O fetiche do vice

Otto Umbehr, Mistério da rua, 1928
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LINCOLN SECCO*

Uma análise do cargo de vice-presidente e da possível aliança entre Lula e Alckmin em 2022

A possível escolha de um conservador para acompanhar Lula nas eleições de 2022 provocou uma série de debates. Só não houve surpresa. O PT desde 2002 incorporou um vice de centro-direita. A exceção foi ter uma mulher comunista em 2018 numa situação no mínimo insólita.

Devido à acidentada história brasileira há um “fetiche do vice”, algo que se reforçou na Nova República porque Sarney, Itamar e Temer ascenderam ao comando do país sem voto.

Antes também houve vices que foram mais ou menos importantes, como Floriano Peixoto, Nilo Peçanha, Delfim Moreira e João Goulart. Mas em geral, a posição dos demais foi meramente decorativa, tanto que as constituições de 1934 e 1937 não previram um vice presidente, como aliás é o caso do Chile desde o século XIX.

Um vice não exerce nenhum papel relevante na máquina pública, exceto se o presidente quiser (e se for esperto não vai querer). Se é um chefe de partido, como foi Temer, ele serve como instrumento de pressão dos aliados sobre o presidente; e se há uma crise, pode galvanizar os traidores num golpe de Estado, como o fez o próprio Temer em 2016, mas também Café Filho em 1954.

Na eleição, o vice também carece de importância, já que o eleitorado praticamente o desconhece. Quando muito, pode ter uma relevância negativa devido a algum escândalo. Em 1994 houve a crise dos vices e tanto Lula quanto FHC trocaram de companheiro de chapa.

Para Lula ter Alckmin como vice ou uma mulher de esquerda tanto faz do ponto de vista eleitoral. A maioria não mudará seu voto por isso e essa é a razão pela qual Lula faz ouvidos moucos para as reclamações da sua militância. Ele acredita que o melhor é ter um colega de chapa à sua direita, como Judas, para acalmar empresários e o eleitorado que pode estar indeciso entre a ordem e a mudança. Promete, assim, uma mudança dentro da ordem.

Claro que nenhuma ordem é ameaçada por uma eleição, mas não estamos falando de realidades e sim de crenças. Ter alguém sentado à sua esquerda só contentaria o ardor militante de quem não possui outra opção. Para esse tipo de raciocínio, racional em tempos “normais”, o centro ou centro direita é quem deve ter o privilégio da escolha.

 

Geraldo Alckmin

O ex-governador paulista de fato viabilizaria um arco amplo de alianças, dirão analistas políticos. E, depois, a governabilidade. Também não. O cargo de vice não se faz acompanhar de grande capacidade de distribuição de cargos ao seu séquito. Os partidos aliam-se para nomear ministros e obter empregos que lhe apeteçam, além de obter favores para seus futuros parlamentares. Ter um vice é só um símbolo. Com o amplo favoritismo petista nas pesquisas, os interessados em se aliar ao PT não deixarão de fazê-lo se o vice for petista, desde que tenham a promessa de gorda participação no poder.

O que importa ao PT é ter um candidato a vice presidente que não vá conspirar contra o titular do cargo. Ser da própria legenda ajuda, embora não seja garantia. A solução estaria em acabar com um cargo que mantêm inerte e de mente vazia um potencial traidor. Em caso de vacância permanente, um sucessor deveria ser eleito para terminar o mandato, mas isso está fora do horizonte político atual.

 

Fascismo

Há ainda a caracterização fascista do governo e a consequência estratégica que se deveria tirar disso. Se é fascista, nosso dever é a defesa da democracia formal antes de tudo, a fim de afastar uma ameaça ao próprio regime.

O fascismo é um movimento de massas com apoio eleitoral sustentado por uma crítica ao sistema. Se ele obteve sucesso é porque o próprio sistema já havia sido desmoralizado. É a melhor saída defender simplesmente a democracia?

Se olharmos para o tão citado exemplo alemão é claro que uma aliança entre sociais democratas e comunistas no início dos anos 1930 teria sido desejável, mas com base em qual programa? E notem que estamos falando de uma aliança no interior da esquerda e não com a direita conservadora, a qual já estava comprometida com o nazismo. Quem invoca esse exemplo histórico raramente cita essa diferença essencial. Aliás, a efetiva vitória sobre o fascismo na Segunda Guerra Mundial não se limitou a restaurar a democracia e obrigou os regimes que se sucederam a criar um estado de bem estar social.

 

Brasil

A nossa situação histórica é muito distinta. Mas a luta antifascista aqui exige, dentro dos limites eleitorais em que a esquerda está encerrada, aliar a defesa da democracia a um programa de inversão de prioridades. Não se trata sequer de propor uma nova constituição como aconteceu em outros países latino americanos. A nossa constituição não é a da ditadura, como a chilena, mas a de 1988, atacada diuturnamente pela direita.

Os prováveis aliados da esquerda só desejam saber se a chapa tem chances de vitória. O programa mínimo a ser adotado imporá balizas apenas às forças que polarizam o cenário político. Hoje, um bolsonarista jamais apoiaria o PT e vice versa. Já a maioria dos partidos situados entre os “extremos” eleitorais pode escolher qualquer um dos lados em função da expectativa de votos e ganhos materiais. Ou apostar numa “terceira via” que desde 1989 não deu certo.

Nessas circunstâncias, o PT poderia propor um programa mínimo ao candidato a vice e constrangê-lo a fazer a sua defesa explicitamente. Ele deve incorporar, entre as coisas que normalmente a esquerda defende, uma política econômica punitiva ao grande capital e ao rentismo, a nacionalização das empresas privatizadas, anulação da reforma trabalhista, um Tribunal de Manaus para julgar a família Bolsonaro e os militares envolvidos nos crimes da pandemia e finalmente exigir das Forças Armadas um pedido de desculpas ao povo brasileiro pela Ditadura Militar.

Isso sequer é certeza de fidelidade após a eleição. E nem sei se o vice se converteria publicamente. Mas Brasília bem vale uma missa.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).

 

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Paulo Sérgio Pinheiro Priscila Figueiredo Airton Paschoa Yuri Martins-Fontes Otaviano Helene João Paulo Ayub Fonseca Gerson Almeida Antônio Sales Rios Neto Chico Alencar Eleonora Albano Daniel Afonso da Silva Dennis Oliveira Jean Pierre Chauvin Gilberto Maringoni Francisco Fernandes Ladeira José Micaelson Lacerda Morais Paulo Capel Narvai Salem Nasser Marcos Silva Mário Maestri Luiz Marques Annateresa Fabris Benicio Viero Schmidt Tadeu Valadares Eduardo Borges Daniel Costa Luis Felipe Miguel Remy José Fontana Fernando Nogueira da Costa Flávio Aguiar Tarso Genro Celso Favaretto Francisco Pereira de Farias José Machado Moita Neto Lorenzo Vitral Julian Rodrigues Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Fernandes Silveira Denilson Cordeiro Marilia Pacheco Fiorillo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Luís Fiori Valerio Arcary Alexandre de Freitas Barbosa Atilio A. Boron Chico Whitaker Andrés del Río Walnice Nogueira Galvão Dênis de Moraes Marcos Aurélio da Silva José Dirceu Vladimir Safatle Luís Fernando Vitagliano Bernardo Ricupero Heraldo Campos Luiz Roberto Alves Vinício Carrilho Martinez Henry Burnett Rodrigo de Faria João Carlos Salles Jorge Branco Thomas Piketty Antonino Infranca Berenice Bento Eugênio Bucci Anselm Jappe Maria Rita Kehl Mariarosaria Fabris Marilena Chauí Juarez Guimarães Eliziário Andrade Manchetômetro Ricardo Abramovay Henri Acselrad Alysson Leandro Mascaro Marjorie C. Marona Tales Ab'Sáber Osvaldo Coggiola João Feres Júnior Leonardo Avritzer Armando Boito Luiz Carlos Bresser-Pereira Sergio Amadeu da Silveira Slavoj Žižek Ronald Rocha Ricardo Musse Fábio Konder Comparato Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcelo Módolo Leda Maria Paulani Samuel Kilsztajn Luiz Bernardo Pericás Elias Jabbour Ari Marcelo Solon Alexandre de Lima Castro Tranjan Leonardo Sacramento José Raimundo Trindade Bruno Fabricio Alcebino da Silva Lincoln Secco Ricardo Antunes Matheus Silveira de Souza Caio Bugiato Flávio R. Kothe João Sette Whitaker Ferreira Rafael R. Ioris Ladislau Dowbor Ricardo Fabbrini Luciano Nascimento Andrew Korybko Everaldo de Oliveira Andrade Eleutério F. S. Prado André Singer Luiz Renato Martins João Adolfo Hansen Michael Roberts Liszt Vieira Bento Prado Jr. Leonardo Boff Milton Pinheiro Manuel Domingos Neto Marcus Ianoni Antonio Martins Jean Marc Von Der Weid Paulo Martins Alexandre Aragão de Albuquerque Boaventura de Sousa Santos Luiz Eduardo Soares Michael Löwy Eugênio Trivinho Luiz Werneck Vianna Ronaldo Tadeu de Souza André Márcio Neves Soares Michel Goulart da Silva Kátia Gerab Baggio Ronald León Núñez Gabriel Cohn Bruno Machado Marcelo Guimarães Lima José Costa Júnior Rubens Pinto Lyra João Lanari Bo Valerio Arcary Afrânio Catani Gilberto Lopes José Geraldo Couto Claudio Katz Daniel Brazil Érico Andrade Renato Dagnino Jorge Luiz Souto Maior Francisco de Oliveira Barros Júnior Vanderlei Tenório Carlos Tautz Fernão Pessoa Ramos João Carlos Loebens Sandra Bitencourt Celso Frederico Lucas Fiaschetti Estevez Igor Felippe Santos Carla Teixeira

NOVAS PUBLICAÇÕES