Por IAIN MCKAY*
Socialismo desde baixo ou de cima?
“A forma finalmente descoberta…”?
Para Marx, a Comuna era “a forma política finalmente descoberta sob a qual trabalhar a emancipação econômica do trabalho”. Ele saudou características como o Conselho Comunal ser composto por delegados que eram “revogáveis a qualquer momento e ligados ao mandato imperativo (instruções formais) de seus eleitores”, que ele era “um órgão operacional, não parlamentar, executivo e legislativo ao mesmo tempo” e que “o exército permanente deveria ser substituído pela milícia nacional”.[i] Marx é parafraseado por Gluckstein (2006, p. 199): “O que tornou a estrutura democrática parisiense tão diferente?”. Simplesmente seus representantes “eram ‘revogáveis a qualquer momento’, assim os delegados não poderiam se desviar do mandato de seus eleitores”. A criação de uma milícia também é saudada como se significasse que a “força [estatal] era fundamentalmente diferente” e, assim “[como] se invertessem os princípios do Estado de cabeça para baixo” (GLUCKSTEIN, 2011, p. 51).
Contudo, ao passo que os communards aplicaram essas formas, é falso sugerir, como Marx faz, que elas vieram totalmente como um raio em dia de céu azul. Na verdade, a Comuna de Paris aplicou ideias que anarquistas estavam discutindo há algum tempo. Proudhon, por exemplo, levantou a ideia de representantes com mandatos vinculativos sendo eleitos para assembleias executivas e legislativas durante a revolução de 1848:
Cabe à Assembleia Nacional, por meio da organização de seus comitês, o exercício do poder executivo, da mesma forma que exerce o poder legislativo… Além do sufrágio universal e como consequência do sufrágio universal, nós queremos a implementação do mandato vinculativo. Os políticos recusam! O que significa que em suas visões, o povo, ao eleger representantes, não nomeia mandatários, mas em vez disso, renuncia à sua soberania! Isto certamente não é socialismo: isto sequer é democracia.[ii]
A visão de uma sociedade livre sendo uma federação de comunas era discutida por Proudhon em seu livro de 1863, Do Princípio Federativo. Bakunin repetiu a mesma visão de um sistema federalista de comunas baseado em mandatos e delegações revogáveis, em 1868:
A Aliança de todas as associações operárias… constituirão a Comuna… haverá uma federação permanente das barricadas e um Conselho Comunal Revolucionário… [formado por] delegados… investidos com mandatos vinculativos, responsáveis e revogáveis à qualquer momento… todas as províncias, comunas e associações… irão designar representantes para um local de assembleia combinado (todos… investidos de mandatos vinculativos, responsáveis e sujeitos à revogação), a fim de fundar a federação de associações, comunas e províncias insurgentes.[iii]
O que dizer sobre abolir o exército e substituí-lo por uma milicia? Para Gluckstein (2006, p. 114), a ideia de uma milicia “não deve nada… à rejeição anarquista de Proudhon ao Estado… a federação desejada para substituir o exército permanente por uma milicia de trabalhadores… Isto subverteu completamente a ideia de Estado como algo que impõe sua vontade sobre a sociedade pelo alto”. Isto não é verdade, como Proudhon sugeriu, em 1848, que era “necessário desarmar os poderes constituídos” acabando com a conscrição militar e “organizando um exército de cidadãos”. É “direito dos cidadãos nomear a hierarquia de seus chefes militares, os simples soldados e guardas nacionais nomeando os oficiais de baixa patente, os oficiais apontando seus superiores”. Dessa forma “o exército mantém seus sentimentos cívicos” enquanto o povo “organiza seus militares de tal forma que garanta simultaneamente sua defesa e suas liberdades, enquanto espera que as nações concordem em encerrar a paz armada”.[iv]
Como reformista, Proudhon não trata da questão da defesa da revolução, mas o revolucionário Bakunin o fez com base em seu apelo por uma milícia democrática:
Imediatamente depois de ter estabelecido a derrubada dos governos, as comunas terão que se reorganizar em linhas revolucionárias… A fim de defender a revolução, seus voluntários formarão, ao mesmo tempo, uma milícia comunal. Mas, nenhuma comuna pode se defender isoladamente. Então será necessário irradiar a revolução para fora, para insurgir todas as comunas vizinhas… e, assim, federar-se com elas para a defesa comum.[v]
Assim, o fato inconveniente é que os anarquistas têm defendido as formas organizativas que Gluckstein saúda a Comuna por implementar desde Proudhon, nos anos 1840, sendo desenvolvidas por Bakunin nos anos 1860. Nada parecido pode ser encontrado em Marx até depois da Comuna. Como K.J. Kenafick aponta:
o programa estabelecido [pela Comuna]… o sistema do federalismo, que Bakunin vinha defendendo por anos, havia sido enunciado pela primeira vez por Proudhon. Os proudnhonianos… exerceram influência considerável na Comuna. Esta ‘forma política’, portanto, não havia sido ‘finalmente’ descoberta; ela havia sido descoberta anos atrás; e agora provava ser correta pelo próprio fato de que, na crise, os trabalhadores de Paris a adotaram quase automaticamente, sob a pressão das circunstâncias, em vez de resultar de uma teoria, como sendo a forma mais adequada para expressar as aspirações da classe trabalhadora.[vi]
Então, claramente, a maior influência em termos de “visão política” da Comuna era o anarquismo. O “esboço de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver”[vii], que Marx saudou, mas não citou, foi escrito por um seguidor de Proudhon e expôs uma estrutura organizativa claramente federalista e “de baixo para cima”.[viii] Baseado nesta revolta libertária, não é de surpreender que a defesa que Marx fez dela tenha apresentado uma virada libertária.
Que as ideias geradas pelos trabalhadores em luta refletiram as previsões de Bakunin não implica sugerir que os Internacionalistas influenciados por ele de alguma forma injetaram estas ideias na luta. Em vez disso, ambos os grupos de pessoas, submetidos a muitas experiências parecidas, assim como a discussões e influências teóricas, formularam conclusões similares a partir delas. Então, de fato, “ao final de 1870, a visão de uma Comuna como uma alternativa completa ao poder existente estava emergindo de clubes de discussão” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 104), e essas discussões foram influenciadas por Internacionalistas assim como eles foram influenciados por elas. O que refuta a suposição leninista de que as massas não podem desenvolver uma consciência socialista por si mesmas.
A Crítica Anarquista
Em sua discussão sobre os campeões da Comuna, Gluckstein pelo menos reconhece que os anarquistas a analisaram e a reivindicaram como sendo uma expressão de nossas ideias. Ele dá pouco menos de duas páginas ao assunto (o que ele chama de crítica feminista é coberto com mais profundidade). É, na melhor das hipóteses, descuidado e superficial e, na pior, simplesmente falso e autocontraditório enquanto, ao mesmo tempo, ele inconscientemente também demonstra que está correto.
A representação daquilo que Gluckstein (2006, p. 184) chama de “interpretação anarquista” da Comuna começa mal, com o autor afirmando que “os anarquistas acreditam que a Comuna não pode ser descrita como um governo dos trabalhadores, porque aboliu o próprio conceito de governo”, citando os ensaios mais famosos, tanto de Bakunin quanto de Kropotkin, sobre a Comuna de Paris como uma evidência. Contudo, apesar das afirmações de Gluckstein, anarquistas não acreditam em tal coisa – como este próprio artigo comprova.
O central da crítica anarquista é precisamente que um dos problemas chave da Comuna foi que ela manteve um governo dentro de Paris enquanto proclamava a livre federação de comunas fora dela. Esta era a posição de Bakunin, que enquanto proclamava que “o socialismo revolucionário havia acabado de tentar seu primeiro ataque e demonstração prática na Comuna de Paris” e “demonstrado para todas as pessoas escravizadas (e há alguma massa que não seja escravizada?) o único caminho para a emancipação” também apontava que os communards tinham “estabelecido um governo revolucionário” e, assim, organizado a “si mesmos de uma maneira jacobina, esquecendo ou sacrificando as primeiras condições do socialismo revolucionário”.[ix] Kropotkin repetiu e estendeu esta análise, como o próprio Gluckstein admitiu: “uma das reclamações de Kropotkin sobre a Comuna foi precisamente que as massas cooperaram com o poder centralizado que criaram no Hotel de Ville” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 184-185). Ele até citou Kropotkin, argumentando que “não há mais razão para um governo dentro da Comuna do que para fora dela” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 185). Apesar disso, ele não fez a pergunta óbvia: se este é o caso, como os anarquistas poderiam pensar que a comuna “aboliu” o governo?
Como Gluckstein não consegue se forçar a apresentar a crítica anarquista, é útil resumi-la aqui tomando a análise de Kropotkin como ponto de partida. Ela tem dois aspectos principais, que Kropotkin sintetizou em algumas palavras: “a Comuna não era comunista o suficiente… a Comuna não era anarquista o suficiente”.[x]
Primeiramente, a Comuna “tratou a questão econômica como secundária, a ser tratada posteriormente, depois do triunfo da Comuna”, quando “o triunfo de uma Comuna popular era materialmente impossível sem um triunfo paralelo do povo no campo econômico”. Segundo que, ao “proclamar a Comuna livre, o povo de Paris proclamava um princípio essencialmente anarquista”, mas “eles pararam no meio do caminho” e deram “a si mesmos um Conselho Comunal copiado dos antigos conselhos municipais”. A Comuna não “rompeu com a tradição do Estado, do governo representativo e não tentou alcançar dentro da Comuna aquela organização do simples ao complexo que ela inaugurou ao proclamar a independência e a livre federação das Comunas”. Isto resultou nos revolucionários sendo isolados das massas na prefeitura, “imobilizados… pela burocracia” e perdendo “a sensibilidade que vem do contato contínuo com as massas… Paralisado por seu distanciamento do centro revolucionário – o povo – eles mesmos paralisaram a iniciativa popular”.[xi]
Perdendo totalmente o foco da crítica anarquista, Gluckstein opina que “se a Comuna tivesse sido somente um momento dos de baixo, a interpretação anarquista estaria certa”, mas a insurreição “inaugurou um novo foco de poder” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 185). Realmente – e os anarquistas argumentaram que este poder simplesmente não estava à altura da tarefa em questão. Isto pode ser visto quando Gluckstein admite que o Conselho estava “sobrecarregado” de sugestões de outros corpos, pelo “grande volume” que “criou complicações”, [o Conselho] “teve dificuldade para lidar com o fluxo de pessoas que lotavam seus escritórios” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 47-48), enquanto relatórios, cartas e moções se “empilhavam” na prefeitura e nos escritórios do secretariado e não eram discutidos (GLUCKSTEIN, 2006, p. 51). Esta inércia burocrática pode ser vista desde o decreto de 16 de abril de 1871 sobre transformar oficinas fechadas em cooperativas:
Conselhos comerciais de trabalhadores são convocados para estabelecer uma comissão de investigação, assim como um inventário… Para apresentar um relatório sobre os requisitos práticos para o imediato recomeço destas oficinas… pela associação cooperativa de trabalhadores que eram empregados lá… Esta comissão de investigação deve enviar seu relatório à Comissão Comunal do Trabalho e Troca, que será requisitada a apresentar à Comuna… o rascunho de um decreto…[xii]
Talvez porque o autor deste decreto, a quem Gluckstein (2006, p. 30) saúda, era Leo Frankel (o único membro do Conselho que pode ser, mesmo que remotamente, considerado marxista), Gluckstein o menciona quase de passagem, resumindo-o acriticamente em menos de um parágrafo, antes de apontar que “na prática, havia pouco tempo para fazer muitas coisas”. Considerando o processo sendo implementado, isto dificilmente é surpreendente. Não é de se admirar que Kropotkin tenha concluído, a partir deste decreto e de outros similares, o seguinte:
o povo insurgente não irá esperar por qualquer antigo governo em sua maravilhosa sabedoria decretar reformas econômicas. Eles irão abolir a propriedade individual por si mesmos… Eles não vão parar com a expropriação dos donos do capital social por meio de um decreto que irá permanecer letra morta; eles tomarão posse e estabelecerão seus direitos de usufruto imediatamente. Eles organizarão as oficinas para que possam continuar a produção.[xiii]
É estranho que Gluckstein tenha tão pouco a dizer sobre este assunto, já que ele obviamente considera este decreto um exemplo chave do “novo tipo de sociedade [que] pode ser vislumbrada fugazmente na ação [da Comuna]” (GLUCKSTEIN, 2006 p. 27). Considerando o papel central que isto claramente desempenhou nas lições que os anarquistas tiraram da Comuna, a falta de discussão certamente aponta para uma perspectiva política baseada na ação governamental em vez da autoatividade dos trabalhadores como os meios para criar o socialismo.
Em termos de participação das massas, Gluckstein aponta que “as relações entre a Comuna” e “os clubes e as reuniões de massa” são “difíceis de mensurar” (GLUCKSTEIN, 2006 p. 50), o que é uma confissão incriminadora para alguém que alega que a Comuna implementou um novo regime baseado na democracia direta e que a evidência de que tal regime era “radicalmente diferente de todos os Estados anteriores” pode ser nela encontrada. (GLUCKSTEIN, 2006 p. 46). Até suas conclusões contra a “interpretação anarquista” são falaciosas: “Foi esta combinação de atividade direta mais uma estrutura governamental organizada (com todas as suas inadequações) que concedeu à Comuna de Paris sua significação histórica como o momento em que um movimento anticapitalista foi transformado em um poder por direito próprio” (GLUCKSTEIN, 2006 p. 185).
Sim, “com todas as suas inadequações”! Em vez de considerar se “uma estrutura governamental organizada” prejudica a “atividade direta” das massas e se está disposta a resolver as muitas tarefas diante de uma revolução social, como Kropotkin e outros anarquistas fizeram, Gluckstein simplesmente ignora esta questão. Ele aponta, de passagem, as dificuldades diante do Conselho tentando lidar com inúmeros problemas face à revolução, mas não tira nenhuma conclusão delas. Os anarquistas, entretanto, apontariam que elas confirmaram a previsão de Bakunin, em 1870, de que qualquer governo revolucionário:
[…] não poderia falhar em limitar severamente o escopo da ação revolucionária porque é impossível, mesmo para o mais enérgico e tenaz revolucionário autoritário, entender e lidar efetivamente com todos os múltiplos problemas gerados pela revolução. Porque toda ditadura, seja exercida por um indivíduo ou, coletivamente, por relativamente poucos indivíduos, é necessariamente muito circunscrita, com pouquíssima visão, e sua percepção limitada não pode, consequentemente, penetrar a profundidade e englobar todo o complexo alcance da vida popular.[xiv]
O povo de Paris também estava ciente deste problema, nomeadamente, a inabilidade da Comuna ser efetiva. Na medida em que o Conselho “se mostrava crescentemente incompetente ou insuficientemente revolucionário, os clubes e comités se tornaram os veículos para a afirmação da soberania direta por meio da associação… Se a Comuna tivesse conseguido durar mais, certamente as facções à esquerda dos clubes, comitês e da Guarda Nacional teriam colocado uma oposição séria e organizada ao Conselho Comunal”.[xv] Antes e durante a Comuna, houve tentativas de federar vários clubes e assembleias (tais como a Delegação dos Vinte Bairros). Estes teriam, eventualmente, produzido uma estrutura federal dentro da própria comuna, na medida em que as limitações do Conselho se tornassem claras. Como Kropotkin argumentou:
Em 1871, Paris viu uma vaga antecipação de uma maneira melhor de agir. Os revolucionários entre o povo pareceram entender que o Conselho da Comuna tinha que ser considerado como mero pano de fundo, como um aceno às tradições passadas; que o povo deveria não só desarmar, mas manter, junto com o Conselho, sua própria organização, seus grupos federados e que as medidas necessárias para garantir o sucesso da revolução deveriam vir destes grupos em vez da prefeitura. Infelizmente, uma certa modéstia entre os revolucionários populares, sustentada também por preconceitos autoritários, cujas raízes ainda penetravam profundamente naquele período, preveniram que estes grupos federados ignorassem completamente o Conselho, como se ele não existisse, e agissem para inaugurar uma nova era de construção social.[xvi]
Significativamente, durante a Comuna, a Delegação “começou ou se juntou a uma série de iniciativas elaboradas para unir de forma mais eficaz as organizações populares. Ela começou uma Federação de Clubes… Se a Comuna tivesse sobrevivido é quase certo que estes projetos teriam novamente tornado a Delegação o centro do clube revolucionário e do movimento de comitês, como foi durante o cerco e o armistício”. Em outras palavras, ela “retornaria à ideia de dirigir um clube central no qual delegados de todos os clubes e comitês poderiam se reunir… ele seria aberto ao público e reuniria delegados dos clubes populares”.[xvii]
Gluckstein sugere que a Comuna era uma “nova forma de governo baseada em uma democracia ativa de massas”, e o “primeiro Estado operário” (GLUCKSTEIN, 2006 p. 7)). A questão é, se o então chamado Estado operário é “uma forma totalmente nova de Estado, em sua completa novidade” (GLUCKSTEIN, 2006 p. 114), então por que chamá-lo de Estado? Na medida em que que ele estava baseado em uma “democracia ativa de massas” ele não era um Estado, já que era baseado naquilo que os Estados evoluíram para limitar – participação de massas na vida social (“O Estado é necessariamente hierárquico e autoritário – ou ele deixa de ser o Estado”[xviii]). Ele está certo em afirmar que esse poder “desde cima, atuando sobre aqueles abaixo, foi desafiado e as próprias fundações do Estado convencional foram abaladas”; no entanto, ele mostra a típica confusão marxista quando alega que as novas instituições sociais formaram “um novo tipo de Estado que fundiu povo e poder”. O que é compreensível dado a falsa e metafísica noção marxista de que o Estado é simplesmente “um sistema de dominação de uma classe sobre a outra”, em vez de um conjunto de instituições marcadas por relações sociais específicas exigidas para manter o domínio de uma classe minoritária sobre a sociedade (GLUCKSTEIN, 2006 p. 205).[xix] Como Kropotkin argumentou:
Desenvolvido no curso da história para estabelecer e manter o monopólio da propriedade da terra a favor de uma classe – que, por essa razão, tornou-se a classe dominante por excelência –, quais meios o Estado poderia fornecer para abolir este monopólio que a classe trabalhadora não pode encontrar em sua própria força e grupos? Depois aperfeiçoado ao longo do século XIX para assegurar o monopólio da propriedade industrial, comercial e bancária às novas classes enriquecidas para as quais o Estado estava fornecendo “braços” de baixo custo, retirando a terra de comunas de aldeias e esmagando os agricultores com impostos – quais vantagens o Estado poderia fornecer para abolir estes mesmos privilégios? Poderia sua máquina governamental, desenvolvida para a criação e manutenção destes privilégios, ser agora utilizada para aboli-los? A nova função não demandaria novos órgãos? E estes novos órgãos não teriam que ser criados pelos próprios trabalhadores, em seus sindicatos, suas federações – completamente fora do Estado?[xx]
Então, nas palavras de Gluckstein (2006, p. 184), “a realidade não era simples”. Infelizmente, isso se aplica mais a suas distorções da “interpretação anarquista” do que a análise que ele não pôde apresentar, muito menos discutir. Simplificando, a afirmação da “crença anarquista de que em 1871 a Comuna já havia abolido o Estado” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 206) não pode se sustentar olhando o que os anarquistas realmente escreveram sobre a Comuna e como uma de suas falhas foi precisamente que ela não havia abolido o Estado dentro da própria Paris – como o próprio Gluckstein indica de passagem.
Talvez essa óbvia relutância em abordar a verdadeira posição anarquista ajude, em parte, a explicar por que Gluckstein reproduz uma contradição marxista muito comum sobre o anarquismo. Assim, encontramo-lo afirmando que o “discípulo de Proudhon, Mikhail Bakunin, fez da abolição do Estado o seu princípio central” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 74), embora também seja um caso do Estado sendo “ignorado” “ao estilo anarquista” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 50). Desnecessário dizer que você não pode “ignorar” o Estado se sua meta for sua “abolição”. Além disso, deve-se ressaltar que o “princípio central” de Bakunin não era simplesmente a abolição do Estado, mas, como Wayne Thorpe corretamente resumiu, “a destruição simultânea do Estado e do sistema capitalista, acompanhada pela organização de baixo para cima de um sistema federalista de administração com base nas associações econômicas do trabalho”.[xxi]
Portanto, ao contrário do que afirma a tradição marxista, não é o caso que a “originalidade da Comuna residisse em sua determinação em fundar um novo tipo de Estado” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 63). Em vez disso, sua forma descentralizada e federal mostrou como substituir o Estado por uma nova forma de organização social, que, ao invés de projetada para excluir, é baseada na participação das massas. Uma das limitações da Comuna, como Bakunin e Kropotkin enfatizaram, era que ela combinava aspectos desse novo organismo social com aspectos do Estado e, como consequência, dificultava a revolução social.
Centralização e Federalismo
Para a maioria dos marxistas, qualquer forma de cooperação ou coordenação é “centralização” ou “centralismo” e, correspondentemente, descentralização implica isolamento e atomização de forças. O sistema anarquista de federalismo simplesmente não se encaixa nesta dicotomia rígida. Isso pode ser visto quando Lenin proclamou o objetivo claramente federalista da Comuna como um exemplo “de centralismo voluntário, da fusão voluntária das comunas proletárias”. Ele parecia não perceber que “abolir a autoridade central” não significa “destruir a unidade nacional”, pois o federalismo postula a necessidade de coordenar a atividade conjunta.[xxii] Em suma, os marxistas, como todos os “adversários do federalismo, benevolentemente assumem como certo que a centralização ostenta todas as vantagens que eles negam à federação”.[xxiii]
Gluckstein não decepciona e confunde descentralização com isolamento, centralização com coordenação. Ele aponta para a discussão dentro da Comuna sobre se “se deve enfatizar a direção centralizada ou a iniciativa local, liberdade ou autoridade” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 159) e afirma que “mesmo os principais anarquistas, que se opuseram à centralização por princípio”, reconheceram a necessidade de coordenar a resistência ao governo central e suas forças. Ele contrasta a desconfiança dos communards de uma liderança central com o “comando unificado de Versalhes” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 165) e aponta que o debate sobre o Comitê de Segurança Pública era, em seu cerne, “se, dadas as condições de guerra civil, o poder poderia ser descentralizado imediatamente” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 52). Ele, é claro, fica ao lado dos blanquistas, na medida em que a guerra civil mostrou que “os trabalhadores não podiam prescindir de uma autoridade concentrada própria. Lenin, lembrando-se de Marx, chamou essa autoridade de Estado Operário”. (GLUCKSTEIN, 2006, p. 206).
No entanto, nenhum anarquista argumentou contra a ideia de coordenação da luta; em vez disso, os anarquistas têm defendido consistentemente o federalismo como um meio de fazê-lo. Portanto, a comuna “deve quebrar o Estado e substituí-lo pela Federação”.[xxiv] Como argumentou Proudhon, um órgão federal “tem apenas uma parte bastante restrita da administração pública, aquela relativa aos serviços federais”, “subordinada e confiada a uma Assembleia formada por delegados” que “exercem sobre os atos da assembleia federal fiscalização ainda mais zelosa e severa”. Assim, comunas e locais de trabalho “confederados para garantir conjuntamente sua integridade territorial ou para a proteção das suas liberdades” e do “ponto de vista econômico, podem federar-se para uma proteção mútua de comércio e indústria… para a construção e manutenção de vias de comunicação, estradas, canais, ferrovias, para a organização de crédito e seguro etc. ”.[xxv]
Em suma, os anarquistas defendem a federação precisamente para coordenar atividades conjuntas e para fornecer serviços que são mais bem organizados ou só podem ser organizados por muitos grupos trabalhando juntos. Nós rejeitamos a centralização porque ela não faz essa coordenação e, além disso, capacita e beneficia poucos às custas de muitos, já que “não há limites no Estado além daqueles que ele se impõe voluntariamente”.[xxvi]
Houve tentativas de centralizar o poder na Comuna, mais notavelmente do próprio Conselho Comunal, que viu a “concentração [do] poder em cada vez menos mãos no curso da Comuna, centralizando a autoridade em vez de ampliá-la”[xxvii], seguido pela inspiração blanquista / jacobina do Comitê de Segurança Pública. Isso, como observa Gluckstein, foi uma “proposta para [uma] liderança forte [que] refletia a frustração generalizada com os arranjos existentes” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 158). No debate para formar o Comitê, “a maioria enfatizou a necessidade de tomada de decisão centralizada em detrimento da democracia de base”, mas ele teve que admitir que este “não teve melhor desempenho do que o Conselho Comunal” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 160). Se a centralização for considerada como garantia automática dos meios para o sucesso de uma revolução, esta falha deveria levar a uma pausa para reflexão, mas não o faz, e assim a Comuna mostra que “a disciplina sob um comando centralizado foi absolutamente vital para formar a força de combate dos trabalhadores de Paris. Este não era um extra opcional” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 141).
O preconceito marxista de que a centralização é sempre mais eficiente e efetiva não deixará meras evidências ficarem em seu caminho. Gluckstein observa como o conflito sobre quem deve organizar a resistência viu as forças communards “recebendo ordens de não menos que sete fontes diferentes” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 144), enquanto “nenhum dos delegados de guerra jamais foi capaz de colocar a artilharia da Comuna sob um comando, ou mesmo descobrir o exato contingente disponível.” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 144). Essa “competição pelo controle” entre o Comitê Central da Guarda Nacional e o Conselho da Comuna resultou em um “impasse” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 145). Como observado acima, ele apresenta evidências suficientes para mostrar que este não era um caso isolado, que os problemas com a burocracia existiam dentro de uma única cidade. (GLUCKSTEIN, 2006, p. 47-51).
Não é de se surpreender, então, que quando os assuntos de uma nação inteira foram centralizados em 1917, a burocracia e a ineficiência aumentaram de maneira correspondente. Como Emma Goldman experienciou, “o funcionalismo recém-formado era tão difícil de lidar quanto a velha burocracia”, administrada por “funcionários burocráticos [que] pareciam ter um prazer especial em revogar as ordens uns dos outros” e:
[…] quão paralisante era o efeito da burocracia que atrasava e frequentemente frustrava os esforços mais sérios e enérgicos… Os materiais eram muito escassos e era muito difícil obtê-los devido aos métodos incrivelmente centralizados dos bolcheviques. Para conseguir meio quilo de pregos, seria necessário fazer petições em cerca de dez ou quinze seções; para garantir alguma roupa de cama ou pratos comuns, perdia-se dias.[xxviii]
As mesmas questões que Gluckstein lamenta na Comuna também surgiram dentro do regime bolchevique centralizado que ele apoia, mais ampliadamente. De fato, “na prática, a hiper centralização se transformou em lutas internas e disputas pelo controle entre as burocracias concorrentes” e, da mesma forma:
[…] o exemplo não atípico de uma pequena fábrica de leite condensado com menos de 15 trabalhadores que se tornou objeto de uma competição prolongada entre seis organizações incluindo o Conselho Supremo de Economia Nacional, o Conselho dos Comissários do Povo da Região Norte, o Conselho Vologda dos Comissários do Povo e o Comissariado de Alimentos de Petrogrado.[xxix]
A centralização bolchevique era ineficiente por outras razões, pois “parece evidente que muitos trabalhadores… passaram a acreditar… que a confusão e a anarquia [sic] no topo eram as principais causas de suas dificuldades, e com alguma justificativa. O fato é que a administração bolchevique era caótica… Dezenas de autoridades bolcheviques e soviéticas competitivas e conflitantes emitiam ordens contraditórias, muitas vezes trazidas para fábricas por chekistas armados. O Conselho Econômico Supremo… emitiu dezenas de ordens e aprovou inúmeras diretivas sem praticamente nenhum conhecimento real dos negócios”.[xxx] O novo regime centralizado era “não só burocraticamente pesado, mas [envolvia] enormes problemas de influência” e com seus “vários escritórios… e estrutura de comissariado literalmente inundada com ‘delegações’ urgentes e submersos em papelada”[xxxi], sem surpresa, o número de burocratas explodiu – junto com seu poder e privilégios.
Isso não significa que a coordenação seja impossível, simplesmente que ela precisa ser organizada por aqueles afetados, por suas próprias organizações – por meios federais, em outras palavras. Isso significaria, como argumentou Bakunin, uma federação de barricadas e milícias, em vez de esperar que os órgãos centrais tentassem organizar a defesa, por exemplo. Da mesma forma, para outros aspectos da vida social – sejam sociais, econômicos ou políticos.
Assim como a Comuna demonstra que a necessidade de centralização do poder não é tão bem-sucedida como supõem os leninistas, também mostra que os órgãos representativos podem facilmente dar-se mais poder às custas das organizações populares. Isso pode ser visto no Comitê de Segurança Pública na Comuna, com uma minoria de membros do conselho (essencialmente aqueles ativos na Internacional) argumentando que “a Comuna de Paris cedeu sua autoridade a uma ditadura” e estava “se escondendo atrás de uma ditadura que o eleitorado não nos autorizou a aceitar ou reconhecer”.[xxxii] Portanto, este exemplo mostra que é difícil para as massas controlar aqueles a quem dão poder, mesmo nos confins de uma cidade. Gluckstein observa que a Comuna poderia ser “vista como o órgão da solidariedade dando controle coletivo por meio de um Estado Operário” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 184). No entanto, “controle coletivo” é precisamente o que o Estado foi projetado para excluir: “Atacar o poder central, despojá-lo de suas prerrogativas, descentralizar, dissolver a autoridade, seria relegar ao povo o controle de seus negócios, correr o risco de uma revolução verdadeiramente popular. Por isso a burguesia buscou reforçar ainda mais o governo central”.[xxxiii]
Ironicamente, depois de citar um communard sobre a necessidade do federalismo, Gluckstein observa que isso “permitiria que a população se envolvesse diretamente em estruturas de poder acessíveis” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 52) De fato, é por isso que as classes minoritárias o rejeitam, como ele mesmo admite, quando observa que a vitória da burguesia francesa na Grande Revolução Francesa significou que “o envolvimento popular das massas e as estruturas democráticas do período anterior não eram mais essenciais” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 58).
Sem surpresa, nosso marxista repete o mito de que os girondinos “desaprovavam o poder estatal centralizado” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 57) quando, na realidade, desejavam “estabelecer um governo forte e reduzir o povo à submissão” e assim “em vez de federalizar, tudo o que os girondinos fizeram mostrou que eles eram tão centralizadores e autoritários quanto os [jacobinos], talvez mais ainda”.[xxxiv] Isso foi compreendido por muitos communards e um é citado por Gluckstein – sem notar que isso ecoava Proudhon – sobre como o objetivo da Comuna era “quebrar o sistema exterior de centralização e, assim, destruir a única arma que as classes privilegiadas possuem” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 52). Infelizmente, ele não pondera o porquê.
A questão é: pode a organização social centralizada, que é o Estado, ser usada por muitos em vez de poucos? Para os marxistas, a resposta é sim. Para os anarquistas, a resposta é não, pois a centralização não é uma forma neutra de organização, e se os oprimidos a utilizam, então eles simplesmente darão poder a alguns novos poucos para governá-los. A questão, como disse Kropotkin, é “como é possível que os socialistas da segunda metade do século XIX tenham adotado o ideal do Estado jacobino quando esse ideal foi concebido do ponto de vista da burguesia, em oposição direta às tendências igualitárias e comunistas do povo que se levantou durante a Revolução?”[xxxv]
Gluckstein mostra essa confusão quando afirma que “a democracia direta era a base do movimento comunal e havia criado um Estado operário embrionário, sem o qual a derrota do capitalismo e a criação de uma nova sociedade não poderia ter sido tentada” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 148-149). No entanto, seu próprio relato mostra que a criação do “Estado operário embrionário” minou a democracia direta que é necessária para garantir que o capitalismo não seja substituído pelo capitalismo de Estado e que uma sociedade genuinamente nova seja criada em vez de substituir os patrões. Igualmente, suas simpatias são direcionadas para os blanquistas e sua busca por mais centralização, embora ele mesmo registre seus fracassos.
Isso mostra como a Comuna de Paris trouxe à tona as contradições dos ataques marxistas ao anarquismo. Assim, lemos Engels atacando anarquistas por manter certa posição, mas elogiando a revolução de 1871 quando ela implementou exatamente as mesmas ideias. Por exemplo, em sua diatribe imprecisa, Os Bakuninistas em Ação, Engels fez questão de distorcer as ideias federalistas do anarquismo, rejeitando “o chamado princípio da anarquia, a federação livre de grupos independentes”, pois Bakunin “já no início de setembro de 1870 (em suas Cartas a um Francês)… havia declarado que a única maneira de expulsar os prussianos da França por uma luta revolucionária era acabar com todas as formas de liderança centralizada e deixar cada cidade, cada aldeia, cada vilarejo fazer a guerra por conta própria”. Para Engels, o federalismo anarquista “consistia precisamente no fato de que cada cidade agia por conta própria, declarando que o importante não era a cooperação com outras cidades, mas a separação delas, o que excluía qualquer possibilidade de um ataque combinado”. Isso significava “a fragmentação e o isolamento das forças revolucionárias que permitiram às tropas do governo esmagar uma revolta após a outra”. De acordo com Engels, os anarquistas “proclamaram [este] um princípio de sabedoria revolucionária suprema”[xxxvi].
Compare isso com o elogio de Engels à Comuna de Paris que, como ele efusivamente apontou, refutou a noção blanquista de uma revolução deflagrada por uma vanguarda que criaria “a centralização mais rígida e ditatorial de todo o poder nas mãos do novo governo revolucionário”. Em vez disso, a Comuna “apelou [às províncias] para formar uma federação livre de todas as Comunas francesas… uma organização nacional que pela primeira vez foi realmente criada pela própria nação. Foi precisamente o poder opressor do antigo governo centralizado… que se dissipou em todos os lugares, assim como havia caído em Paris”.[xxxvii]
Claramente, a “federação livre” de comunas é ruim quando os anarquistas a defendem, mas excelente quando os trabalhadores em revolta o fazem. Qual era o caso, Engels não conseguiu explicar ou nem tentou comparar este elogio à “federação livre” aos seus comentários de que apenas aqueles que “não têm ideia do que é a revolução ou são revolucionários apenas na palavra” falam de “autoridade e centralização como duas coisas que merecem condenação, sejam quais forem as circunstâncias”?[xxxviii]
Há um elemento de verdade em tudo isto, na medida em que Bakunin rejeitou a “liderança centralizada” como não adequada à tarefa, mas é uma falsificação afirmar que ele negou a necessidade de coordenação das lutas e as organizações federais de baixo para cima. Como ele colocou, a revolução deve “estimular a auto-organização das massas em corpos autônomos, federados de baixo para cima”. Em vez de negar a necessidade de coordenação, Bakunin a salientou: “os camponeses, como os operários industriais, devem se unir, federando os batalhões de combate, distrito por distrito, assegurando uma defesa comum coordenada contra inimigos internos e externos”.[xxxix] Nesse ponto, ele repetiu seus argumentos anteriores a respeito da revolução social – argumentos os quais Engels estava bem ciente e, portanto, deturpou deliberadamente as ideias de Bakunin por meio de um ataque ao federalismo quando, na Espanha, o federalismo não foi implementado.
Da mesma forma, Engels rapidamente esqueceu o elogio de Marx à Comuna implementando mandatos vinculativos, atacando o uso e apoio anarquista a eles, no ano seguinte. Para ele, tratava-se de parte dos planos nefastos de Bakunin para controlar a Internacional: “para uma sociedade secreta… não há nada mais conveniente do que o mandato imperativo”, já que todos os seus membros votam de uma forma, enquanto os outros irão “se contradizer” (ele não explicou como os membros da “sociedade secreta” poderiam todos votar de uma forma a menos que… delegados para fazê-lo pelos grupos que os elegeram). Sem esses mandatos vinculativos, “o bom senso dos delegados independentes os unirá rapidamente em um partido comum contra o partido da sociedade secreta”. Obviamente, a noção de que os delegados de um grupo deveriam refletir os desejos desse grupo foi perdida por Engels, pois era a utilidade deste sistema, já que “se todos os eleitores dessem aos seus delegados mandatos imperativos em relação a todos os pontos da agenda, reuniões e debates dos delegados seria supérfluo”.[xl] Diante disso, parece irônico ler Gluckstein lamentando sobre como os políticos no Estado capitalista “não podem ser mandatados ou depostos e, assim, uma vez eleitos, são livres para agir como quiserem até a próxima votação” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 22). É por isso que os anarquistas têm apoiado o mandato vinculativo desde 1848, para garantir – para citar um communard – que qualquer pessoa eleita permaneça um servo em vez de senhor dos eleitores: “Estamos aqui como representantes do povo e devemos obedecer aos seus desejos”. (GLUCKSTEIN, 2006, p. 46)
Em última análise, esta é a principal falha ideológica do marxismo. Embora afirme se basear na participação de massas, democracia direta e assim por diante (“socialismo desde baixo”), ele defende uma forma de organização social, centralização, que é projetada para excluí-la[xli] e garantir a derrota da revolução por dentro, se não for derrotada por fora.
Desde baixo ou de cima?
Isso mostra as limitações do marxismo e suas confusões sobre o Estado. Para Gluckstein, a Comuna, “uma mudança inextricavelmente ligada a partir de baixo e do Estado” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 50) e “a democracia direta parisiense tornaram as massas parte do Estado e o Estado parte das massas” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 204). Ele sugere que Marx sintetizou o proudhonismo e o blanquismo (GLUCKSTEIN, 2006, p. 83), que sua contribuição foi “sintetizar os insights deles” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 206).
Ainda assim, durante a Revolução Russa de 1905, Lenin zombou dos mencheviques por quererem apenas “pressão desde baixo”, que era “pressão dos cidadãos sobre o governo revolucionário”. Em vez disso, ele defendeu “pressão… desde cima e desde baixo”, onde “pressão desde cima” era “pressão do governo revolucionário sobre os cidadãos”. Lenin invocou a autoridade de Engels, observando que contra os anarquistas, como um “verdadeiro jacobino da social-democracia”, ele “reconhecia a importância da ação desde cima” e viu a necessidade da “utilização do poder governamental revolucionário”. Lenin resumiu sua posição (que considerou alinhada com o marxismo ortodoxo): “A limitação, em princípio, da ação revolucionária à pressão desde baixo e a renúncia à pressionar também desde cima é anarquismo”.[xlii]
Considerando que Lenin rejeitou a ideia de “somente desde baixo” como um princípio anarquista (que de fato é), precisamos ter em mente que os clamores leninistas por “democracia desde baixo” são sempre colocados no contexto de um governo leninista, pois Lenin sempre enfatizou que os bolcheviques “assumiriam total poder do Estado”, que eles “podem e devem tomar o poder do Estado em suas próprias mãos”.[xliii] A “democracia desde baixo” leninista sempre significa governo representativo, não poder popular ou autogestão, mas um governo “revolucionário” exercendo o poder “desde cima” sobre todas as classes que alegou representar. Como Lenin resumiu à sua polícia política, a Cheka, em 1920: “Sem coerção revolucionária dirigida contra os inimigos declarados dos operários e camponeses, é impossível quebrar a resistência desses exploradores. Por outro lado, a coerção revolucionária está fadada a ser empregada sobre os elementos vacilantes e instáveis entre as próprias massas”.[xliv] Ou como Trotsky disse quase 20 anos depois:
As mesmas massas são, em momentos diferentes, inspiradas por modos e objetivos diferentes. É somente por isso que é indispensável uma organização centralizada da vanguarda. Só um partido, com a autoridade que conquistou, é capaz de superar a vacilação das próprias massas… se a ditadura do proletariado significa alguma coisa, então significa que a vanguarda do proletariado está armada com os recursos do Estado para repelir os perigos, inclusive os que emanam das camadas mais atrasadas do próprio proletariado.[xlv]
Se Gluckstein pensa que a Comuna mostra que o então chamado Estado operário “não estava lá para oprimi-los ou explorá-los” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 25), então o bolchevismo – tanto na teoria quanto na prática – prova que este não é o caso. O partido de vanguarda se arma com o poder do Estado para colocar “pressão” sobre, ou forçar, qualquer um que seja considerado “vacilante e instável” ou, para usar a palavra de Trotsky, “atrasado”, que é, por definição, qualquer um que discorde do partido de vanguarda.
Compare a posição de Lenin e Trotsky com aquela expressa na Comuna de que a Guarda Nacional “dá à cidade uma milícia nacional que defende os cidadãos contra o poder, ao invés de um exército que defende o Estado dos cidadãos” (GLUCKSTEIN, 2006, p. 51). Bakunin, no entanto, não teria ficado surpreso, pois, com base na análise anarquista do Estado como “governo minoritário, de cima para baixo, de uma vasta quantidade de homens”, ele previu corretamente que mesmo o então chamado Estado operário “não pode estar seguro de sua autopreservação sem uma força armada para se defender contra seus próprios inimigos internos, contra o descontentamento de seu povo”.[xlvi]
É precisamente por isso que os anarquistas rejeitam o socialismo “desde cima” em favor de um criado “desde baixo”. No Estado, são sempre os líderes no topo que detêm o poder, não as massas. Nenhum anarquista revolucionário nega a necessidade de autodisciplina e a necessidade de coordenar a luta e a defesa revolucionárias: é considerado um truísmo que havia a necessidade de federar as forças revolucionárias para derrotar a reação. O que também reconhecemos é que dar poder a alguns líderes é um erro fatal, que eles implementarão o que consideram “socialismo” e substituirão as ações criativas desde baixo, tão necessárias ao sucesso de uma revolução e à construção do socialismo. Por exemplo:
Em três ocasiões, nos primeiros meses do poder soviético, os líderes de comitês [de fábrica] buscaram trazer seu modelo [de socialismo baseado na autogestão da economia pelos trabalhadores]. Em cada tentativa, a liderança do partido anulou-os. A alternativa bolchevique era investir ambos os poderes, gerenciais e de controle, em órgãos do Estado que estavam subordinados às autoridades centrais e formados por eles.[xlvii]
Isso estava de acordo com as noções bolcheviques anteriores a outubro sobre a construção do “socialismo”, pois, não esqueçamos, “o serviço postal [é] um exemplo do sistema econômico socialista” e “o imperialismo está gradualmente transformando todos os trustes em organizações de um mesmo tipo… Uma vez que derrubarmos os capitalistas… teremos um mecanismo esplendidamente equipado”. Portanto, o “objetivo imediato” era “organizar toda a economia no formato do serviço postal” e “com base no que o capitalismo já criou”. Assim, todos são “transformados em funcionários contratados do Estado”.[xlviii] Isso simplesmente garantiu que a revolução se desenvolvesse no estilo capitalista de Estado – tanto no sentido que Lenin desejava quanto no sentido que os anarquistas advertiam que seria o resultado inevitável do socialismo de Estado. O regime bolchevique mostra que “desde baixo” e “desde cima” não podem ser combinados. O último sempre vai enfraquecer o primeiro simplesmente porque foi para isso que foi projetado.
*Iain McKay é escritor e anarquista. Autor, entre outros livros, de Anarchism, Anarchist Communism, and the State: Three Essays (PM Press).
Tradução: Ivan Thomaz Leite de Oliveira e Claudio Ricardo Martins dos Reis.
Publicado originalmente na revista Anarcho-Syndicalist Review.
Para ler a primeira parte deste artigo clique em https://aterraeredonda.com.br/anarquismo-marxismo-e-as-licoes-da-comuna-de-paris/
Notas
[i] MARX; ENGELS, 1971, p. 75, 72-73, 71, 72.
[ii] PROUDHON, 2011, p. 378-379 (ver também p. 273 e 279).
[iii] BAKUNIN, Mikhail. Program and object of the secret revolutionary organization of the international brethren (1868). In: No Gods, No Masters: An Anthology ofAnarchism. Daniel Guérin (ed.). Edinburgh/Oakland: AK Press, 2005, p. 182.
[iv] PROUDHON, 2011, p. 407, 443-444.
[v] BAKUNIN, 2005, p. 164.
[vi] KENAFICK, K.J. Michael Bakunin and Karl Marx. Melbourne: 1948, p. 212-213.
[vii] MARX; ENGELS, 1971, p. 72.
[viii] AVRICH, Paul. Anarchist Portraits. Princeton University Press, 1988; VINCENT, 1984, p. 232; “Na realidade” o marxista Paul Thomas admite, “a Comuna deve muito pouco ao marxismo e muito mais, ironicamente, aos Proudhonianos, que se provaram pedras no sapato dos marxistas durante os primeiros quatro anos de existência da Internacional. Cf. THOMAS, Paul. Karl Marx and the Anarchists. London: Routledge & Kegan Paulplc, 1985, p.194.
[ix] BAKUNIN, Michael. Bakunin on Anarchism. Sam Dolgoff (ed.). Montreal: Black Rose Books, 1980, p. 263, 267.
[x] KROPOTKIN, 2014, p. 453.
[xi] KROPOTKIN, Peter. Words of a Rebel. Montreal: Black Rose Books, 1992, p. 74, 97, 93, 97.
[xii] LEFRANCAIS, Gustave. Erude sur le mouvement communaliste a Paris en 1871. Neuchatel: Guillaume Fils, 1871, p. 171-172.
[xiii] KROPOTKIN, 1992, 99.
[xiv] BAKUNIN, 1980, p. 196.
[xv] JOHNSON, 1996, p. 162-163. Compare com o comentário de Bookchin que o Conselho Comunal era “amplamente ignorado…depois que foi instalado. A insurreição, a verdadeira gestão dos assuntos da cidade e finalmente a luta contra Versalhes, foi encabeçada principalmente pelos clubes populares, os comitês de vigilância dos bairros e os batalhões da Guarda Nacional. Se a Comuna de Paris (o Conselho Municipal) tivesse sobrevivido, é extremamente questionável que ela pudesse ter evitado o conflito com estas formações de rua e de milicias flexivelmente estabelecidas”. BOOKCHIN, Murray. Post-Scarcity Anarchism. AK Press, 2004, p. 90.
[xvi] KROPOTKIN, 2014, p. 578.
[xvii] JOHNSON, 1996, p. 197-200.
[xviii] KROPOTKIN, Peter. Modern Science and Anarchy. Edinburgh: AKPress, 2018, 227.
[xix] A diferença entre a análise anarquista da evolução do Estado e a análise metafísica do marxismo é discutida nesta seção H 3.7 de An Anarchist FAQ.
[xx] KROPOTKIN, 2018, p. 164.
[xxi] THORPE, Wayne. The Workers Themselves: Revolutionary Syndicalism and International Labour, 1913-1923. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989, p. 6.
[xxii] LENIN, Vladmir. Collected Works 25: p. 435.
[xxiii] PROUDHON, 2011, p. 755.
[xxiv] KROPOTKIN, 1992, p. 83.
[xxv] PROUDHON, 2011, p. 707, 711.
[xxvi] PROUDHON, 2011, p. 769.
[xxvii] JOHNSON, 1996, p. 185-6.
[xxviii] GOLDMAN, 1970, p. 45, 46, 40. Ver também a seção H. 6.2. de An Anarchist FAQ para mais discussões.
[xxix] FARBER, Samuel. Before Stalinism: The Rise and Fall of Soviet Democracy. Oxford: Polity Press, 1990, p. 73.
[xxx] ROSENBERG, William G. Russian Labour and Bolshevik Power. The Workers Revolution in Russia: the view from below. D. Kaiser (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 116.
[xxxi] ROSENBERG, William G. The Social Background to Tsektran: Party, State, and Society in the Russian Civil War. Diane P. Koenker, William G. Rosenberg and Ronald Grigor Suny (eds.). Indiana: Indiana University Press, 1989, p. 357.
[xxxii] SCHULKIND (eds), 1972, p. 187.
[xxxiii] KROPOTKIN, 1992, p. 143.
[xxxiv] KROPOTKIN, Peter. The Great French Revolution. Montreal/New York: Black Rose Books, 1989, p. 349, 366.
[xxxv] KROPOTKIN, 2018, p. 366.
[xxxvi] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Marx-Engels Collected Works 23: p. 592.
[xxxvii] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Marx-Engels Selected Writings, p. 256-257.
[xxxviii] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, 1971, p. 292.
[xxxix] BAKUNIN, 1980, p. 206, 190.
[xl] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Marx-Engels Collected Works 22: p. 281, 277. Deve-se notar que Trotsky compartilhava com Engels a aversão a mandatos vinculativos que obrigassem os “representantes” a realmente representar os pontos de vista de seus eleitores dentro do partido, em vez de suas próprias opiniões. TROTSKY, Leon. In Defense of Marxism. NewYork: Pathfinder, 1995, p. 80-81.
[xli] O estado é o exemplo mais óbvio disso, mas é igualmente aplicável dentro dos partidos leninistas, onde o poder é explicitamente confiado a alguns líderes no topo da hierarquia do partido.
[xlii] LENIN, Vladmir. Collected Works 8: p. 474-475, 478, 480, 481. Esta parece ter sido uma posição bolchevique comum na época, com Stalin enfatizando no mesmo ano que “ação apenas desde baixo” era “um princípio anarquista, que, de fato, contradiz fundamentalmente as táticas social-democratas”. STALIN, Joseph. Collected Works 1: p. 149.
[xliii] LENIN, Vladmir. Collected Works 26: p. 90, 19.
[xliv] LENIN, Collected Works 42: p. 170.
[xlv] TROTSKY, Leon. The Moralists and Sycophants: Their Morals and Ours. New York: Pathfinder, 1973, p. 59. Compare isso com sua afirmação de 1906 de que “a ditadura do proletariado de forma alguma significa a ditadura da organização revolucionária sobre o proletariado”. TROTSKY, Leon. Thirty-five Years After: 1871-1906. In: Leon Trotsky on the Paris Commune. NewYork: Pathfinder Press, 1970, p. 24.
[xlvi] BAKUNIN, Michael, 1973, p. 265.
[xlvii] REMINGTON, Thomas F. Building Socialism in Bolshevik Russia: Ideology and Industrial Organisation 1917-1921. London: University of Pittsburgh Press, 1984, p. 38.
[xlviii] LENIN, Vladmir. Collected Works 25: p. 431, 478.