As palavras e os danos

Patrick Coutu, Sem título, 2016
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RENAN FERREIRA DA SILVA*

Considerações sobre o livro recém editado de Jacques Rancière e Javier Bassas

A tradução de As palavras e os danos. Diálogo sobre a política da linguagem, juntamente com outras obras de Jacques Rancière que vieram à luz nos últimos quatro anos, tais como O espaço das palavras: de Mallarmé a Broodthaers (Relicário, 2020), As margens da ficção (Editora 34, 2021), O método da cena (Quixote Do, 2021), Aisthesis: cenas do regime estético da arte (Editora 34, 2021), O trabalho das imagens: conversações com Andrea Soto Caldéron (Chão de Feira, 2021), João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada (Relicário, 2021) e Mal-estar na estética (Editora 34/PUC-Rio, 2023), acompanha o recente interesse crítico e sistemático dos meios acadêmicos brasileiros pela obra de Jacques Rancière, momento que Pedro Hussak van Velthen Ramos denomina de “terceiro momento da recepção da obra de Jacques Rancière, no Brasil, ligada ao interesse pela temática da estética”.[i]

Esse interesse se inicia, aponta Pedro Hussak, com o lançamento de Políticas da escrita (1995), o qual acompanhou o próprio percurso teórico de Jacques Rancière em direção ao domínio teórico da estética. Após a década de 1990, em especial com a tradução de A partilha do sensível (Editora 34, 2005), os pesquisadores brasileiros passaram a conceder maior atenção às reflexões estéticas de Jacques Rancière, um interesse que se inicia, afirma Pedro Hussak, e de maneira não pouco surpreendente, com o campo da arte contemporânea, que, através do texto, vislumbrou uma maneira alternativa de reconsiderar os vínculos entre estética e política.[ii]

 Ulteriormente, o trabalho de Jacques Rancière foi ganhando mais atenção nos departamentos de filosofia e de seus pesquisadores, de modo que se vê, cada vez mais, artigos, monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado dedicados a explorar essa intersecção proposta pelo filósofo, constituindo, assim, segundo Pedro Hussak, “uma recepção sólida [de seu pensamento] no Brasil (…) uma das mais interessantes e originais do mundo”.[iii]

Tal como A partilha do sensível, O método da cena e O trabalho das imagens: conversações com Andrea Soto Caldéron, para mencionarmos somente alguns, As palavras e os danos. Diálogo sobre a política da linguagem adota, como seu título já nos indica, o diálogo como forma textual, gênero que, poderíamos dizer, não deixa de ser caro a Rancière. Resultado do seminário organizado pelo filósofo e tradutor espanhol Javier Bassas, professor da Universidade de Barcelona, juntamente com Rancière, ocorrido em La Virreina Centre de la Imatge, em 2018, a obra que temos em mãos nasce desse movimento dialógico estabelecido entre Bassas e Rancière.

Se frisamos a importância do aspecto formal de As palavras e os danos, isso se deve ao papel notável, mas não ocasional, do diálogo na produção teórica do filósofo, como bem lembram Laurent Jean Pierre e Dork Zabunyan[iv]. De acordo com o próprio Jacques Rancière em conversa com os pesquisadores, uma entrevista não deve ser confundida com os resultados de um trabalho de pesquisa. Entretanto, ela denota uma parte não negligenciável do “método de igualdade”, processo defendido por Jacques Rancière desde o começo de sua produção teórica nos anos 1970.

Para o filósofo, uma entrevista não diminui a eficácia ou a potência do pensamento, comumente considerado em sua efetividade extrema no trabalho de pesquisa. Com o método de igualdade, Jacques Rancière postula que “não há lugar próprio para o pensamento”, pois este se encontra em todo o lugar, estando “sempre em atividade”.[v]

Se o pensamento não conserva um lugar determinado, então o que dizer da sua relação com as palavras, em especial sob a forma da escrita? Sendo um dos temas caros ao trabalho de Jacques Rancière, a ligação entre palavra, escrita e pensamento será explicitada em As palavras e os danos. Para o filósofo, as palavras, ao contrário do que foi legado pela tradição platônica (a qual privilegia o logos, isto é, o discurso em toda sua presença em detrimento da mudez da escrita), não são sombras opostas à sólida realidade das coisas. Elas próprias são realidades cuja ação constrói ou subverte uma ordem do mundo.

Constituindo realidades em si mesmas, as palavras se encarnam pela atividade escritural, estabelecendo ou subvertendo uma determinada partilha do sensível. E tal relação disruptiva entre linguagem e pensamento é o próprio fio condutor de Les mots et les torts, como podemos constatar logo no início: a partir da lógica da igualdade, a qual constitui o fundamento do pensamento rancièriano, como pensar uma palavra (parole) que não a traia[vi]?

Toda atividade do pensamento, lembra Javier Bassas, implica uma capacidade intelectual, a qual é, segundo Jacques Rancière, algo comumente partilhado, primordial e axiomático, encontrada no princípio de toda política: a igualdade das inteligências. Esta igualdade, atesta o filósofo, é o testemunho de toda contingência da ordem, revelando a falta de fundamento de qualquer ordenação social.

Nesse sentido, se todos possuem a mesma capacidade intelectual, então o trabalho do pensamento não seria exclusividade e privilégio de alguns, como quer a lógica da divisão do trabalho que liga cada corpo a determinada atividade, hierarquizando as práticas e, no limite, instaurando a dominação do pensamento sobre o trabalho manual ao distinguir dois tipos de seres humanos, uns ligados à atividade de abstração, sábios que argumentam e explicam, enquanto outros encontram seu destino atrelado à materialidade do mundo, ignorantes sem a posse do discurso intelectual.

Desse modo, o exercício filosófico de Jacques Rancière busca romper com essa lógica “que faz de uma potência comum [a inteligência] um trabalho específico”[vii], na tentativa de construir, através da escrita, “um plano de igualdade entre blocos de linguagem e blocos de pensamento normalmente separados”[viii] pela divisão das funções estabelecida pela ordem social. Aqui revela-se outra ideia principal do livro, qual seja, a de que a escrita não deve ser tomada como pura ilustração do pensamento.

Ela é a própria atividade do pensamento, cujo trabalho rompe o fio do tecido consensual que compõem as relações verticalizadas entre pensamento e sensibilidade, embaralhando, dessa maneira, as hierarquias entre os diferentes modos discursivos. Seja na escrita filosófica, seja nas práticas de emancipação políticas, o que Rancière procura é um plano de horizontalidade, uma ação que embaralhe as divisões que separam e definem em seu lugar próprio a experiência da práxis e a atividade do pensamento.

É importante sublinhar que a temática de As palavras e os danos, a saber, as relações entre linguagem, pensamento e política, é parte essencial da produção teórica de Jacques Rancière. Na ocasião de outra entrevista, concedida à revista Diacritics, o filósofo é interpelado por Davide Panagia a respeito de seu empreendimento filosófico: poder-se-ia qualificar suas reflexões sobre a democracia como uma “poética da política”, tendo em conta a ênfase atribuída à eficácia política das palavras[ix]?

Ora, se percorrermos a sua bibliografia, poderemos perceber que essa eficácia se encontra presente em diversos momentos de seu pensamento: se tomarmos, por exemplo, Os nomes da história: ensaio de poética do saber (1992), veremos como o filósofo nos mostra que o excesso de palavras entre os indivíduos é subjacente a todo acontecimento revolucionário, aparecendo sob “a forma específica de um deslocamento do dizer: uma apropriação ‘fora da verdade da palavra do outro’ que a faz significar diferentemente”[x], consequentemente “conflagrando os discursos, embaralhando os seus tempos e deslocando as palavras de seu caminho nominativo”[xi].

Essa temática também pode ser encontrada em O desentendimento (1995). Neste escrito, Jacques Rancière elabora o conceito de subjetivação política, compreendida enquanto o processo através do qual aqueles que não têm sua parte reconhecida na ordem social, aqueles que são invisíveis e inaudíveis politicamente, que não detêm nenhuma parte na comunidade, a “parte dos sem-parte”[xii], passam a declarar e a enunciar verbalmente, de maneira coletiva, a sua reivindicação à existência política – reivindicação que pode ser consciente ou não.

Essa luta por reconhecimento político deve ser interpretada como a manifestação por parte dos “sem-parcela” na comunidade – o demos ateniense, ou ainda o proletariado moderno – de um erro fundamental, de um litígio depositado na origem da trama social, isto é, de um “dano” (tort) causado pelas outras partes e que se encontra no princípio de organização da comunidade política: uma contagem das parcelas e das partes da comunidade, uma contagem que é, na verdade, uma “falsa conta, uma dupla contagem ou um erro de conta”[xiii], pois relega o povo à inexistência, ao mesmo tempo que revela a contingência de toda organização social.

É mediante o processo de subjetivação que ocorre o tratamento desse dano, possibilitando aos sujeitos políticos redesenhar a dimensão sensível, isto é, estética, da comunidade. Assim sendo, Jacques Rancière concebe a política como desentendimento, contrária de um espaço consensual mediante o qual poder-se-ia haver algum acordo em relação ao bem comum; ela é, essencialmente, uma disputa mediante a qual a parte dos sem-parte enunciam, pela palavra, a dimensão do seu dano. Nesse contexto, o “excesso de palavras” surge sob o conceito de “literaridade”, o qual indica a potencialidade desse excesso de desfazer “a relação entre a ordem das palavras e a ordem dos corpos”[xiv]. Além disso, a “literaridade” também concerne ao regime da escrita, ou seja, à própria condição de possibilidade da literatura e de seu limite, para além do qual ela se torna indistinta de outros regimes discursivos.[xv]

Esses exemplos servem para ilustrar e destacar essa questão fundamental que se encontra no cerne da filosofia de Jacques Rancière: a sua preocupação em torno das palavras, de sua eficácia política e de sua força disruptiva, do poder que seu excesso representa nos campos da política, das artes e dos saberes, bem como de seus efeitos na reconfiguração da ordem do sensível. Tal preocupação não é acidental ou circunstancial, pois é proveniente de um ponto específico e importante de seu pensamento, oriunda dos seus anos de formação intelectual, e que pode ser fixado, como afirma o filósofo Alain Badiou, na relação dialética entre saber e poder, entre saber e autoridade[xvi].

Nesse sentido, Les mots et les torts encontra-se no rastro dessa preocupação, e nesta obra o filósofo sintetiza, através de um discurso que evidencia o método da igualdade, os diferentes momentos de sua reflexão e pesquisa filosóficas que versam sobre o tema da linguagem e da política, confrontando questões que vão desde a sua posição face ao althusserianismo, até outras que envolvem a sua relação com a fenomenologia ou mesmo com a desconstrução derridiana.

Em alusão explícita ao As palavras e as coisas, de Michel Foucault, As palavras e os danos apresenta ao leitor uma reflexão dialógica acerca da forma específica da igualdade, o ponto polêmico e universal segundo o qual, de acordo com Rancière, a política se torna possível.[xvii]

*Renan Ferreira da Silva é doutorando em filosofia na USP.

Referência


Jacques Rancière e Javier Bassas. As palavras e os danos. Diálogo sobre a política da linguagem. Tradução: Lílian do Valle. São Paulo, Editora 34, 2024, 114 págs. [https://amzn.to/3yvOWoP]

Bibliografia


BADIOU, A. A aventura da filosofia francesa no século XX. Trad. de Antônio Teixeira, Gilson Iannini. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

HUSSAK v.V. RAMOS, P. “Prefácio”. In: SILVA, R. F. da. Jacques Rancière e a revolução silenciosa da literatura. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

RANCIÈRE, J. La méthode de l’égalité. Entretien avec Laurent Jeanpierre et Dork Zabunyan. Montrouge: Bayard Éditions, 2012.

RANCIÈRE, J. “L’arme théorique d’un recommencement du marxisme”. In: LASOWSKI, A. W. Althusser et nous. Paris: PUF, 2016.

RANCIÈRE, J. O desentendimento. Trad. de Ângela Lopes Leite. São Paulo: Editora 34, 2018.

RANCIÈRE, J. Os nomes da história: ensaio de poética do saber. Trad. de Mariana Echalar. São Paulo: Unesp, 2014.

RANCIÈRE, J; BASSAS, J. As palavras e os danos: diálogo sobre a política da linguagem. Trad. de Lílian do Valle. São Paulo: SOFIE/Editora 34, 2024.

RANCIÈRE, J.; PANAGIA, D. “Dissenting Words: A Conversation with Jacques Rancière. In: Diacritics, v. 30, n. 2, 2000.

SILVA, R. F. da. Jacques Rancière e a revolução silenciosa da literatura. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

Notas


[i] HUSSAK v.V. RAMOS, P. “Prefácio”. In: SILVA, R. F. da. Jacques Rancière e a revolução silenciosa da literatura. São Paulo: Editora Dialética, 2022, p. 13.

[ii] Ibidem, p. 15.

[iii] Ibidem.

[iv] RANCIÈRE, J. La méthode de l’égalité. Entretien avec Laurent Jeanpierre et Dork Zabunyan. Montrouge: Bayard Éditions, 2012, p. 7-8.

[v] Ibidem.

[vi] RANCIÈRE, J; BASSAS, J. As palavras e os danos: diálogo sobre a política da linguagem. Trad. de Lílian do Valle. São Paulo: SOFIE/Editora 34, 2024, p. 15.

[vii] RANCIÈRE, J. “L’arme théorique d’un recommencement du marxisme”. In: LASOWSKI, A. W. Althusser et nous. Paris: PUF, 2016, p. 247.

[viii] RANCIÈRE, J; BASSAS, J. As palavras e os danos: diálogo sobre a política da linguagem, p. 23.

[ix] RANCIÈRE, J.; PANAGIA, D. “Dissenting Words: A Conversation with Jacques Rancière”. In: Diacritics, v. 30, n. 2, 2000, p. 113.

[x] RANCIÈRE, J. Os nomes da história: ensaio de poética do saber. Trad. de Mariana Echalar. São Paulo: Unesp, 2014, p. 46.

[xi] SILVA, R. F. da. Jacques Rancière e a revolução silenciosa da literatura, p. 29.

[xii] RANCIÈRE, J. O desentendimento. Trad. de Ângela Lopes Leite. São Paulo: Editora 34, 2018, p. 24.

[xiii] Ibidem, p. 21.

[xiv] Ibidem, p. 49.

[xv] Sobre a ideia de “literaridade” em Rancière, Cf. SILVA, R. F. da. Jacques Rancière e a revolução silenciosa da literatura, p. 75 e ss.

[xvi] BADIOU, A. A aventura da filosofia francesa no século XX. Trad. de Antônio Teixeira, Gilson Iannini. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 178.

[xvii] Versão parcialmente modificada da resenha, originalmente publicada na Prometeica – Revista De Filosofía Y Ciencias (DOI: 10.34024/prometeica.2022.24.12945). Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/prometeica/article/view/12945


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • Silvio de Almeida e Anielle Francoescada espiral 06/09/2024 Por MICHEL MONTEZUMA: Na política não há dilema, há custo
  • Silvio Almeida — entre o espetáculo e o vividoSilvio Almeida 5 09/09/2024 Por ANTÔNIO DAVID: Elementos para um diagnóstico de época a partir da acusação de assédio sexual contra Silvio Almeida
  • Ken Loach – a trilogia do desamparocultura útero magnético 09/09/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: O cineasta que conseguiu capturar a essência da classe trabalhadora com autenticidade e compaixão
  • Silvio Almeida: falta explicarproibido estacionar 10/09/2024 Por CARLOS TAUTZ: Silvio Almeida acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame
  • A chegada do identitarismo ao Brasilcores vivas 07/09/2024 Por BRUNA FRASCOLLA: Quando a onda identitária varreu o Brasil na década passada, os seus oponentes tinham, por assim dizer, uma massa crítica já formada na década anterior
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES