Por CLARISSE CASTILHOS & ALICE ITANI*
A luta contra extrativismo representa uma luta permanente contra essa forma de destruição no planeta
Introdução
A manifestação das populações indígenas no Congresso Nacional contra o projeto de lei 490 que altera a forma de demarcação de terras parece não nos tocar. Ela aparece como uma questão pontual. E, que afeta somente essas populações. No entanto, muito mais que isso, é também parte das veias abertas que sangram e que toca a todos nós no país, como ao planeta, utilizando os termos de Galeano que já nos anos 1970 chamava atenção para a questão. São terras que estão sendo expropriadas, a despeito do que assegura a Constituição para aumentar áreas a serem saqueadas para o extrativismo. E, serem consideradas “legais” essas atividades extrativas, para não dizer, aumentar a quantidade de veias abertas no país
No entanto, assistimos esse conflito como às grandes violências cotidianas que vivem as populações indígenas em sua tarefa de resistência para a proteção da Terra. Escrevemos Terra em letra maiúscula porque não é somente a terra como objeto e simples solo como aquela que é sujeito de direitos que compõem uma quantidade e variedade de seres vivos, isto é, de todas as espécies, que nela habitam e que produz o humano e sua capacidade de subsistência. Assistimos as cenas como todas as anteriores como a um programa de televisão, como sendo apenas uma questão de populações indígenas, e não de todos os espaços que classificamos como biomas e as florestas.
Esse é um cenário que mostra como a sociedade está diante de riscos e perigos sem compreender o que está em questão.
O extrativismo como fonte de maior guerra contra o humano
O extrativismo tal como ocorre no país como nos demais países latino-americanos é a maior fonte de guerra. São terras que são expropriadas para exploração, roubo de minerais, madeira e demais produtos que interessam a grandes corporações. Svampa (2012) há mais de uma década vem insistindo sobre o risco do extrativismo com novos atores sobre cenário latino-americano tanto na expropriação de terras como na utilização da água. A entrada do mercado chinês acirrou esses riscos e perigos, com a importação notadamente de minérios, soja, carne e demais derivados de proteína animal provenientes dos países latino-americanos . No caso de minérios há também compra direta de terras e compra de produtos de roubo ilegal de madeira, cobre e demais produtos minerais e também participação direta na implantação de empresas para expropriação dos minerais.
O extrativismo, como analisa Araoz (2021) repetindo Galeano (1978) é o maior buraco aberto na vida latino-americana há mais de cinco séculos. E, que emerge juntamente com a concepção elaborada de divisão entre o que é humano e o que é a natureza. Ignora-se de onde vem o humano e de onde êle se origina. E que a cultura de milhões de anos pelo cuidado e simbiose com o que se denomina como sendo natureza.
Para muito além de um simples problema ambiental, o extrativismo se apresenta dentro de uma profunda separação entre a terra e o humano. Por essa concepção, não se entende mais do que se trata o humano e, por isso, não está compreendido os riscos e perigos dessa divisão. Foi dentro dessa fratura que se iniciou a colonização da América há mais de cinco séculos. E que representou e representa a apropriação e o destino geológico e antropológico dos povos latino-americanos. E mais que isso, no processo de colonização que se mantém até os dias atuais se apropriaram da condição de vida na terra. Os povos nativos e tradicionais foram deslegitimados, considerando-se suas falas e suas culturas como atrasadas, “não modernas”, justificando a usurpação e o terror instalados sobre eles. Atualmente, utilizam-se também novos termos, como sustentabilidade, economia verde e outros para justificar esse processo de usurpação e roubo pelas grandes corporações.
Desde o processo de colonização o saque das terras e dos minerais com o genocídio dos povos representa essa guerra, que é perpétua, que não considera a terra como mãe e geradora do processo de produção da vida. É uma guerra contra o mundo, sobretudo com as mulheres que são as representantes do cuidado com a terra, com a água e com as sementes. São as que mais estão envolvidas nos conflitos pelas suas lutas da sobrevivência da terra latino-americana.
Coloca-se a humanidade em risco de extinção bastante avançado. Há uma violenta manipulação do “considerado processo civilizatório” que pode ser considerado muito mais como barbárie, como analisou Castoriadis (2005). Essa é uma civilização que não tem futuro para oferecer para esta e para próximas gerações. Essa civilização é incapaz de compreender e explicar o que está ocorrendo. Está em curso o principio de subjetivação atividade de violação por diferentes formas sociais, pelo geometabolismo da barbárie, pela usurpação da mina e da plantação que violam todos os princípios da produção da vida.
É o mundo moderno que foi criado sobre o principio da violência, de uma guerra mundial sobre o planeta. E o extrativismo representa o limite da exploração e depredação como modo de vida. É o princípio da economia produtiva assentada sobre manipulação das populações e expropriação dos territórios com destruição da diversidade vital. É o genocídio associado ao terricídio, com a destruição dos seres vivos, dos povos.
Da pedagogia da terra à da submissão
Assiste-se a formas de submissão de nossa sociedade, cada vez mais colonizada, diante de uma pedagogia do terror, que é a forma de destruição do que há de sagrado e humano. Diante da América saqueada com solo devastado de soja e criação de proteína animal para outros, não é a destruição da biosfera, mas há uma destruição do humano.
A pedagogia do terror que se instala é o da violação, que está presente nos territórios latinoamericanos desde que os conquistadores cometeram o maior genocídio da história da humanidade, na mina de Potosi, com milhões de mineiros mortos (Galeano, 1971), inaugurando a modernidade no século 16. E o conquistador sob nome de capital é consagrado como êxito e como forma do homem moderno. As violações são graves, tanto antropologicamente, como ontológico e politicamente, porque por meio dessa pedagogia do terror nos constituímos, como modernos, como espécie violenta e perigosa e insensível ante o sofrimento da vida (Araoz, 2021).
Utilizou-se para instalação da modernidade, o espírito cientifico como base racional, mas como uma ciência que emerge como instrumento de poder do Estado e instrumento econômico-financeira das corporações privadas. Esse espírito científico também expropriou as mulheres de seu papel de cuidado (Federici, 2019) ao deslegitimar aquelas que detinham os conhecimentos para a cura.
A natureza foi expropriada dos povos e esquartejada em denominações apenas como recursos. Foi um processo de extinção biopolítica que tirou o humano da natureza, tirou o humano da possibilidade de cultivo da terra. A água, por exemplo, chamada de recursos hídricos. Os minérios, lítio, cobre, petróleo e outros minerais como recursos minerais. Não há denominação para a terra, e esta passou a ser disputada pelo mundo como apenas um recurso.
A desnaturalização da noção de natureza também des-humanizou o humano. O processo de usurpação da natureza por meio da linguagem, como um instrumento de dominação da subjetividade humana (Araoz, 2019) desde a Idade Moderna. Um processo de racionalização em que a condição humana deixou de ter A natureza passou a ser apenas um “problema ambiental” e que agora envolve a mudança climática. Pelos discursos não estão em questão a vida no planeta, todos os povos que nele habitam em todo o processo de produção da vida que está na relação dos povos com demais seres vivos e seus cuidados com a terra para a subsistência. Pela linguagem elaborada por teorias eurocêntricas desde a Modernidade, tirou do ser humano suas próprias formas de produzir a vida. Decretou-se a morte da natureza e passou a ser objeto de conquista, de guerra permanente por meio da violência contra os povos que lutam pela sobrevivência.
Considerações finais
Liberar a terra significa antes de tudo liberar a condição humana A luta contra extrativismo representa uma luta permanente contra essa forma de destruição no planeta. E, para além disso, representa a luta por recuperar o humano, por encontrar caminhos para humanização para reapropriação do futuro. Essa é a luta principal atual.
*Clarisse Castilhos, doutora em economia pela Université de Paris X Nanterre, é pesquisadora em saúde e meio ambiente na Fundação de Economia e Estatística (FEE).
*Alice Itani, doutora em sociologia pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, é professora na Unesp.
Referências
Araoz, H. M. Los dolores de Nuestra America y la condicion neocolonial. Extrativismo y biopolitica de la expropriacion. Observatorio social de America Latina, v. 13, n. 32, 2012.
Araoz, H. M. Naturaleza, discursos y linguajes de valoración. Revista Heterotopias del área de estudos críticos del discurso de FFyH. V. 2, n. 4. 2019.
Araoz, H.M. Guerra de mundos e fraturas extrativistas na America Latina. Debate on line, junho 2021.
Castoriadis, C. Une société à la derive. Paris: Seuil, 2005.
Federici. S. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2019.
Galeano, E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971/1978.
Svampa, M. Consenso de las commodities, giroecoterritorial y pensamento critico en America Latina. Observatorio social de America Latina, v. 13, n. 32, 2012