Polarização ideológica e disputa de massas

Imagem: Harrison Haines
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FERNANDO J. PIRES DE SOUSA*

O avanço da ultradireita no mundo ao lado da resistência da esquerda em alguns países, é uma evidência de que o fosso social entre inclusão versus exclusão acirra o conflito político e social

O mundo presencia polarização cada vez mais representativa. Crises econômicas, neoliberalismo, concentração de patrimônio e riquezas, aumento de desigualdades sociais, fome, questões ecológica e climática, acirramento de conflitos na luta geopolítica, econômica e militar, por hegemonia, têm contribuído para tal fenômeno.

O avanço em geral da ultradireita no mundo, em especial nos países desenvolvidos, ao lado da resistência da esquerda em alguns países, é uma evidência de que o fosso social entre inclusão x exclusão, em outras palavras, entre abastança de poucos e miséria de muitos, acirra o conflito político e social.

O processo contemporâneo de intensificação da concentração e centralização de capital confere a grandes conglomerados oligopolistas e monopolistas força e poder para dominar a economia mundial e submeter os Estados aos seus interesses ao “controlar” orçamentos públicos e intervir nos parlamentos por meio de seus representantes e até de forma direta.

A pluralidade política, mesmo em países com número significativo de partidos, como no Brasil, em grande medida perde seu poder de mobilizações próprias pela fragilidade ideológica, programática e representativa de muitos deles, o que os tornam instituições de manobra fisiológica. Não é por acaso que no Brasil poder-se-ia considerar que a luta política se resume ao embate de, digamos, três grandes “agremiações”: esquerdas (reformistas e socialistas), centrão (fisiologista) e direitas (neoliberais-rentistas e autoritária-ditatorial).

A sociedade fica então “premida” por estas forças. Por um lado, a carência social crescente, a luta pela sobrevivência física e por melhores condições de vida, condiciona as decisões de grande parte da população no seu apoio a reformas e políticas públicas que aliviem suas vidas. Estas encontram guarida nos governos progressistas, preocupados com políticas sociais e de transferências de renda. Por outro lado, os remediados, ricos e super ricos, lutam por acumular cada vez mais riqueza, patrimônio e privilégios. Estes se avocam aos que defendem a exclusão social, o status quo, cujos espaços políticos que viabilizam seus anseios e interesses são os governos de direita e mesmo de extrema direita.

Nesse embate, que não se restringe a uma especificidade brasileira, a polarização das massas, ou melhor, da sociedade em geral, tem assumido representação inédita. Ressalte-se que há outra força desmedida que nutre esta polarização, que é a mídia convencional, em geral conservadora, dominada por grupos empresariais familiares, cujos interesses são comuns aos dos grandes conglomerados econômicos, nacionais e internacionais. Responsável por induzir e mesmo apoiar candidatos de direita em eleições, sejam para presidentes da república, governos estaduais e municipais e parlamentares em geral.

Em contrapartida, proliferaram grandes meios de comunicação considerados mídias alternativas, em plataformas e blogs. Vale registrar que estas procuram se posicionar analítica e criticamente contra a mídia conservadora, apoiando, em sua grande maioria, partidos e candidatos de esquerda. Todavia, não é negligenciável a presença também de plataformas conservadoras. Nesse contexto, a polarização é exercida ainda de forma intensa em grupos de redes sociais ao ponto de congregarem exércitos de integrantes de pensamento único.

Geralmente não se permite a presença de pluralidade ideológica nestes grupos e a resistência e vigilância é intensa com respeito a novos integrantes, o contraditório não existe e o medo de “espiões” é considerável. Este fenômeno dos “tempos modernos” (plagiando o título do filme imperdível do Charles Chaplin) invadiu os lares, indiscriminadamente. É difícil encontrar famílias que não tenham seguidores e apoiadores de um lado ou de outro, ao ponto de se dividirem em grupos distintos de whatsapp, e mesmo membros familiares tornarem-se inimigos, não se cumprimentarem.

Ora, no atacado, foi forjada uma expressiva polarização das massas, as quais são facilmente e rapidamente mobilizadas para grandes mobilizações urbanas, enchendo ruas e avenidas, servindo assim para “fotografias”, como salientou o ex-presidente da república com respeito ao recente ato público de 25 de fevereiro de 2024, na avenida Paulista. Tudo é válido para este intento de produzir uma ótima “fotografia” que consiga alcançar uma dimensão tal de difícil superação por atos semelhantes dos adversários.

Nesse particular, poder-se-ia inferir que se passou a conceber o que eu denominaria uma verdadeira “disputa de massas”, por meio de paralelos e rivalidades entre manifestações e mobilizações. Comparações são imediatamente feitas, principalmente em termos de adesões, na perspectiva de utilizar resultados numéricos de participantes (as estimativas são logo divulgadas, traduzidas em milhares), como se se resumissem a uma competição visando legitimar posições ideológicas e políticas.

Em efeito, foi emblemática a assertiva do ex-presidente, ávido por conseguir uma “fotografia” da avenida repleta de adeptos, intensificando assim a polarização e conferindo visibilidade e liberdade de ação à extrema direita. Desviar-se da justiça e colocá-la sob xeque era tudo o que queriam os que tramaram contra a democracia, como ficou evidenciado pela fadada reunião do staff governamental bolsonarista convocada pelo ex-presidente em pleno Planalto.

Importa banalizar os crimes cometidos, criar polêmicas e dúvidas junto à sociedade. A estratégia deles é apostar em confusões e desorganizações para enfraquecer o poder de decisão das instituições responsáveis por julgar e punir os culpados pelo golpe. Frente aos inquéritos policiais e prisões de golpistas e, na iminência de prisões de generais, ministros militares e do próprio ex-presidente, colocam-se em situação de vítimas, de injustiçados, chantageando e apelando junto à opinião pública, por meio de representação de eventos com grande contingente de seguidores visando demonstrar força política com o objetivo de serem anistiados.

Ora, o evento de 25 de fevereiro foi organizado e “financiado” por nada menos do que Silas L. Malafaia, pastor protestante neopentecostal, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.O site Jusbrasil encontrou nada menos do que 143 processos que mencionam o nome dele no TJ-RJ, no TJ-SP e em outros tribunais. No mínimo vale questionar sobre a possibilidade de convocação de uma manifestação pública por tal pessoa e até pelo ex-presidente, também sob investigação, bem como de outras figuras em condição semelhante.

Na esteira desta “disputa de massas”, as esquerdas se organizam para também levar às ruas suas inquietações, resistências e cobranças. Ora, diferentemente das manifestações da extrema direita, a luta maior aqui é por sustentar a democracia, evitar retrocessos políticos, o (re)desmonte do Estado e das políticas públicas, as privatizações e o caos institucional e social. Por incrível que possa ser, depois da vitória democrática do atual presidente e das várias tentativas de desestabilização política impetradas pelo bolsonarismo em vários atos criminosos, culminando com o golpe de oito de janeiro do ano passado, parece-nos que os esforços da militância progressista são direcionados mais para resistir do que para exigir a punição jurídica e legal dos golpistas.

De qualquer forma, institucionalmente os poderes constituídos – notadamente aos que competem preservar a democracia e prosseguir com as diligências em busca dos culpados e sua punibilidade – conferem à sociedade em geral certa tranquilidade, esperança de que tudo seja elucidado e, assim, que não ocorra ameaça à coesão e à paz social.

*Fernando J. Pires de Sousa é professor titular de economia aposentado na Universidade Federal do Ceará (UFC).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Eduardo Soares Ricardo Musse Flávio R. Kothe Leonardo Boff Leonardo Sacramento Michael Roberts Mário Maestri Manuel Domingos Neto Francisco Fernandes Ladeira Flávio Aguiar Ronaldo Tadeu de Souza Tadeu Valadares Lorenzo Vitral Francisco Pereira de Farias Kátia Gerab Baggio Luís Fernando Vitagliano Fernando Nogueira da Costa Chico Whitaker Chico Alencar Carla Teixeira Paulo Martins Marilia Pacheco Fiorillo Alexandre Aragão de Albuquerque Rubens Pinto Lyra Bernardo Ricupero Marcelo Guimarães Lima Marjorie C. Marona Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleutério F. S. Prado Milton Pinheiro Bento Prado Jr. Daniel Costa Marcelo Módolo Ladislau Dowbor Gilberto Maringoni Henri Acselrad Afrânio Catani Sergio Amadeu da Silveira Daniel Afonso da Silva Eugênio Trivinho Benicio Viero Schmidt Michael Löwy Gabriel Cohn Eleonora Albano André Singer Otaviano Helene Maria Rita Kehl Alexandre de Freitas Barbosa Priscila Figueiredo Airton Paschoa Vladimir Safatle Rodrigo de Faria Denilson Cordeiro Ari Marcelo Solon Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Sérgio Pinheiro José Costa Júnior Michel Goulart da Silva Celso Favaretto Jorge Branco Marcos Aurélio da Silva João Feres Júnior Salem Nasser Sandra Bitencourt Annateresa Fabris Samuel Kilsztajn José Micaelson Lacerda Morais Heraldo Campos Julian Rodrigues Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Jorge Luiz Souto Maior Fábio Konder Comparato José Raimundo Trindade Juarez Guimarães João Adolfo Hansen João Paulo Ayub Fonseca José Luís Fiori Igor Felippe Santos Valerio Arcary João Sette Whitaker Ferreira Ronald León Núñez José Machado Moita Neto Elias Jabbour Paulo Capel Narvai Valerio Arcary Manchetômetro Vanderlei Tenório Ricardo Antunes Paulo Fernandes Silveira Marcos Silva Leda Maria Paulani Fernão Pessoa Ramos Caio Bugiato Gerson Almeida Matheus Silveira de Souza Eduardo Borges Celso Frederico Lucas Fiaschetti Estevez Marilena Chauí Liszt Vieira Jean Pierre Chauvin Dênis de Moraes Érico Andrade Ronald Rocha Luis Felipe Miguel Eliziário Andrade Henry Burnett Luiz Werneck Vianna Yuri Martins-Fontes Bruno Fabricio Alcebino da Silva Francisco de Oliveira Barros Júnior Armando Boito Daniel Brazil Anselm Jappe Antonio Martins Osvaldo Coggiola Berenice Bento Vinício Carrilho Martinez Luiz Carlos Bresser-Pereira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Lincoln Secco Rafael R. Ioris Leonardo Avritzer Ricardo Fabbrini Luiz Bernardo Pericás Eugênio Bucci Antônio Sales Rios Neto Remy José Fontana André Márcio Neves Soares Jean Marc Von Der Weid Andrés del Río João Carlos Salles Ricardo Abramovay Everaldo de Oliveira Andrade João Carlos Loebens Tales Ab'Sáber Thomas Piketty Slavoj Žižek Dennis Oliveira Luiz Roberto Alves José Geraldo Couto Boaventura de Sousa Santos Luiz Renato Martins Renato Dagnino Tarso Genro Andrew Korybko Gilberto Lopes Walnice Nogueira Galvão Atilio A. Boron Claudio Katz Alysson Leandro Mascaro Bruno Machado Luiz Marques Mariarosaria Fabris João Lanari Bo José Dirceu Luciano Nascimento Marcus Ianoni Antonino Infranca Carlos Tautz

NOVAS PUBLICAÇÕES