Duas eleições

Imagem: Silvia Faustino Saes
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por IGOR GRABOIS & LEONARDO SACRAMENTO*

A derrota do bolsonarismo e a ascensão de uma “nova” esquerda

Há três consensos gerais nos meios de comunicação sobre o resultado das eleições de 2020: as derrotas do bolsonarismo e de Bolsonaro, a pulverização e o respiro da esquerda. As derrotas do bolsonarismo e do Bolsonaro são evidentes e não exigem grandes explicações, devendo ser entendidas à luz do tipo de vitória da esquerda. Já a pulverização é tratada pela mídia Huck-Moro como a prevalência do campo de centro, como não poderia ser diferente. A conclusão da mídia é uma dedução a priori.

A eleição de 2020 deve ser vista em duas partes: uma eleição para o legislativo e outra para o executivo. É comum entre partidos a ideia, pouco comprovada empiricamente, de que uma boa candidatura do executivo alavanca a chapa do legislativo. E assim foi desde a redemocratização. A reforma eleitoral encampada por Cunha cumpriu parcialmente o seu objetivo: centralizar votos nos grandes partidos. Contudo, como toda lei, apresentou as suas contradições e paradoxos quando aplicada, quando posta sobre e sob a realidade.

Nunca a eleição do legislativo foi tão descolada da eleição do executivo. O que era um fenômeno dos partidos da direita, se espraiou pela esquerda. Os casos do Rio e Porto Alegre são exemplares, onde o desempenho do PT, PSOL, PCdoB e PDT foi distinto da performance do candidato majoritário.

A eleição para o executivo é controlada pela máquina partidária, em que se deve escolher apenas um candidato. Essa eleição reproduziu a tradição, deixando o eleitorado entre o projeto bolsonarista, o projeto da esquerda tradicional e o projeto da direita tradicional. O que a eleição do executivo mostrou? Mostrou que entre a esquerda tradicional e a direita tradicional, a direita tradicional, capitaneada pela ascensão do DEM, tem vantagem. Faz sentido! Em um contexto de dúvidas e crise, o eleitor escolheu normalmente aquele que já governou. O discurso de Covas contra Boulos sobre a falta de experiência do segundo provavelmente vem dessa percepção.

A eleição para o legislativo não possui controle tão efetivo da máquina partidária, pois o essencial é completar a chapa ou ter a maior quantidade de candidatos possível, a fim de atingir o quociente eleitoral. Lógico que o candidato precisa ter algum trabalho de base, mas a avaliação é mais heterodoxa. Aqui, o Carlos da Quitanda entra, o que é impensável aos ritos distintivos (e financeiros) da escolha para a disputa no executivo.

O que as urnas mostraram sobre a eleição para o legislativo? Primeiro, como já dito, a derrota do bolsonarismo (aqui não é o Bolsonaro somente). Militares e policiais civis caíram drasticamente nas grandes cidades, assim como olavetes e bolsonaristasanti-vacinas. Isso é evidente nos principais centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre. A direita tradicional também perdeu espaço, aliás, muito espaço. O centro salvador da mídia e do mercado, que ganhou de fato o executivo, não foi tão bem no legislativo. A rigor, se comparado com a eleição do executivo, seguindo a ideia da correspondência, foi mal.

O diferente é a eleição da esquerda. A eleição da esquerda traz recados a todos, especialmente à própria. Candidatos tradicionais, gestados pela redemocratização e pela Nova República, foram em parte substituídos pelo eleitorado de esquerda por uma esquerda mais popular, identitária e jovem. O que restou, sobreviveu por recall, não sem estragos, como a diminuição de votos. A bancada petista da capital paulista é uma exceção. Saltam aos olhos as candidaturas individuais e coletivas de mulheres, negras e pessoas trans.

Aviso: o termo identitário não é utilizado de forma pejorativa, como em alguns círculos da esquerda, mas de forma conceitual. Explicamos: as identidades aqui utilizadas estão tendo uma emergência com a deflagração e desregulamentação do mundo do trabalho, em que os sindicatos, esteios tradicionais da esquerda na Nova República, se enfraqueceram, especialmente depois de Reforma Trabalhista de 2017. Sem a identidade do mundo do trabalho formal, com carteira assinada, está emergindo uma identidade multifacetada, que vai da raça e gênero, os dois com mais capilaridade, ao Fulano do Uber, o Ciclano dos Entregadores, o Beltrano dos Aplicativos, como aconteceu na Câmara de Vereadores de São Paulo e em mais algumas.

Se antes havia o Fulano da Saúde, o Beltrano do Transporte, o Joãozinho da Educação, agora emergem candidaturas afinadas com outras identidades, com identidades mais jovens. O PSOL, de longe, é o partido que mais apresentou esse tipo de candidaturas, atingindo grande projeção nas duas principais câmaras do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Ahh, mas tem mais 5.000 municípios. Sim, mas a ascensão se dá nos principais colégios eleitorais do país, nas cidades mais urbanizadas e problemáticas, e que costumam dar o tom para as médias cidades. Bolsonaro venceu em menos cidades do que Haddad em 2018, mas venceu com grande margem nas grandes e médias cidades. O recado das grandes cidades costuma decidir sobre os desejos das pequenas cidades. O recado é: o PSOL é o principal vencedor das eleições de 2020. E perceba, conclui-se a vitória do PSOL sem entrar no mérito da eleição de Boulos. É vencedor somente pelo que aconteceu na eleição para o legislativo.

Lógico, essas candidaturas possuem ainda pouca capacidade de debater políticas públicas, orçamento e afins. Mas isso não é culpa delas, mas do avanço do neoliberalismo sobre a Constituição e o mundo do trabalho. De certa forma, são a expressão popular desse processo contraditório, e a forma como o povo está se contrapondo. A conquista dessa capacidade, agora, é de inteira responsabilidade dos partidos.

Os candidatos tradicionais de esquerda perderam espaço, ou melhor, foram substituídos. Isso significa que a perspectiva do que o eleitorado de esquerda possui sobre candidaturas de esquerda está em mutação. Os candidatos tradicionais que venceram, ou aqueles mais vinculados a pautas tradicionais, como o Tarcísio no Rio, tem forte intersecção com as pautas identitárias. Quem não tem, sofreu com a diminuição dos votos ou com a não eleição.

Uma cidade chamou a atenção, e deve ser analisada como estudo de caso. Em Ribeirão Preto, terra do palocismo, PT e PSOL elegeram três vereadores, com diminuição de 28 para 22 cadeiras na Câmara. Dos três vencedores, dois são mandatos populares vinculados ao movimento negro, movimento de mulheres, movimento LGBTIA+ e movimento por moradia. O outro vencedor, uma militante estudantil de 21 anos (PT), se forjou nas manifestações estudantis contra o governo Bolsonaro no primeiro ano de governo. O PSB elegeu mais dois candidatos de esquerda, vinculados a um bairro negligenciado pelo Poder Público. Esse bairro também abriga o maior assentamento do MST da região, que, cumpre dizer, é considerada a “capital do agronegócio”. Além de terras de caciques da esquerda, a cidade é também pródiga em caciques da direita. Hoje está em evidência Baleia Rossi, presidente nacional do MDB e virtual candidato à presidência da Câmara dos Deputados.

Há atualmente na Câmara da cidade um vereador do PT e outro do PDT, que podem ser classificados como de esquerda, mas com atuações mais institucionais e tradicionais (os dois são médicos em uma cidade que possui uma das melhores razões de médicos por habitantes do pais, o que não significa que tenham médicos nos postos de saúde). Os cinco eleitos são de perfil completamente distinto, promovendo a bancada mais à esquerda da história da cidade, incluindo a primeira gestão Palocci, quando ainda era classificado na esquerda. A eleição das duas candidaturas pelo PT apresenta ainda a possibilidade de jogar uma pá de cal no palocismo, que, surpreendentemente, ainda sobrevive em flancos do PT municipal.

Em São Carlos e Araraquara, duas cidades importantes do centro paulista, venceram candidaturas do mesmo perfil pelo PT, PSOL e PC do B. O mesmo ocorreu em cidades pelo interior, reduto muito mais conservador do que a capital paulista (se não fosse o interior na última eleição para governador, Dória não venceria de França). Visivelmente, a expectativa do eleitorado de esquerda mudou de um candidato homem, branco e progressista, ou uma mulher branca de terno feminino, para uma mulher, negra e popular.

Os motivos mais sociológicos dessa mudança são objetos para outro texto. Os motivos eleitorais estão muito mais voltados ao bolsonarismo. Esse perfil é objeto do bolsonarismo, e foi o perfil que mais se voltou contra ao bolsonarismo e ao Bolsonaro. Afinal, foi a Marielle Franco que morreu nas mãos de grupos paramilitares de direita vinculados ao bolsonarismo e à família do presidente. Provavelmente, esse perfil conseguiu se afirmar politicamente, socialmente e existencialmente (“se fere a minha existência…”)  ao avanço do protofascismo liberal. As notas no Twitter dos políticos tradicionais de esquerda não foram suficientes.

O fato é que essas candidaturas conseguiram romper bolhas eleitorais e grupais, como parece indicar a quantidade de votos de alguns candidatos sobre alguns bairros, dando a impressão (há necessidade de análise mais rigorosa) de terem entrado em certos círculos mais conservadores, como os evangélicos. A debacle de Russomano e a de Crivela também indicam isso. Esse último foi colocado no segundo turno por um operativo religioso e miliciano às vésperas da eleição. E, por que não, a ascensão de Boulos, cuja identidade é de um movimento que não tem vínculo direto e formal com o mundo do trabalho, é o outro elemento indicador dessa mudança.

Boulos, por sinal, foi um dos poucos candidatos não tradicionais que a esquerda escolheu para disputar o executivo (a Manuela está em uma intersecção evidente com os movimentos de mulheres e de jovens), e, não coincidentemente, foi o que teve mais saldos políticos. Em Belo Horizonte, outro exemplo, mesmo com a vitória certa de Kalil em virtude da forma como se portou na pandemia (oposição a Bolsonaro), Áurea Carolina, do PSOL, obteve impressionantes 8,33% dos votos válidos.

A tentativa de conciliar esses mundos parece ter fracassado. A tentativa mais assertiva foi a de Rui Costa, que escolheu, a despeito dos coletivos de mulheres negras do próprio partido (máquina sobre a militância), uma militar negra, procurando conciliar justamente o que o eleitorado não queria conciliar: o bolsonarismo mais ameno e as pautas identitárias e populares de esquerda. Ressalta-se que a candidata não é bolsonarista, mas a imagem depende mais da conjuntura do que do desejo e da convicção pessoal. Era uma policial militar em uma cidade em que Bolsonaro goza da maior rejeição entre as capitais. Rui Costa cometeu o maior erro estratégico dos últimos anos, em nome do tradicionalismo e da máquina. Fracassou frente a um candidato do DEM escolhido pelo ACM Neto, que enfrentou o bolsonarismo na pandemia e concedeu o mesmo status social e jurídico das igrejas aos terreiros de candomblé, uma demanda histórica do movimento negro. A conciliação não é possível! Entre esquerda tradicional e direita tradicional, a direita tradicional levou larga vantagem.

Em síntese, não é a pulverização dos votos no executivo para um centro criado artificialmente por Eduardo Cunha que explica a derrota do bolsonarismo e de Bolsonaro, mas é a ascensão de um novo perfil da esquerda no legislativo, pois foi ele que conseguiu estabelecer a polarização ao projeto liberal-protofascista. A escolha do candidato para o executivo é controlada. Lógico que será um homem branco de perfil tradicional, tanto à direita quanto à esquerda. A eleição para o legislativo permite analisar o que realmente aconteceu com os votos e os seus recados explícitos e implícitos.

As urnas falaram para os partidos de esquerda. Alguns desaparecerão em virtude da cláusula de barreira disfarçada de quociente, outros terão que se reformular. O fato é que a eleição foi positiva para a esquerda, apesar dos números absolutos. Surgiu uma esquerda nas câmaras que tende a atropelar o bolsonarismo, o executivo tradicional e as máquinas partidárias. Vamos ver como todos responderão. O bolsonarismo e o executivo, controlado pela direita tradicional, já sabemos. Resta saber o que a máquina partidária, especialmente do PT, responderá. Se responder como o Rui Costa, será cancelado. E não será pelo Twitter.

*Igor Grabois, economista, é diretor da Grabois Olímpio Consultoria Política.

*Leonardo Sacramento é doutor em Educação pela UFSCar. Autor de A Universidade Mercantil: um estudo sobre a relação entre a universidade pública e o capital privado (Appris).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Carla Teixeira Fábio Konder Comparato Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Bernardo Pericás João Lanari Bo Luis Felipe Miguel Paulo Martins Eugênio Bucci Henry Burnett Gilberto Maringoni Daniel Costa Renato Dagnino Manchetômetro Matheus Silveira de Souza Antonino Infranca Eleutério F. S. Prado Bento Prado Jr. Leonardo Boff Vinício Carrilho Martinez Berenice Bento Otaviano Helene Rubens Pinto Lyra Tadeu Valadares Priscila Figueiredo Luiz Carlos Bresser-Pereira Michael Löwy Armando Boito Celso Favaretto Marcus Ianoni Marcos Silva Claudio Katz Ari Marcelo Solon Daniel Afonso da Silva Chico Whitaker André Márcio Neves Soares João Paulo Ayub Fonseca Milton Pinheiro Gerson Almeida Yuri Martins-Fontes Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Antunes Alexandre Aragão de Albuquerque Gilberto Lopes Paulo Sérgio Pinheiro Maria Rita Kehl Marilena Chauí Tales Ab'Sáber Leda Maria Paulani Annateresa Fabris Anselm Jappe Fernando Nogueira da Costa Salem Nasser Celso Frederico José Costa Júnior Andrés del Río Ladislau Dowbor Heraldo Campos Ricardo Musse Antônio Sales Rios Neto Érico Andrade Everaldo de Oliveira Andrade José Dirceu Manuel Domingos Neto Kátia Gerab Baggio Ronald León Núñez Alexandre de Freitas Barbosa Jean Marc Von Der Weid Mariarosaria Fabris Ricardo Fabbrini José Micaelson Lacerda Morais Vladimir Safatle Michel Goulart da Silva Luciano Nascimento Jean Pierre Chauvin Marjorie C. Marona Vanderlei Tenório Atilio A. Boron João Carlos Loebens Francisco Fernandes Ladeira Francisco de Oliveira Barros Júnior João Sette Whitaker Ferreira Carlos Tautz Paulo Capel Narvai Daniel Brazil Marcelo Guimarães Lima Plínio de Arruda Sampaio Jr. Samuel Kilsztajn Eliziário Andrade Remy José Fontana Ricardo Abramovay Airton Paschoa Elias Jabbour José Geraldo Couto Lincoln Secco José Machado Moita Neto Sandra Bitencourt Denilson Cordeiro Flávio Aguiar Bruno Machado Francisco Pereira de Farias Afrânio Catani Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Roberto Alves Jorge Branco Lorenzo Vitral Eduardo Borges Dênis de Moraes Thomas Piketty Ronald Rocha Valerio Arcary Osvaldo Coggiola Luís Fernando Vitagliano Flávio R. Kothe Benicio Viero Schmidt Alysson Leandro Mascaro João Feres Júnior Eleonora Albano Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Boaventura de Sousa Santos Fernão Pessoa Ramos Marilia Pacheco Fiorillo Andrew Korybko Alexandre de Lima Castro Tranjan Igor Felippe Santos Rafael R. Ioris Leonardo Avritzer Juarez Guimarães Mário Maestri João Carlos Salles João Adolfo Hansen José Luís Fiori Tarso Genro Chico Alencar Julian Rodrigues Rodrigo de Faria Caio Bugiato Paulo Fernandes Silveira Henri Acselrad Dennis Oliveira Leonardo Sacramento Valerio Arcary Luiz Eduardo Soares Liszt Vieira Slavoj Žižek Eugênio Trivinho Lucas Fiaschetti Estevez Marcos Aurélio da Silva Jorge Luiz Souto Maior José Raimundo Trindade Luiz Werneck Vianna Bernardo Ricupero Marcelo Módolo André Singer Antonio Martins Walnice Nogueira Galvão Luiz Marques Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Renato Martins Michael Roberts Gabriel Cohn

NOVAS PUBLICAÇÕES