teremos também um Comitê de Soldados e Operários?”
[29] Ver O Debate, Ano I, nº 1, 12 de julho de 1917, p. 3, artigo de Maurício de Lacerda intitulado “O voto das mulheres”. Ver também O Debate, Ano I, nº 4, 2 de agosto de 1917, p. 3, artigo de Fabio Luz intitulado “Feminismo”.
[30] BARRETO, A. H. de Lima. “Sobre a carestia” in O Debate, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1917. Ou em: Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1956. p. 192-194.
[31] O Debate, Ano I, nº 7, 23 de agosto de 1917, pp. 12-15: “Conselho Municipal – Relatório lido na sessão de 6 do corrente dos trabalhos da comissão encarregada de estudar as causas do encarecimento dos gêneros de alimentação”.
[32] BARRETO, A. H. de Lima. “Elogio da morte” in A.B.C., Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1918. Ver também: Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1956. pp. 42-3.
[33] BATALHA, Claudio H. de Moraes. Le syndicalisme “amarelo” a Rio de Janeiro (1906-1930). These de Doctorat de l’Université de Paris I. Paris: 1986, p. 164. Uma versão resumida da tese foi publicada recentemente no Brasil: O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Sobre a historiografia, que incluem as análises clássicas, do movimento operário ver: BATALHA, Claudio H. de Moraes. “A historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e tendências” in FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2000.
[34] Ibidem. pp. 164-184. Ou: BATALHA, Claudio H. de Moraes.O movimento operário na Primeira República. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p. 29.
[35] Ibidem. p. 166.
[36] Ibidem. pp. 164-184. Ou: BATALHA, Claudio H. de Moraes.O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p. 33.
[37] TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros; a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. Volume 1. Pp. 14-15.
[38] BATALHA, Claudio H. M. Le syndicalisme “amarelo” a Rio de Janeiro (1906-1930). These de Doctorat de l’Université de Paris I. Paris: 1986. P. 173.
[39] Ibidem, p. 181.
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