Forças Armadas – degradação e redenção

Imagem: Alexey Demidov
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

O que resta, atualmente, às Forças Armadas brasileiras, é afundar-se no golpismo bolsonarista ou ajustar-se ao projeto democrático da Carta de 1988

A degradação inédita do prestígio das Forças Armadas no Brasil se dá precisamente a partir do momento em que o presumido representante de uma parte da caserna – da extrema direita militar também presente como representação parlamentar – chega ao poder pela via eleitoral. Não é necessário referir que este evento não está fora da curva ascendente das ideologias de extrema direita – fascistas e nazistas – em todo o planeta, com especial evidência no Continente europeu. Pululam Bolsonaros no palco da herança iluminista.

Ali, no berço originário da Revolução Francesa, a democracia social mirou suas baterias contra a época medieval e também firmou – no imaginário civilizatório europeu – o Estado de Direito formalmente garantidor dos Direitos Humanos e a mais organizada democracia política da época moderna. Mas ali, no continente da Revolução, também viceja a extrema direita racista, misógina, nacionalista e conservadora, em todos os seus poros, cortejada pelos empresários de todo o mundo, para ser mobilizada contra o Estado Social, em defesa do empreendedorismo de “si mesmos”.

O processo democrático europeu se deu sob os impulsos da Revolução Francesa em países que mantiveram – inclusive até depois da Segunda Guerra – seus domínios coloniais e que agregaram os recursos provenientes deste sistema de exploração “civilizatória”, ao seu “caixa” e ao caixa do Estado. A construção das maravilhas arquitetônicas, das infraestruturas públicas modernas e abrangentes, das amplas políticas de coesão nacional, inclusive as de natureza social democrata, tem este rastro do legado colonial e neocolonial.

O prestígio das Forças Armadas em boa parte destes países tem a sua memória ancorada na reconstrução do pós-guerra e no seu convívio com a democracia política, só possíveis com a derrota do nazismo. A rápida recuperação no pós-guerra, depois da vitória contra a Alemanha nazista, foi garantida pelo poderio militar e econômico dos EUA e da Inglaterra, agregado ao poderio do Exército Vermelho. Seus 27 milhões de mortos na URSS tingiram de heroísmo e sacrifício patriótico a defesa da Nação, tema também caro à tradição da Revolução Francesa.

Sem a União Soviética e a disposição das democracias ocidentais, os Bolsonaros de todos os tipos teriam assumido o poder no mundo a partir dos anos 50. O prestígio das nossas Forças Armadas, no senso comum dos brasileiros, todavia, firmou-se de maneira diferente, pois ele tanto ocorreu pela aceitação parcial das FFAA, do complexo processo democrático instaurado depois da República Velha, como pela defesa da formação do nosso Estado nacional moderno. A estes dois elementos foi agregada a intervenção política, civil-militar, para “defender o país do comunismo”, argumento que a maioria da população civil aceitou, a partir do Golpe de 1964.

Evidentemente isso foi um engodo do Departamento de Estado americano, que propagava a suposta verdade do “perigo vermelho” no cenário mundial, para não permitir ameaças à dominação imperial na América do Sul. Os EUA consideravam a América Latina, por destino mítico, um território a ser “protegido” pelos norte-americanos, para o seu usufruto econômico, previsto na doutrina do presidente James Monroe (1823), adotada por todos presidentes americanos como doutrina de Estado.

O quadro global mudou as práticas de domínio dos grandes países capitalistas, pois hoje todos estão submetidos ao internacionalismo pragmático do capital financeiro, o que alterou os seus conceitos – antes uniformes – de perigo externo. As mudanças alteraram a natureza dos conflitos e as ações “patrióticas” dos países do capitalismo maduro, passaram a ser ditadas pelos endereços difusos – das ruas do mercado mundial – cujo objeto não foi mais a defesa da soberania interna ou a luta contra os avanços do “comunismo”.

Nesta nova etapa a questão da afirmação nacional passa a ser a destruição dos “inimigos externos”, internos ao próprio capitalismo, para aparar as diferenças entre os acionistas dos oligopólios globais, na época do convívio internacional no mundo “pós-comunista”, cuja expressão sobrevivente não é menos pragmática do que a verve do capitalismo universal, cujo polo moderador é a China Popular. Mas ela também busca mercados, não a subversão revolucionária de antigamente.

O Brasil era considerado um “peão” importante, no xadrez geopolítico do Sul do continente na época Guerra Fria, quando as violências inomináveis cometidas pelo regime militar, nos porões da exceção, seriam um sacrifício do precário do Estado de Direito, destinado a “garantir a paz social contra o comunismo”. Esta missão e a missão de defesa do território nacional abrigavam então, à época, um patrimônio político erigido, de uma parte, pela importância das Forças Armadas na formação do nosso Estado Nacional Moderno e, de outra, pela sua responsabilidade com a defesa da nossa integridade territorial, determinada na Constituição. A ideologia justificadora – na época Guerra Fria – era cimentada no anticomunismo visceral da maioria dos seus quadros superiores.

A defesa do país, da sua integridade territorial passa por outras condições tecnológicas, culturais, comunicacionais e educacionais – ambientais e informacionais – que vão muito além da defesa militar do território do Estado, por tropas e material bélico, como ocorria no Século passado. A “agressão comunista”, num mundo integrado pelo mercado e pelo sistema financeiro privado é um blefe sectário da extrema direita. Com isso ela pretende acumpliciar o estamento militar com um presidente perverso (como político) e fracassado (como militar) além de profundamente ignorante das suas funções de Estado.

Qualquer Presidente eleito dentro da democracia tem a obrigação de dialogar com as chefias militares que escolher para, dentro da Constituição, formatar um novo pacto de princípios, visando preencher o vazio que se formou em torno da própria existência das Forças Armadas, num mundo em que a Guerra Fria não mais polariza o mundo, como antes, e em que a defesa do território e da soberania nacional já passa a quilômetros de distância do anticomunismo histórico, que só ameaça o sono dos dinossauros de época longínqua do mundo bipartido.

O que resta, atualmente, às Forças Armadas brasileiras, é afundar-se no golpismo bolsonarista, que será de curta e violenta duração, ou ajustar-se ao projeto democrático da Carta de 1988, saindo do brete do anticomunismo neurótico sem comunismo à vista. E ao sair, como reza a Lei Maior, ampare o país no mundo da cooperação com soberania e proteja o povo, protegendo a democracia e a República. Como manda a lei.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Celso Frederico Andrés del Río Ricardo Musse Luiz Bernardo Pericás José Luís Fiori Antônio Sales Rios Neto Liszt Vieira Paulo Nogueira Batista Jr Everaldo de Oliveira Andrade Andrew Korybko Chico Whitaker Eugênio Bucci Marjorie C. Marona Luiz Renato Martins José Micaelson Lacerda Morais Annateresa Fabris Gabriel Cohn Lucas Fiaschetti Estevez Francisco de Oliveira Barros Júnior Leonardo Boff Michael Roberts Otaviano Helene Bernardo Ricupero Daniel Afonso da Silva Tadeu Valadares André Singer Airton Paschoa Marcos Silva Osvaldo Coggiola Michel Goulart da Silva Manuel Domingos Neto Milton Pinheiro João Feres Júnior André Márcio Neves Soares Luciano Nascimento Vanderlei Tenório Salem Nasser Luís Fernando Vitagliano Francisco Pereira de Farias Juarez Guimarães Plínio de Arruda Sampaio Jr. Rafael R. Ioris Priscila Figueiredo Marilena Chauí Alexandre de Freitas Barbosa Alexandre de Lima Castro Tranjan Dennis Oliveira Eduardo Borges Jean Pierre Chauvin Matheus Silveira de Souza João Lanari Bo Valerio Arcary Elias Jabbour Fernando Nogueira da Costa Rubens Pinto Lyra Leonardo Sacramento Mariarosaria Fabris Leda Maria Paulani Luiz Werneck Vianna João Carlos Loebens Yuri Martins-Fontes Vladimir Safatle Marilia Pacheco Fiorillo Samuel Kilsztajn Vinício Carrilho Martinez Sandra Bitencourt João Sette Whitaker Ferreira Jorge Branco Henry Burnett Marcelo Guimarães Lima Mário Maestri João Carlos Salles Luis Felipe Miguel Antonio Martins João Paulo Ayub Fonseca Flávio Aguiar Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eliziário Andrade Flávio R. Kothe Claudio Katz Remy José Fontana José Costa Júnior Valerio Arcary Francisco Fernandes Ladeira Paulo Sérgio Pinheiro Ronaldo Tadeu de Souza Daniel Costa José Machado Moita Neto Eleutério F. S. Prado Érico Andrade Berenice Bento Bruno Machado Fábio Konder Comparato Luiz Roberto Alves Ari Marcelo Solon Paulo Fernandes Silveira Renato Dagnino Boaventura de Sousa Santos João Adolfo Hansen Ricardo Fabbrini Lincoln Secco Alysson Leandro Mascaro Manchetômetro Thomas Piketty Bento Prado Jr. José Geraldo Couto Jorge Luiz Souto Maior Daniel Brazil Afrânio Catani Tarso Genro Denilson Cordeiro Michael Löwy Luiz Marques Alexandre Aragão de Albuquerque Gilberto Maringoni Slavoj Žižek Armando Boito Kátia Gerab Baggio Paulo Martins José Raimundo Trindade Maria Rita Kehl Gerson Almeida Ronald León Núñez Marcus Ianoni Henri Acselrad Ricardo Antunes Luiz Carlos Bresser-Pereira Carla Teixeira Eugênio Trivinho Igor Felippe Santos Luiz Eduardo Soares Tales Ab'Sáber Ladislau Dowbor Fernão Pessoa Ramos Paulo Capel Narvai Chico Alencar Benicio Viero Schmidt Caio Bugiato Julian Rodrigues Marcos Aurélio da Silva Antonino Infranca Atilio A. Boron Eleonora Albano Walnice Nogueira Galvão Ronald Rocha Jean Marc Von Der Weid Carlos Tautz Rodrigo de Faria Lorenzo Vitral Heraldo Campos Anselm Jappe Ricardo Abramovay Celso Favaretto Gilberto Lopes José Dirceu Marcelo Módolo Dênis de Moraes Bruno Fabricio Alcebino da Silva Leonardo Avritzer Sergio Amadeu da Silveira

NOVAS PUBLICAÇÕES