Por MARC MAESSCHALCK & JEAN-CLAUDE JEAN*
Na lógica do governo haitiano, tudo o que não for explicitamente proibido pelos Estados Unidos e pelo CoreGroup, é permitido
Nós nos acostumamos a considerar o Haiti como um caso isolado e, cada vez que os holofotes se voltam para ele, ouve-se os tristes registros dos quais sofre esse pequeno país caribenho: pobreza endêmica, desnutrição, taxa de mortalidade, desemprego, violência urbana, tráfico de todos os tipos, economia e sociedade mafiosas etc. Alguns veem a tragédia atual como uma determinação incompreensível do destino.
No entanto, a situação deste país não é consequência do infortúnio de todo um povo ou um acidente da história. Ela é o resultado de um longo processo de desestabilização, composto de agressões internas e externas, perfeitamente explicáveis e em total ressonância com o que está acontecendo em alguns países da América Latina e da África. O Estado falido do Haiti é uma construção histórica.
Enquanto a imprensa internacional expressou, com razão, sua preocupação com o número de armas em circulação na Sérvia após a guerra, o Haiti alcançou números semelhantes sem que nenhuma guerra tenha sido travada em seu território, e à revelia da presença maciça da comunidade internacional, não somente após o terremoto de 2010, mas também desde o fim da ditadura de Duvalier em 1986, depois do retorno forçado do presidente Aristide com a intervenção dos Estados Unidos em 1994 e, finalmente, por meio de uma força de paz liderada pelo Brasil de 2004 a 2017.
No Haiti, a influência internacional tem sido permanente em todas as transições eleitorais desde 1987, e sempre deixou claras suas preferências políticas nas urnas. E não há dúvida de que a retirada maciça das agências internacionais em 2015, após o fracasso da reconstrução, e a retirada diplomática durante os dois longos anos da crise da Covid, só pioraram a situação. Mas os exemplos de ingerência são múltiplos nos últimos anos, tais como as eleições fraudadas em 2012, que permitiram Martelly de tomar o poder, o comunicado do BINUH/CoreGroup[i] (formado, essencialmente, pelos Estados Unidos, Canadá, França, União Europeia e Brasil), exaltando as virtudes do grupo de gangues criminosas G9, o apoio total do governo dos Estados Unidos e do CoreGroup a Jovenel Moïse após a destituição dos deputados e a paralisação do Parlamento, o apoio unânime do CoreGroup novamente ao mesmo presidente Jovenel Moïse durante todo o período em que ele e seu partido PHTK[ii] neutralizaram a polícia nacional e ajudaram a instalação das primeiras gangues, fornecendo-lhes armas, munição e proteção.
No Haiti, portanto, a chamada comunidade internacional não é um agente externo e neutro que poderia se tornar, como último recurso, um apoiador. Ela é um ator interno de primeiro plano. Ela está totalmente envolvida na reviravolta do país. Ela define as regras do jogo, as prioridades e a agenda do governo, bem como os limites que não devem ser ultrapassadas. Além disso, ao fechar deliberadamente os olhos para uma série de iniciativas arriscadas do governo local, ela decide, no final das contas, o que é permitido. Porque quando ela descorda, ela manifesta-se de forma brutal e sem rodeios. Na lógica do governo haitiano, tudo o que não for explicitamente proibido pelos Estados Unidos e pelo CoreGroup, é permitido.
Então, por que deveríamos uma vez mais bater à porta dessa “comunidade internacional”, como se ela tivesse alguma solução ou estivesse impedindo que uma solução fosse implementada? Sua presença contínua no país desde 1994 não impediu o surgimento, nem a proliferação de gangues e de violência – muito pelo contrário. Além disso, na medida em que ela é um agente interno em pleno funcionamento, que influencia em todas as decisões que dizem respeito à vida no Haiti, ela não existe como uma instância externa de resolução de problemas.
Isso é uma ficção. O problema deve ser colocado de outra forma. Para entendê-la adequadamente e evitar qualquer pathos, é preciso considerar a tragédia haitiana para além de suas circunstâncias atuais (Gangues, PHTK, Ariel Henry, CoreGroup) e recolocar o Haiti em um contexto geopolítico mais amplo. Dessa forma, é possível compreender melhor as continuidades que existem na lógica colonial dos Estados ocidentais em relação aos países do Sul e, em particular, entre o Haiti e outros Estados “falidos”.
Na verdade, a comunidade internacional imaginária para a qual se poderia enviar um apelo em favor do Haiti já não existe, e esse é o grande problema que é preciso entender antes de começar a especular sobre uma saída para a crise. As estratégias que sustentam a ordem internacional mudaram radicalmente em resposta à urgência da crise climática e da crise energética. As relações entre os países estão agora sujeitas a duas questões fundamentais: por um lado, o acesso aos escassos recursos necessários para implantar o crescimento digital; por outro, a garantia das reservas de energia necessárias para gerenciar uma transição pós-carbono que seja o mais suportável possível para as economias ricas.
Essa nova equação permitiu que o conservadorismo radical impusesse suas ideias a respeito da necessidade de uma mudança na ordem internacional, ideias que favorecem uma abordagem unilateralista e competitiva, em que situações anárquicas são vistas como oportunidades. Essa mudança ficou mais evidente com as decisões tomadas por Donald Trump. Entretanto, ela continua sem maiores reorientações, pelo menos no que diz respeito à América Latina, à América Central e ao Caribe.
No contexto dessa onda neoconservadora que está orientando as escolhas estratégicas dos principais agentes da ordem internacional atual, há um último elemento a ser levado em conta. Trata-se do alinhamento dos agentes envolvidos e enfraquecidos pela guerra por recursos imposta pelas economias em transição para manter o status quo a seu favor. O resultado para o Haiti é que a discórdia entre “países amigos”, que em várias ocasiões cooperou com o interesse do povo haitiano, já não faz mais parte da agenda neoconservadora, segundo a qual as estratégias implementadas no Haiti também são implementadas em outros países da região.
No Haiti, o CoreGroup, que é de facto o braço local do governo transnacional do Haiti, é liderado pelos Estados Unidos e, embora todos os seus membros se refiram em público ao consenso entre os “aliados”, nenhum deles corre o risco de se opor à vontade dos Estados Unidos, nem ousa manifestar, como no passado, posições divergentes sobre o Haiti. Localmente, o CoreGroup é um reflexo do unilateralismo americano nos assuntos haitianos. Falar em comunidade internacional em tal contexto é incongruente e anacrônico.
No final das contas, em nível internacional, o caminho a seguir é menos maniqueísta: pedir aos bons que expulsem os maus! Diante de tal situação, a urgência não está em declarações por mais uma transição apoiada por aliados dissidentes imaginários, desconhecidos da nova ordem internacional. A urgência é pela opção assumida de uma ordem decolonial. Isso significa combater o tratamento injusto dispensado aos migrantes e a deportação de ex-presidiários, que desprezam as convenções de direitos humanos; significa também congelar os bens dos financiadores de gangues, emitir mandados contra todas as personalidades ligadas ao tráfico de armas e munições, e monitorar rigorosamente as exportações nessa área.
Mas o mais importante está nas ações realizáveis em nível local a fim de conter a violência. Entre elas, a luta contra a impunidade deve ser uma prioridade e deve assumir a forma de um tribunal especial anticorrupção. Ele deve ser criado no próprio Haiti, como parte de um processo de assistência jurídica mútua para processar e punir figuras políticas e empresariais envolvidas no desvio dos recursos – já escassos – do Estado, fundos do PetroCaribe (acordo com a Venezuala para a compra de petróleo) e financiamento de gangues. Esse tribunal anticorrupção local é a única maneira de realmente atingir os fraudadores e criminosos e desafiar a impunidade que garante a ordem sociopolítica local que gera violência.
Essas medidas todas é que poderiam provocar uma verdadeira ruptura no círculo vicioso apoiado pelo neoconservadorismo em sua estratégia de desestabilização. O que foi suspenso pela Covid-19 é o papel decisivo que uma sociedade civil internacional pode desempenhar nessa luta, caso se desconecte das redes que carregam a retórica apaziguadora da comunidade internacional. Em suma, uma verdadeira oposição à violência imperialista!
*Marc Maesschalck é professor do Instituto Superior de Filosofia, da Universidade católica de Louvain, na Bélgica, e diretor do Centro de Filosofia do Direito, na mesma Universidade.
*Jean-Claude Jean é filósofo e conselheiro em matéria de governança/justiça em Port-au-Prince. É ex-diretor do Gabinete para o Desenvolvimento e para a Paz no Haiti.
Ambos os autores escreveram conjuntamente Transition politique en Haïti (L’Harmattan).
Tradução: Juliano Bonamigo.
Notas do tradutor
[i] Trata-se de comunicado enviado pelo Integrado das Nações Unidas no Haiti [Bureau Intégré des Nations Unies en Haïti].
[ii] phtk: Partido haitiano Tèt Kale [Parti haïtien Tèt Kale]. Tet Kalé significa, em língua crioula, “cabeça raspada”.
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