Por LISZT VIEIRA*
A ameaça da crise ecológica, motivada pela destruição da biodiversidade e pela crise das mudanças climáticas, aponta para uma verdadeira crise de civilização
As Nações Unidas realizam todo ano um Encontro Internacional para discutir a crise climática e suas consequências. Trata-se da Conferências das Partes, COP na sigla em inglês. Este ano, a COP 30 será realizada no Brasil, na cidade de Belém.
As decisões são tomadas por consenso e teoricamente obrigam os países signatários. Essas decisões estão sempre muito aquém da necessidade real de enfrentar os eventos climáticos extremos que se tornam cada vez mais frequentes. Além disso, as decisões da COP não costumam ser cumpridas pelos países signatários em sua integridade, para dizer o mínimo.
Inicialmente, é justo reconhecer que os nomes escolhidos pelo Governo Brasileiro para a COP 30 são excelentes: o embaixador André Corrêa do Lago, como presidente da COP 30, e Ana Toni, Secretária Nacional da Mudança do Clima, como Secretária Executiva. Mas, depois da frustração de todas as COPs anteriores, culminando com o fracasso retumbante da COP 29, em Azerbaijão, o desafio parece insuperável depois que o presidente criminoso dos EUA retirou seu país do Acordo do Clima da Conferência de Paris de 2015 e nomeou negacionistas climáticos para cuidarem dos órgãos de proteção ambiental nos EUA.
Donald Trump abriu a porteira. A França pediu em 24/1 último à União Europeia (UE) que suspenda indefinidamente a implementação de normas sobre padrões ambientais e de direitos humanos na cadeia de suprimentos, alegando que elas são muito onerosas para as empresas. Ou seja, a França pede que União Europeia suspenda normas ambientais e de direitos humanos para reduzir impacto nas empresas. O Ministro francês também solicitou a revisão de um segundo pacote de medidas, muito criticado por empresários, relacionado à apresentação de relatórios sobre sustentabilidade corporativa (AFP e O Globo, 24/1/2025).
E, no Brasil, a política de proteção ambiental enfrenta inimigos poderosos dentro do próprio governo. A Ministra do Meio Ambiente se equilibra em corda bamba. O Ministro da Agricultura apoia o desmatamento promovido pela agropecuária, mineração, madeireiras e garimpos. O Ministro da Energia apoia a exploração de petróleo na Margem Equatorial, na altura da Bacia do Amazonas, além de apoiar o combustível fóssil em geral. E o Ministro do Transporte apoia o asfaltamento da BR 319 que corta a Amazônia ligando Manaus a Porto Velho, com impactos ambientais desastrosos.
O Brasil é um dos países mais ricos em biodiversidade do mundo. É um dos 18 países que juntos possuem 70% da biodiversidade do planeta. O conjunto dos biomas brasileiros terrestres (Floresta de Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal e Campos do Sul) abriga 20% das espécies do planeta, constituindo 20% da flora global. Com a extraordinária riqueza de seus biomas, o Brasil enfrentou ano passado catástrofes ambientais, como incêndios na Amazônia, Cerrado, Pantanal, enchentes no Rio Grande do Sul, secas no Nordeste etc.
O agronegócio brasileiro é o grande vetor da destruição biológica e do desequilíbrio climático no país. É o grande responsável pelos incêndios florestais, eliminação e degradação das florestas, dos solos e recursos hídricos, aniquilação da biodiversidade, intoxicação por agrotóxicos, pela eutrofização das águas, violência contra as populações indígenas, quilombolas, comunidades rurais e seus modos de vida.
O agronegócio é também responsável pela maior parte das emissões brasileiras de carbono. Em 2021, o Brasil emitiu 2,42 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa (GEE). O agronegócio responde por 74% desse total, já que 25% dessas emissões decorrem diretamente da agropecuária e 49% do desmatamento. O Brasil é o 7º maior emissor de gases de efeito estufa do mundo e o 4º maior emissor per capita, após os EUA, a Rússia e a China.
Com esse passivo ambiental, apesar da redução no desmatamento, o Governo Brasileiro não está bem na fita. E, para articular os interesses de todos os países participantes, o Itamaraty terá de fazer malabarismos diplomáticos para chegar a uma Declaração Final razoável na COP 30. Nas COPs anteriores, os países árabes proibiram críticas ao combustível fóssil. Outro ponto de grande destaque nas COPs precedentes e divulgado a quatro ventos pela mídia foi o conto de fadas do mercado de carbono, mediante o qual um país compra de outro o direito de poluir. Isso, evidentemente, não resolve nada, porque o que é poupado num país é poluído no outro.
Além disso, as COPs têm permitido uma absurda ingerência dos lobbies da indústria de combustíveis fósseis, a principal responsável pela desestabilização do sistema climático. A COP 29, por exemplo, contou com a presença de ao menos 1.773 representantes do lobby fóssil. O número supera as delegações dos países mais afetados pela crise do clima.
Lembremos que a COP29 aprovou US$ 300 bilhões anuais para financiamento climático. Essa quantia está muito longe do US$ 1,3 trilhão por ano proposto pelas nações em desenvolvimento, com base em valor estimado pela ONU. O valor de 300 bilhões de dólares foi considerado incompatível com a meta de manter os objetivos do Acordo de Paris de limitar o aquecimento do planeta em 1,5°C. Sem financiamento adequado, os cortes de emissões de carbono serão insuficientes.
A título de comparação, segundo dados fornecidos pela Reuters/Folha de S. Paulo em 24/11 último, em 2023 os governos do mundo todo gastaram cerca de US$ 6,7 bilhões (R$ 38,8 bilhões) por dia em despesas militares, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo. Isso significa que o valor decidido na COP29 equivale a 45 dias de despesas militares globais. Segundo a revista Forbes, a fortuna de Elon Musk, o homem mais rico do mundo, era de US$ 321,7 bilhões (R$ 1,8 trilhão) no final de novembro.
No capitalismo, a produção econômica visa a lucro. O meio ambiente é visto como externalidade negativa. Isso é um ponto em comum entre o neoliberalismo e o tradicional desenvolvimentismo que sempre considerou o meio ambiente como um entrave ao desenvolvimento. Mas a civilização do combustível fóssil ameaça a sobrevivência humana no planeta.
Produz calor letal, fome pela redução e encarecimento da produção agrícola, destruição das florestas por incêndios, esgotamento da água potável, morte dos oceanos, tufões, inundações, ar irrespirável, pragas, secas, colapso econômico, conflitos climáticos, guerras, crise de refugiados. Dados da agência europeia do clima – Copernicus – mostram que o calor em 2024 bateu recordes e superou as previsões. Em 2024, pela primeira vez foi rompida a marca de 1,5º C de aumento da temperatura, que era o teto estabelecido pela Conferência de Paris em 2015 (COP 21).
O aspecto mais dramático da perda de biodiversidade é um gigantesco processo de extinção que ameaça mais de um milhão das cerca de oito milhões de espécies vegetais e animais conhecidas no planeta, com 75% dos ecossistemas tendo sido alterados pela atividade humana, segundo cientistas. As conferências internacionais sobre biodiversidade têm produzido resultados muito precários. É uma crise que anda de mãos dadas com a do aquecimento global, em muitos casos tendo causas comuns.
As fontes de energia renovável tornaram-se competitivas, mas as forças econômicas do mercado e os governos por elas controlados sabotam a transformação da energia fóssil poluidora em energia renovável que, entretanto, vem crescendo consideravelmente. As energias renováveis crescem mais rápido, mas os fósseis dominarão a matriz energética até 2040, no mínimo. Os combustíveis fósseis – petróleo/ gás/carvão – deverão constituir ainda três quartos da matriz energética mundial em 2040.
A crise ecológica, expressando a tradicional contradição “homem x natureza”, tende a ser a questão chave para a superação do capitalismo tal como o conhecemos hoje. A sobrevivência da humanidade está em risco pelo esgotamento, em futuro previsível, de matérias primas essenciais à vida humana, tendo em vista o uso abusivo de recursos naturais que destroem a biodiversidade e liberam gases de efeito estufa, provocando o aquecimento global, com enorme impacto nas mudanças climáticas.
A crescente escassez de recursos agrava a situação mundial, tornando as guerras mais prováveis. Por outro lado, o conceito de crescimento econômico baseado na destruição de recursos naturais vem sendo questionado em toda parte por movimentos ambientalistas e por instituições científicas internacionais.
A curto prazo, trata-se de tomar medidas imediatas em favor da transição energética para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e abrandar os graves efeitos da crise climática. Mas a mudança para uma economia global com base na transição energética levará a conflitos, com implicações geopolíticas por afetar as fontes do poder nacional, o processo de globalização, as relações entre as grandes potências e entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Veremos provavelmente novas formas de competição e confronto que vão moldar novas configurações geopolíticas à medida em que se refaz todo o sistema energético, visando à superação dos combustíveis fósseis.
De qualquer forma, a transição energética, por si só, tampouco será suficiente. A ganância em busca do lucro no sistema capitalista tem prevalecido sobre o instinto de sobrevivência da espécie humana no planeta. As utopias hoje consideradas quiméricas, como o ecossocialismo ou decrescimento, serão colocadas na mesa e discutidas como a solução possível.
A ameaça da crise ecológica, motivada pela destruição da biodiversidade e pela crise das mudanças climáticas, aponta para uma verdadeira crise de civilização, para a necessidade de um novo modo de vida e de produção, ou seja, de uma profunda transformação ecológica para garantir a sobrevivência da humanidade no planeta.
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]
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