Por JEAN PAULO PEREIRA DE MENEZES*
Comentário sobre o ensaio de Friedrich Engels
Considerando o debate sobre a produção marxiana, com destaque as contribuições para a educação, nos pareceu fundamental a análise de um autor central na construção do pensamento de Karl Marx. E aqui um autor da maior importância diante de toda uma tradição que se levantou, sobretudo, após a morte de Marx: Friedrich Engels.[1]
Trataremos aqui de apresentar algumas palavras sobre esta primeira crítica à economia política. Não partilhamos da ideia existente na tradição marxista que trata Marx e Engels como uniformes. Estamos convencidos das diferenças entre os dois, todavia, há grandes convergências, trataremos de algumas.
A primeira crítica à economia política não foi escrita por Marx. Engels foi o primeiro a se debruçar de forma crítica sobre a economia política entre os anos de 1843 -1844 quando produz em Manchester o ensaio Esboço de uma crítica da economia política”, publicado na revista Anais Franco Alemães em 1844.[2] Ensaio este que teve emblemática influência nas preocupações de Marx, sobretudo na constituição de sua principal problematização de uma vida toda: a crítica da economia política marxiana. No “Prefácio de 1859”, diante da sua primeira versão de uma crítica à economia política o próprio Marx fará referência a este trabalho de Engels como o sendo um genial esboço de crítica. Nas palavras do próprio Marx: “Friedrich Engels, com quem mantive por escrito um intercâmbio permanente de ideias desde a publicação de seu genial esboço de uma crítica das categorias econômicas (nos Anais Franco-Alemães), chegou por outro caminho (compare o seu trabalho Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra) ao mesmo resultado que eu; e quando ele, na primavera de 1845, veio também instalar-se em Bruxelas, decidimos elaborar em comum nossa oposição contra o que há de ideológico na filosofia alemã; tratava-se, de fato, de acertar as contas com a nossa antiga consciência filosófica” (MARX, 2005, p. 53).
É importante que se dê destaque ao “intercambio permanente de ideias desde a publicação de seu genial esboço de uma crítica”, pois esta interlocução só ganhará maior fôlego até os últimos dias de Marx. Engels tem centralidade na trajetória marxiana, como crítico e militante revolucionário. Engels é que primeiro se vincula a parte do movimento operário e posteriormente convence Marx a se ligar aos Justos. O papel de Engels, assim como o segundo violino (afirmação do próprio Engels e que não se sustenta), é fundamental para a constituição do pensamento crítico marxiano, muito mais do que pressupõe, ainda, boa parcela de intelectuais acadêmicos que abordam este autor pelas portas dos fundos ou mesmo pela lateral marginalidade.
No texto de 1844 Engels parte de uma crítica moral da economia nacional,[3] apontando os seus limites no que diz respeito a sua própria constituição como ciência de uma certa dada nacionalidade. Apresenta aos seus leitores, com efeito, à Marx, uma perspectiva crítica da economia política que se constituirá como um dos pontos de partida para, ainda nos anos quarenta, as investigações de Marx para além da crítica da filosofia idealista, chegando até a crítica da economia política nos anos cinquenta.
Engels esboça o surgimento da economia nacional[4] associando-a ao que Marx chamou de fase de acumulação primitiva de capitais, mais precisamente, como assim era chamada pela burguesia de seu tempo. Aponta nessa gênesis a elaboração de um sistema de fraudes consentidas que se constatou imanente à própria forma de relação social capitalista em formação e amadurecimento, ou seja, o texto consegue captar para o presente do século XIX, uma das características constitutivas das formas de produção e reprodução da vida nos moldes capitalistas de sociabilidade: fraudes, corrupção e exploração.
Vejamos como a tradução de Maria Filomena Viegas nos apresenta as palavras de Engels: “A economia política surgiu como consequência natural da expansão do comércio e, com ela, um elaborado sistema de fraudes consentidas, uma completa ciência a favor do enriquecimento substituiu a troca simples, não-científica. Esta economia política, ou melhor: esta ciência do enriquecimento, nascida do logro mútuo e da ambição dos comerciantes, traz na fronte a marca do egoísmo mais repugnante. Vivia-se ainda sob a ingênua noção de que o ouro e o dinheiro constituíam a riqueza, e não havia nada de mais urgente a fazer do que proibir por toda parte a exportação de metais “preciosos”. As nações viam-se mutuamente como avarentos, cada uma agarrando seu valioso saco de dinheiro e lançando aos seus vizinhos olhares de inveja e desconfiança. Faziam tudo para extrair dos povos com que mantinham relações comerciais o máximo em moeda, retendo no interior das suas fronteiras aduaneiras o dinheiro apurado no final das contas. A aplicação verdadeiramente consequente deste princípio liquidaria o comércio. Pretendeu-se, então, ultrapassar este primeiro estágio: descobriu-se que o capital entesourado permanece morto, enquanto, circulando, aumenta constantemente. Houve, portanto, maior sociabilidade: soltaram-se as moedas como apelo para que a elas se juntassem outras e reconheceu-se que não é de modo algum prejudicial pagar pela mercadoria um preço demasiado elevado a A quando se pode vendê-la a B por um preço mais alto ainda” (ENGELS, 1979, p. 02).
Já inicialmente Engels aponta para a relação de superação do pensamento mercantilista pela nova ciência, a economia nacional. Mesmo se pautando por identificar parte da lógica de funcionamento da origem da riqueza esta nova ciência possui os seus limites como demonstrará a seguir. A crença do mercantilismo em relação ao entesouramento como referencial de riqueza de uma nação não era de fato o ponto central de acumulação de riqueza, pois o metalismo nada mais garantia do que o entesouramento e este se convertendo em capital morto e mesmo estagnado, não era sinônimo de acumulação produtora de valor. A circulação era mais interessante do que o entesouramento e isso Engels reconhece aos economistas nacionais. Entretanto, a essência mesquinha e egoísta se mantinha quase que intocável, como o próprio autor demonstra.
E o elemento moral é radicalmente marcante nas palavras iniciais do Esboço de Engels. E, moral aqui não deve ser confundida com a flexão moralista. O elemento moral que identificamos no texto se trata de um elemento de alta importância, uma vez que a perspectiva do autor se dá a partir de um caráter postulador da transformação daquele presente imediato e assim a crítica de cunho moral se apresenta de forma tônica para o desenvolver da análise materialista que neste caso tem como ponto de partida a moral, mas não se limita à ela, pois nos pareceu uma prática presente tanto em Marx como em Engels a preocupação com a questão da moral, mas não apenas. A moral é de extrema relevância, mas a crítica apenas moral não era defendida como suficiente, era necessário avançar para além da questão moral e é justamente isto que o faz Engels no desenvolvimento de seu esboço.
Vejamos: “Sobre tais alicerces edificou-se o sistema mercantilista [2] e nele o caráter cúpido do comércio assumiu já uma forma um pouco mais dissimulada: as nações efetuaram algumas aproximações, concluíram tratados de comércio e amizade, entraram em negociações e testemunharam todas as amabilidades possíveis em honra ao máximo lucro. Mas, no fundo, era a velha sede de dinheiro de sempre, o velho egoísmo que explodia de tempos em tempos nas guerras que, neste período, se baseavam todas na rivalidade comercial. Em tais guerras, evidenciou-se que o comércio, como a pilhagem, se apoia na lei do mais forte; não havia escrúpulos em extorquir, pela astúcia ou pela força, tratados daquela espécie, desde que fossem considerados os mais favoráveis. O ponto principal de todo o sistema mercantilista é a teoria da balança comercial. De fato, como continuava vigente o princípio de que o ouro e o dinheiro constituíam a riqueza, só eram apreciados como vantajosos os negócios que, em suma, traziam ao país moeda sonante. Para verificar isto, comparava-se a exportação e a importação. Se se exportava mais do que se importava, pensava-se que a diferença tinha entrado no país sob a forma de moeda sonante e acreditava-se que aquele se tornara mais rico” (ENGELS, 1979, p. 02).
Engels esboça aqui outro elemento significativo que se fez presente até a obra máxima de Marx em 1867. Nos referimos a identificação dos limites da política econômica mercantilista, ou como Marx chamara em O capital: fase de acumulação primitiva de capitais.
Em seus estudos sobre a crítica à Economia Política, Marx dará atenção a esse período que Engels aponta em 1844, décadas depois, em 1867, no capital, dedicando vários momentos da obra para se referir à acumulação de capitais e ainda dedicando um capítulo exclusivo para falar deste processo histórico.[5] Evidentemente, Marx é tributário de outros interlocutores, todavia, o objetivo aqui neste momento é demonstrar o quanto Engels foi vital para Marx, desde os anos iniciais, ainda quando eram jovens, apresentando problematizações que acompanharam toda a trajetória do autor de nosso objeto de investigação.
Estas considerações de Engels e Marx repercutiram, posteriormente, no debate sobre o período mercantilista, sobretudo na maior colônia escravista dos séculos XVI-XIX: o Brasil. Autores ligados às ciências histórias, no século XX e XXI, buscaram em Marx e Engels os fundamentos para a promoção de um debate acerca da fase de acumulação primitiva de capitais,[6] sendo a escravidão uma forma desigual e combinada[7] de atender os interesses do capitalismo em desenvolvimentos, mesmo após a fase de acumulação originária (ou primitiva) de capitais. O que demostra a vitalidade e o fôlego das contribuições do século XIX, tendo em Engels e Marx perspectivas avant la lettre.
Ainda continuando com Engels, no Esboço, já comparece outro elemento que foi marcante em Marx. Trata-se da crítica que incorpora para superar, ou ainda, superar incorporando. Identificamos uma perspectiva crítica que se preocupa em entender o objeto da crítica, internamente, para a partir de seus pressupostos, incorporar e superar os limites do pensamento. Esse comportamento não só é presente em Marx, como é também parte constitutiva do seu método de investigação durante toda a vida. Este procedimento é representativo daquilo que Marx chamará de honestidade intelectual, tão raro entre os apologetas, mas verificável nos autores que postulam a produção de uma investigação da história científica.[8]
Não é nossa intenção apresentar um Engels que comparece plenamente em Marx, basta observar a crítica à Malthus e Smith que é apresentada no Esboço. Engels em dada medida associa estes dois pensadores de uma maneira que certamente Marx não apreciaria com os seus estudos mais acurados. Mas que retomemos aqui: Engels está fazendo um Esboço. Um breve estudo que, ai sim, nos interessou, coloca para Marx um ponto de partida fundamental para o desenrolar de estudos os quais só se concretizaram no decorrer de décadas depois, sempre em parceria com Engels.[9]
“A arte dos economistas consistia, assim, em velar para que, ao fim de cada ano, a exportação apresentasse um saldo favorável face à importação – e é em nome desta ridícula ilusão que milhares de homens foram massacrados! Também o comércio teve as suas cruzadas e a sua inquisição. O século XVIII, o século da revolução, subverteu igualmente a economia. Mas todas as revoluções deste século apenas abordaram uma face do antagonismo, sem ultrapassar a outra. (Eis por que se contrapunha ao espiritualismo abstrato o materialismo abstrato, à monarquia a república, ao direito divino o contrato social.) A revolução econômica, de repente, não poderia nunca superar esse antagonismo. Os pressupostos permaneceram os mesmos.
O materialismo não atacou o desprezo e a humilhação do homem no cristianismo: limitou-se a instaurar a natureza como absoluto frente ao homem, substituindo-a ao deus cristão. A política não pensou em examinar, em si e para si, os pressupostos do Estado. A economia nem sequer teve a ideia de se interrogar sobre o que justifica a propriedade privada. É por esta razão que a nova economia constituiu apenas um progresso a meias: foi obrigada a descobrir e a negar seus próprios pressupostos, a apelar ao recurso do sofisma e da hipocrisia para camuflar as contradições em que se debatia e para chegar às conclusões a que era conduzida não pelas suas próprias hipóteses, mas pelo espírito do século. Deste modo, a economia assume uma forma filantrópica, deixa de favorecer aos produtores para apoiar os consumidores; revela um santo horror pelas sangrentas desordens do sistema mercantilista e sugere que o vínculo comercial estabelece a amizade e a compreensão entre as nações e os indivíduos. Tudo corria bem, era magnífico!
Mas os pressupostos muito cedo recomeçaram a manifestar-se e engendraram, em oposição a esta brilhante filantropia, a teoria da população de Malthus – o sistema mais grosseiro e mais bárbaro que jamais existira, o sistema do desespero que reduziu a pó todas essas belas frases a propósito da fraternidade humana e da cidadania universal; engendraram e construíram o sistema fabril e a escravidão moderna que, em desumanidade e crueldade, nada deve à antiga escravatura. A nova economia, o sistema do livre comércio, apoiado na Wealth of nations, de Adam Smith, revela-se como a hipocrisia, a imoralidade e a inconsequência que, presentemente, afrontam todos os domínios da liberdade humana.
Mas o sistema de Smith não foi um progresso? Certamente que sim e, até mesmo, foi um progresso necessário. Era necessário que o sistema mercantilista, com seus monopólios e seus entraves à circulação, fosse- subvertido para que aparecessem claras as verdadeiras consequências da propriedade privada; era necessário que todas as mesquinhas considerações locais e regionais passassem a segundo plano para que a luta do nosso tempo se tornasse universal e humana; era necessário que a teoria da propriedade privada abandonasse o puro empirismo, com suas pesquisas unicamente objetivas, para assumir caráter mais científico, que a tornasse igualmente responsável pelas suas resultantes e deslocasse a coisa para um campo humano em geral, onde a imoralidade contida na velha economia fosse conduzida à sua expressão mais elevada em razão da sua negação e da hipocrisia que necessariamente decorre da tentativa de negá-la. Tudo isto faz parte da natureza do processo” (ENGELS, 1979, p. 02-03).
Na citação acima é possível observar como a questão moral é para Engels o ponto de partida e não o ponto de concentração da sua crítica. A crítica aqui apresenta elementos fundamentais daquilo que chamamos de superação incorporadora. Engels reconhece os limites absurdos do mercantilismo e aponta a importância da Economia Nacional. Entretanto não poupará a crítica à essa nova ciência, apontando também os seus limites e o seu real propósito de classe. Desmascarando, mesmo que introdutoriamente, o princípio do progresso que esta seria portadora. Será implacável ao identificar a manutenção da essência de elementos como a exploração e o desespero de lucro.
O Esboço identifica transformações significativas, mas que ainda apresentam fenômenos que não superam a exploração de uma classe sob a outra. E aqui, mais uma vez, observamos como este texto de Engels foi fundamental na formação de Marx. Nos estudos de 1857-58, Marx também está procurando a melhor forma de expor seus estudos ao público e que ocorrerá no ano de 1859, no que diz respeito a crítica da economia política, partindo de uma crítica interna dos economistas nacionais, aceitando parte de seus pressupostos, mas avançando no sentido da superação. E quando o faz, Marx inicia também pelo fenômeno mais imediato: A mercadoria.[10]
Mais uma vez, sobre o mundo da mercadoria, Engels polemiza com pensadores que marcaram também as preocupações de Marx. Vejamos: “Reconhecemos voluntariamente que só o estabelecimento e a realização do livre comércio nos colocaram em situação de avançar para além da economia da propriedade privada, mas, simultaneamente, temos o direito de situar esta liberdade de comércio na sua total nulidade teórica e prática. Nosso juízo terá razão de se revelar tanto mais duro quanto mais os economistas que avaliarmos se aproximam do nosso tempo. Enquanto Smith e Malthus só encontraram conclusos elementos dispersos, os economistas mais recentes tinham à vista o sistema concluído na sua totalidade: as conseqüências estavam tiradas, as contradições manifestavam-se à luz do dia suficientemente claras e, contudo, eles não reexaminaram as premissas, aceitando responder sempre pelo processo como um todo. Quanto mais os economistas se aproximam do presente, mais se afastam da honestidade. Quanto mais o tempo avança, mais os sofismas necessariamente aumentam. É por isto, por exemplo, que Ricardo é mais culpado que Adam Smith e Mac Culloch e Mill mais culpados que Ricardo. A economia moderna não chega mesmo a julgar convenientemente o sistema mercantilista, porque ela própria é parcial e está ainda aprisionada aos pressupostos deste sistema. Somente o ponto de vista que ultrapasse o antagonismo dos dois sistemas e critique seus pressupostos comuns, partindo de uma base universal puramente humana, poderá assinalar a ambos sua posição exata. Ficará evidente que os defensores do livre comércio são monopolistas piores que os próprios mercantilistas antigos” (ENGELS, 1979, p. 03-04).
Observe que Engels considera as postulações dos economistas, incorporando e criticando com vistas a superação de seus limites. E é aqui que a crítica também aponta para a vitalidade do presente dos analistas. Engels considera David Ricardo a partir de um presente histórico que não é jamais desvinculado de uma trajetória, pois procura contextualizar sua crítica à Economia Política não apenas do presente mais imediato. Para isso insiste em sua crítica moral em nome de uma honestidade intelectual cada vez mais difícil de se concretizar em seu tempo presente por parte dos pensadores da Economia Política. Não nos estenderemos à uma análise mais profunda da leitura que possui Engels em relação ao pensamento de Marx sobre Ricardo, mas a relação que este possui diante do presente nos interessou substancialmente.
Assim como Engels, Marx também considerará os seus estudos em perspectiva histórica, a partir do presente, por ser ele o momento do devir em que a síntese das múltiplas determinações se apresenta de forma mais candente. O presente como história comparece na obra destes dois autores de forma indelével, basta problematizarmos os motivos mais fenomênicos que os levaram à Bruxelas e a consequente busca da organização política no seu tempo histórico. O presente, mais uma vez é o palco da história, mesmo em sua evanescência, o ponto de partida para a busca da compreensão da totalidade histórica.
A primeira crítica à economia política, já apresentava ao seu interlocutor mais imediato, importantes elementos teóricos e metodológicos, pois ao postular um esboço de crítica, Engels também fornecia à Marx problematizações que o autor do texto de 1859 pode se deter aprofundadamente ao longo de décadas de estudos e organização política.
A história e o tempo presente, também eram para Engels inseparáveis, pois os fenômenos da reprodução da vida correspondem a uma trajetória, nem sempre revelada fenomenicamente, por isso a necessidade de investigação científica. Com efeito, a preocupação com a história a partir do presente marcará a preocupação tanto de Engels como de Marx durante toda sua trajetória. Uma perspectiva herdada de Hegel, mas em vias de construção radicalmente materialista a partir dos anos de 1840.
Em 1844, Engels já colocava uma preocupação acerca das categorias fundamentais da nova ciência e esboçava sua crítica em relação as suas contradições e ideologizações: “Ficará evidente que, por trás do humanismo hipócrita dos modernos, se esconde um barbarismo que os antigos não imaginavam, […]. […] Na crítica à economia política, vamos examinar as categorias fundamentais, demonstrar a contradição introduzida pelo sistema da liberdade de comércio e extrair as conseqüências dos dois aspectos da contradição” (ENGELS, 1979, p. 04-05).
Precisar com absoluta exatidão a influência de Engels em Marx a partir desta crítica engelsiana nos Anais Franco-Alemães em 1844 nos pareceu inexequível, entretanto, a preocupação diante do presente, o ponto de partida como o presente mais fenomênico, a realidade concreta, a busca por compreender as categorias daquilo que se crítica, a postulação do avanço para além dos limites identificados na economia nacional e o tempo presente como história, foram alguns dos elementos que também identificamos em Marx como autor de nosso objeto de investigação.
Avançando um pouco além do ano de 1844, para reforçarmos a importância do tempo presente como história já em Engels, identificamos em sua publicação A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de 1845, elementos que reforçam nossas problematizações nesta sessão da tese onde colocamos Engels como o primeiro e fundamental crítico da economia política para Marx. Assim, vejamos como a história e o tempo presente são fundamentais para Engels quando se aprofunda na investigação da questão social no coração do capitalismo do século XIX: “As páginas seguintes abordam um assunto que eu queria inicialmente apresentar apenas como um capitulo que se insere num trabalho mais vasto sobre a história social da Inglaterra; mas em breve a sua importância me obrigou a delinear-lhe um estudo particular. A situação da classe operaria é a base real donde saíram todos os movimentos atual porque ela e, ao mesmo tempo, o ponto máximo e a manifestação mais visível da miserável situação social atual” (ENGELS, 2008, p. 41).
No prefácio desta publicação continua a questão moral como ponto de partida no presente imediato e a preocupação do homem no presente se coloca como problematização central para Engels. Prefaciando, ele continua sua crítica à economia política, com um trabalho de investigação que Marx também compartilha. Nos referimos às fontes de pesquisa,[11] e, mais uma vez, a importância da categoria de totalidade histórica. O presente é criticado tendo em mãos a problematização da história dos trabalhadores, o que poderíamos seguramente chamar de trabalho de campo, via o desenvolvimento de interlocuções, o que marca o método de Engels. O presente é o ponto de partida fundamental.
A crítica de Engels, já nos meados dos anos de 1840, reconhece a importância da longa duração[12] ao se debruçar sobre um fenômeno e prudentemente apresenta aos leitores uma justificativa de um certo recorte do objeto, diante de um projeto maior de estudo sobre a história social da Inglaterra. Entretanto, apresentar sua investigação recuando no tempo, que não é o mesmo, cronologicamente, seu objeto de pesquisa para contextualizar o tempo presente onde repousa suas problematizações sobre a classe trabalhadora.
Nas palavras de Engels: “A história da classe operária na Inglaterra inicia-se na segunda metade do século passado, com a invenção da máquina a vapor e das máquinas destinadas a processar o algodão. Tais invenções, como se sabe, desencadearam uma revolução industrial que, simultaneamente, transformou a sociedade burguesa em seu conjunto – revolução cujo significado histórico só agora começa a ser reconhecido. A Inglaterra constitui o terreno clássico dessa revolução, que foi tanto mais grandiosa quanto mais silenciosamente se realizou. É por isso que a Inglaterra é também o país clássico para o desenvolvimento do principal resultado dessa revolução: o proletariado. Somente na Inglaterra o proletariado pode ser estudado em todos os seus aspectos e relações” (ENGELS, 2008, p. 45).
O procedimento de Engels na investigação da situação da classe operária na Inglaterra é aquele que privilegia um dado aspecto como objeto, mas ao mesmo passo o considera em uma totalidade, não como mera parte que mecanicamente preenche o todo, mas como a síntese de parte desse todo dialeticamente pensado.
Antes de adentrar no objeto propriamente dito, apresenta a situação histórica em que é constitutivo e para isso se utiliza de diversas fontes para a investigação. Uma pluralidade de fontes histórica que nem mesmo os historiadores profissionais de sua época admitiam como válidas para a escrita da história. Durante nossa investigação conseguimos elementos para sustentarmos essa interlocução entre Engels e Marx até mesmo sobre os tipos de fontes históricas utilizadas, onde ambos, muito antes dos Annales já as concebiam em suas multiplicidades para a pesquisa. Neste ponto Engels deposita uma crença notável na veracidade das mesmas, dizemos, na confiabilidade das fontes, sendo seguras e confiáveis, como se as fontes fossem em absoluto portadoras de tais características. Aqui, Engels não escapa do historicismo e da crença nas fontes históricas confiáveis, donas da verdade histórica, mas não se trata de um qualquer historicismo prussiano, pois há a consideração de uma diversidade de fontes que o coloca há décadas na frente da história da historiografia alemã, francesa e inglesa.
Entretanto o ponto desta nossa exposição de maior importância é aquele que nos possibilita a compreensão sobre Engels, com efeito, a interlocução entre Marx e Engels e a sintonia entre eles, sobretudo já apresentada por Engels em suas críticas à Economia Política no século XIX.
A partir dos anos de 1845, as colaborações de um em outro se intensificam e não foi objeto de nossa investigação explorar em que medida um está em outro, ou mesmo, até que ponto Engels é responsável, inicialmente, em Marx, na constituição da sua principal problemática de toda sua vida: uma crítica à economia política. A primeira crítica é a de Engels, mas no processo de colaboração a síntese marxiana desta crítica ganha proporções para além do fôlego proposto nas páginas dos Anais Franco-Alemães e a partir de então a colaboração entre ambos será tão marcante que poderíamos dizer que um está contido no outro, apenas no sentido de convergências, mas que a individualidade de cada um não permite um pensamento homogeneizador da diversidade que cada um expressava na trajetória que construíram.
*Jean Paulo Pereira de Menezes é pesquisador de pós-doutorado em educação na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
Referências
ENGELS, Friedrich. Esboço de uma crítica da economia política. In: Revista Temas de Ciências Humanas. Tradução de Maria Filomena Viegas e revisão de José Paulo Netto. São Paulo, Ed. Ciências Humanas, 1979.
ENGELS, Friedrich. Para a História da liga dos Comunistas [1885]. Obras escolhidas. Tradução: José Barata-Moura. Editorial Avante-Edições Progresso Lisboa – Moscovo, Tomo III, 1982.
ENGELS, Friedrich. A Situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.
HOLANDA, Sérgio Buarque de (Organizador), Leopold Von Ranke: história. S. Paulo, Ática, 1979.
MARX, Karl (1859). Para a Crítica da Economia Política. Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo, 2005.
MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. vol. 1.
MAZZEO, Antônio Carlos. Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. Cortez, 1990.
NOVACK, George. A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado da Sociedade, 1968. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/novack/1968/lei/cap01.htm#ti1>.
SAES, Décio. O Estado escravista no Brasil pós-colonial. In: A Formação do Estado Burguês no Brasil (1888-1891). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.
TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. Volume I, São Paulo: Sundermann, 2007.
Notas
[1] O espaço não permite abordar toda extensão de pessoas que possuem fundamental importância na formação e constituição do pensamento de Karl Marx. Por exemplo, as contribuições de Jenny, Eleanor e Laura Marx. Não apenas como companheira e filhas amadas de toda vida, mas como comentadoras, no caso de Jenny, desde os manuscritos de crítica à Filosofia do Direito de Hegel no início dos anos 40 e todas as produções de Marx. Jenny não fora apenas uma copista, mas assim como Eleanor e Laura, foram organizadoras de primeira linha da internacional. Por exemplo, Eleanor Marx, jornalista, escritora, tradutora, polemista, socialista militante que desde os 16 anos já secretariava o pai na organização do Partido; e Laura, atuante fundamental durante e após a Comuna de Paris de 1871.
[2] Marx tenta manter a linha crítica, como fez contra o autoritarismo na Prússia, mas o jornal é fechado. Apenas uma edição em fevereiro de 1844 foi efetivada.
[3] A edição francesa da Union Générale d’Édition em 1972 apresenta a tradução do conceito de economia nacional como “l’Economie politique”. Na edição alemã da Werke o conceito é apresentado no início do texto como “Die Nationalökonomie” e continua com “Kritik der Nationalökonomie”. O próprio título nesta mesma coleção, em alemão, não apresenta “Kritik der politischen Ökonomie”, mas “Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie (Marx/Engels, 1976).
[4] A relação entre o conceito de Economia nacional e Economia política deve ser esclarecido no capítulo final da apresentação de nossa investigação. Entretanto cabe aqui a apresentação de referenciais para o debate sobre ao significado que Engels se refere em sua crítica à economia política. A Economia Política, de acordo com Engels, pretensamente científica, pretendia explicar a riqueza da nação diferenciando da leitura mercantilista. Ainda, podemos constatar que a Economia Nacional socialmente referendada é a preocupação de entendimento desta nova perspectiva criticada por Engels. Da economia privada à social, a pública, ou seja, pretensamente uma análise científica para além da casa, do doméstico, do particular e que no esboço a crítica de Engels é plena, pois esta nova perspectiva não condizia com a ideia de social, e sim a instrumentalização do privado, do particular diante do nacional. Esta constatação de Engels colabora para o entendimento das vicissitudes do próprio modo de produção da vida na economia política capitalista, como acentuará Marx décadas depois.
[5] Nos referimos à Seção VII, do Capítulo XX, “O processo de acumulação de capital” (MARX: 1996, pg. 197); o Capítulo XXIII, “A lei geral da acumulação capitalista” (MARX: 1996, pg. 245) e ainda o Capítulo XXIV, “A assim chamara acumulação primitiva” (MARX: 1996, p. 339).
[6] No Brasil este debate é emblematizado a partir de contribuições expressas nas obras de Jacob Gorender, “O escravismo Colonial” (GORENDER, 1978); Décio Saes, “O Estado escravista no Brasil pós-colonial” (SAES, 1990) e Antônio Carlos Mazzeo que nos apresenta uma importante síntese deste debate a partir da publicação de sua dissertação de mestrado pela editora Cortez sob o título “Estado e burguesia no Brasil, origens da autocracia burguesa” (MAZZEO, 1990).
[7] Sobre o conceito de “desigual e combinado” temos como referência as contribuições de Leon Trotsky a partir de sua obra “História da Revolução Russa”, onde o autor apresenta logo no capítulo inicial o conceito (TROTSKY, 2007, p. 19 – 29) e também George Novack em “A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado da Sociedade” (NOVACK, 1968).
[8] Científico para o pensamento marxiano não é o mesmo que científico para parte da tradição historiográfica prussiana e mesmo alemã. Quando Marx se refere a científico está postulando o pensamento racionalmente orientado e dialeticamente construído. Ser científico não é ser objetivo, neutro, como em dada medida postulava Leopold von Ranke (HOLANDA, 1979) na “escola histórica” de Berlim. Pensar cientificamente para Marx é procurar estabelecer as conexões possíveis a partir da lógica dialética, o que não permite qualquer tipo de pensamento metodológico fechado em um circuito de investigação que poderia conduzir à um resultado universalizado e repetível em determinadas circunstâncias. Científico é trabalhar a partir do concreto e desenvolver idealmente também a partir deste concreto pensado, formulações em movimentos constantemente verificáveis e jamais permanentes e eternos, menos ainda uma operação através de silogismos de uma lógica formal.
[9] Para o acesso a um estudo mais profundo, para além do importante Esboço de Engels de 1844, sugerimos, assim como o próprio Marx o fizera, a obra engelsiana “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, publicada no Brasil pela Boitempo Editorial em 2008 com tradução de B. A. Schumann; (ENGELS, 2008).
[10] Em 1857, nos Grundrises, Marx inicia com o dinheiro, depois, em 1859, inicia publicamente pela mercadoria, pois observa que a mercadoria é a forma mais geral de manifestação das relações mercantis, cabendo a manifestação do dinheiro como a fetichização completa das relações sociais, predominantes na sociedade capitalista.
[11] A concepção de fontes de pesquisa para Marx e Engels não são apenas os documentos oficiais, chancelados pelo Estado, como rezava hegemonicamente a tradição historiográfica positivista. Há uma pluralidade acerca das fontes de pesquisa também a frente de seu tempo histórico. A pluralidade da concepção de fontes, da forma que trabalhavam, só fora ser desenvolvido nas ciências históricas a partir do século vinte, com efeito a partir de 1929. Marx, assim como Engels consideravam fontes livros, jornais, panfletos, periódicos, publicações oficiais ou não. No caso de Engels é emblemático o trabalho de investigação que faz em seu estudo sobre a situação da classe trabalhadora o desenvolvimento do trabalho de campo, dando destaque as interlocuções, notadamente a oralidade dos trabalhadores irlandeses na Inglaterra. Uma concepção mais radical ainda para o seu tempo presente no que diz respeito a metodologia. No Brasil, as publicações da Coleção Marx e Engels da Boitempo Editorial nos apresenta um conjunto das fontes utilizadas, no caso de Engels, detalhadamente colocando ao leitor as fontes, tipos, nomes e ano.
[12] Uma perspectiva também desenvolvida por Marx em sua trajetória, mas que se consagrou na historiografia apenas no século XX com Fernand Braudel. O que reafirma como Engels estava para além do seu tempo, evidentemente, para além da academia.
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