Por MARIA LIGIA COELHO PRADO*
Prefácio do livro recém-lançado de Bernardo Ricupero
1.
O tema da identidade latino-americana é clássico na historiografia do continente. No Brasil, a pergunta de como incorporamos (ou não) tal identidade é recorrente, provocando respostas divergentes e polêmicas. Para refletir sobre essa gama de problemas, raras vezes, se encontra um texto com as qualidades deste trabalho de Bernardo Ricupero! Seu estudo alia originalidade, rigor e densidade e, ao mesmo tempo, deixa espaço para que se ampliem horizontes para o debate dessas questões.
O autor elegeu recorrer às metáforas referentes às personagens da peça A tempestade, de William Shakespeare, para enfrentar seu objeto de pesquisa. Numa explícita referência ao trabalho de J. G. A. Pocock, O momento maquiaveliano,[1] o texto está dividido em três partes: o momento Ariel (em que a questão central é a cultura), o momento Caliban (em que a política assume um lugar proeminente) e o momento Próspero (voltado especialmente para pensar a modernidade). Em cada momento, escolheu um texto central para iniciar seu diálogo crítico. Começa com os ensaios do uruguaio José Enrique Rodó, Ariel, publicado em 1900; continua com Caliban do cubano Roberto Fernández Retamar, de 1971 e termina com O espelho de Próspero do norte-americano Richard Morse de 1982.
Ricupero circunscreve de maneira muito clara as relações entre os três momentos por ele selecionados – Ariel, Caliban e Próspero – e as circunstâncias históricas nas quais eles se desenvolveram, assumindo uma abordagem contextualizada do discurso, própria da Escola de Cambridge. Assim, faz um exercício intelectual especulativo que abrange os três principais personagens da peça de Shakespeare. Em suas próprias palavras, é um estudo que se encontra na intercessão de muitas disciplinas, sendo principalmente uma história do pensamento político, mas que dialoga com a história política, a história cultural e a história diplomática.
Sem dúvida, estamos diante de um texto primoroso, próprio de um intelectual maduro que ousa abordar e debater todos os pontos mais complexos do seu tema, propondo refletir sobre a América Latina a partir do Brasil. O autor realizou extensa pesquisa de maneira precisa e abrangente e estabeleceu fértil diálogo com uma vasta bibliografia que se destaca por sua alta qualidade. Lemos um trabalho de clareza exemplar e de coerência à toda prova, no qual não há lacunas a serem preenchidas ou excessos a serem cortados.
2.
O momento Ariel merece do autor uma atenção especial, pois as teses de Rodó tiveram grande impacto na América Hispânica, dando origem ao fenômeno denominado “arielismo”. Igualmente relevante é o fato de que, nos primeiros anos da República brasileira, o problema da identidade latino-americana, nos seus polos saxão e latino, passou a ser uma questão importante para a elite intelectual e política do país. A República propiciou uma aproximação com a latino-americanidade.
Certamente, no Brasil republicano, aconteceu uma tímida, mas também ambígua, aproximação com a América Hispânica. Ainda que o autor mostre os vários ângulos desta difícil aproximação do Brasil com o arielismo, sua análise tende a enfatizar a busca de afinidades entre o Brasil e os demais países da América Latina. Para tanto, lembra a positiva resenha escrita por José Veríssimo sobre o livro de Rodó, Ariel, que leva por título: “Regeneração da América Latina”.[2]
Mesmo concordando que, com a República brasileira, houve uma aproximação maior com a América Hispânica, gostaria de pontuar a permanência de velhos padrões de distanciamento, correntes durante o Império, entre essas duas partes da América.
Recorro, para indicar melhor minha visão, ao próprio José Veríssimo, na mesma resenha, que ao citar o livro do argentino Rodríguez del Busto, Peligros Americanos, afirmava: “Tenho a fraternidade latino-americana, sinto-a intimamente; nunca, desde rapaz, participei do preconceito da minha gente, herdado do português e desenvolvido pelas nossas lutas no Rio da Prata, contra os povos espanhóis da América. Amo-os a todos e me revoltam as manifestações hostis a qualquer deles; mas não consigo ajeitar-me à ideia de que eles possam sair tão cedo da miséria econômica, social e moral em que, salvo uma ou outra raríssima exceção, vivem”. E nas suas conclusões sobre o futuro do continente escrevia que, pela seleção natural, à América Espanhola “não lhes caberá futuro próprio”; outros povos assumiriam essa tarefa no lugar deles. Em contrapartida, o futuro sorria para o Brasil, senhor de seu próprio destino”.
Desse modo, a superioridade do Brasil diante dos demais países da América Latina está explicitada. Mas estas minhas observações devem ser entendidas, não como uma crítica e, sim, como uma contribuição aos debates suscitados por tema tão polêmico e desafiador.
3.
Outro ponto de grande relevância no livro de Bernardo Ricupero merece ser destacado. O autor se conecta com os dilemas e os desafios do presente, que fazem emergir questões inescapáveis num mundo, ao mesmo tempo globalizado e fragmentado. Por isso, em consonância com elas, vejo no texto preocupação constante em trabalhar a questão da raça, a questão de gênero, e a questão do pós-colonialismo ou da colonialidade.
O tema da raça foi explorado primorosamente tanto no momento Ariel quanto no momento Caliban. Dou apenas dois exemplos. Ao citar o famoso livro A raça cósmica do mexicano José Vasconcelos, Bernardo Ricupero afirma que, na visão desse autor, a nova civilização universalista deveria ser a América Latina, região quente e de intensa mestiçagem, bastante diferente da fria América saxã, obcecada com a pureza racial e, por conta disso, se mostrando como um prolongamento da Europa.
Para fazer a crítica dessa visão, Bernardo Ricupero reflete sobre o trabalho de Walter Mignolo, para quem a América Latina é principalmente uma concepção das elites de descendência europeia, formulada na segunda metade do século XIX, que deixa de fora indígenas, negros e mestiços. Ricupero conclui que o mito da mestiçagem assume papel decisivo no Brasil e no México, sendo entendido em termos de homogeneização que não reconhece as diferenças. Está subjacente à miscigenação, uma concepção de hierarquia em que o branco assume posição de comando. Ligado a isso, frequentemente, aparece um ideal de branqueamento, segundo o qual mexicanos e brasileiros acabariam por se tornar ironicamente mais parecidos com os europeus.
No capítulo sobre Caliban, o autor volta a essa questão. Desta vez, faz uma crítica certeira ao cubano Fernández Retamar, para quem a América Latina é entendida em termos essencialistas e até raciais, como uma vasta zona onde a mestiçagem não é um acidente, mas é a essência. Da mestiçagem se forjaria uma autêntica cultura latino-americana, ou seja, o raciocínio do escritor se dá nos mesmos termos do de escritores anteriores: a cultura latino-americana como uma essência que se expressa em termos raciais. Em suma, a partir da categoria raça é possível naturalizar as diferenças sociais e a partir daí classificar e hierarquizar essas diferenças.
Muito significativas também são suas referências à questão de gênero. Em todas as minhas leituras sobre Ariel, ainda não havia encontrado, como neste livro, menções importantes relativas à única figura feminina da peça de Shakespeare, Miranda, filha de Próspero. O autor observa argutamente que também não há referências à Sycorax, a bruxa que remonta aos primeiros habitantes da ilha. Ela tinha poderes mágicos, foi banida de sua terra natal e deixada na ilha, onde deu à luz a Caliban.
As releituras de A Tempestade não discutiram o problema da mulher e não questionaram – e até tomaram como natural – a existência de uma sociedade patriarcal. Concordando com Chantal Zabus, crítica literária belga, Bernardo Ricupero reafirma que o pós-colonialismo, o pós-feminismo e outros movimentos de libertação produzem deslocamentos gerais que abrem um caminho para que a hierarquia entre os personagens de Shakespeare seja revista, Próspero perdendo espaço para Caliban, Miranda, Sycorax e, mesmo, Ariel.
4.
Por diversas vezes, Bernardo Ricupero associa certos autores às perspectivas atuais que trabalham o conceito de colonialidade. Acompanha Walter Mignolo para quem a descoberta da América e o genocídio de indígenas e escravizados africanos são a própria fundação da modernidade, mais do que a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. Ainda mais, elas constituiriam a face mais escura e escondida da modernidade, ou seja, a colonialidade.
Muito interessantes (e inesperadas) são as referências do autor à antropofagia de Oswald de Andrade. Para Ricupero, é possível argumentar que esse movimento realizou a partir das Américas um questionamento da Europa podendo até ser caracterizado como uma crítica pós-colonial avant la lettre. Citando Antônio Tosta, o autor afirma que se pode ler o trabalho de Oswald para além das lentes do modernismo. A condenação aberta e, por vezes, humorística da colonização, a ênfase crítica na dependência, o rebaixamento do discurso histórico oficial e, por fim, a proposta de valorizar as margens e repelir os centros são alguns dos elementos que permitem ler o projeto antropófago de Oswald, como revelado em sua poesia e em seus Manifestos, como um exemplo do que é considerado atualmente como pensamento pós-colonial.
Em suas conclusões, o autor afirma – resolvendo esta intrincada relação entre Brasil e América Latina – que hoje em dia ninguém mais põe em dúvida a percepção de que o Brasil é parte integral da América Latina. E argumenta que a identidade latino-americana e a identidade brasileira são rotas paralelas que acabaram por convergir. A essa interpretação, acrescenta a ideia de que existem afinidades entre intelectuais brasileiros e intelectuais hispano-americanos mais do que influência.
Nesse sentido, não cabe perguntar se a construção de uma identidade latino-americana comporta a presença do Brasil ou se nós, brasileiros, podemos ou não nos considerarmos latino-americanos. Para Bernardo Ricupero, tanto no momento Ariel como no momento Caliban houve a criação de identidades latino-americanas. E as identidades se sustentam fundamentalmente em oposição à América anglo-saxônica. A expressão América Latina revela, assim, um forte conteúdo e um posicionamento político anti-imperialista.
Para concluir, devo dizer que foi um prazer escrever o prefácio deste trabalho no qual, de forma fluente e precisa, se mesclam temas e problemas do passado e do presente ligados à política, à cultura e à modernidade! Estou certa de que o livro de Bernardo Ricupero abrirá a suas leitoras e a seus leitores caminhos profícuos para reflexão e encontros prazerosos com as envolventes temáticas da latino-americanidade.
*Maria Ligia Coelho Prado é professora Emérita da FFLCH e professora titular de História da América na USP.
Referência

Bernardo Ricupero. Entre Ariel, Caliban e Próspero: dilemas da identidade (latino) americana pensados a partir do Brasil. São Paulo, Alameda editorial, 2025, 368 págs. [https://amzn.to/3FPGu70]
O lançamento em São Paulo será nesta quinta-feira, a partir das 18h, na livraria Martins Fontes (Av. Paulista, 509).
Notas
[1] POCOCK, J. G. A. O momento maquiaveliano. Tradução de Modesto Florenzano. Rio de Janeiro: EDUFF, 2021.
[2] VERÍSSIMO, José. “A regeneração da América Latina” (1902). In: Cultura, literatura e política na América Latina. Seleção e apresentação de João Alexandre Barbosa. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, p.20.
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