Hermeto Pascoal (1936 – 2025)

Hermeto Pascoal (1936 – 2025)
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Por FREDERICO LYRA*

A genialidade de Hermeto transformou as contradições do Brasil na matéria-prima para uma música universal, cujo legado é um farol de radicalidade e coletividade

1.

No último dia 13 de setembro, o músico multinstrumentista brasileiro Hermeto Pascoal partiu, aos 89 anos, para outra dimensão, provavelmente uma dimensão musical, no sentido forte da ideia. A sua música entra para a eternidade. Hermeto Pascoal é possivelmente o músico mais musical já nascido neste país, certamente um dos mais musicais da história da humanidade.

Ele, no entanto, não é o principal músico da história da música brasileira. Esse posto é dividido entre os inventores de cada gênero interno à enorme tradição musical do Brasil, comprimidos entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX – podendo se estender até 1959, se quisermos incluir a bossa nova.

Hermeto Pascoal foi o músico que melhor entendeu e soube absorver a diversidade que atravessa a imensidão do país, conseguindo transitar com maestria pelo frevo, samba, maracatu, baião, forró, choro, coco, bossa nova, candango – às vezes no interior de uma mesma composição.

Hermeto Pascoal é também um dos músicos mais periféricos da história do Brasil. Saído de Lagoa da Canoa, distrito do município de Arapiraca, no sertão de Alagoas, foi ainda nos anos 1950 para Recife, passando também por Caruaru, indo se instalar para trabalhar em São Paulo. De lá, passou uma temporada nos Estados Unidos, para, nos anos 1970, se instalar definitivamente no bairro do Jabour, que pertence à subprefeitura de Bangu, nos limites da zona oeste do Rio de Janeiro.

Hermeto Pascoal talvez seja o músico mais brasileiro de todos os tempos. E poderíamos dizer que ele foi o mais brasileiro por insistir, desde cedo, que a música que criou durante toda a sua vida era uma música universal. O nome com o qual ele batizou sua música pregava a ideia intransigente de uma abertura para o mundo. Hermeto Pascoal dizia que era um brasileiro que utilizava a matéria musical brasileira para criar a sua música.

Embora fosse a mais brasileira das músicas, a sua música não era uma música brasileira no sentido comum do termo. Ela era, sim, uma música universal que emanava a partir deste país particular. Durante décadas, essa música se propôs a integrar musicalmente todas as contradições inerentes a uma sociedade de origem escravista, hoje uma das mais desiguais e violentas do planeta, transformando-a em espelho do mundo sonoro do planeta.

Ele era um músico brasileiro que traduzia em música a experiência socio-histórica deste país. Toda essa tensão entre o Brasil e o mundo está presente na música desse multinstrumentista, compositor e arranjador de fato absolutamente singular. A intenção subjetiva do músico e a objetiva da música não era se reduzir ao Brasil, e sim almejar tocar o universal – intenção, creio eu, que deve ser saudado e tomado como objeto de meditação profunda.

Segundo Hermeto Pascoal, o Brasil, precisamente por ser o país mais colonizado do mundo, era o único no qual a ideia de uma música universal poderia ser enunciada, imaginada e realizada de maneira efetiva. Afirmar e criar uma música universal através e contra o Brasil dominante é o impulso que materializou a forma e o conteúdo dessa música.

2.

De maneira louvável, o seu desaparecimento foi notado inclusive por veículos que raramente dão atenção ao falecimento de músicos radicais e originais: The New York Times, Le Monde, The Guardian, Folha de S.Paulo, Estadão, O Globo e tantos outros dedicaram belos e longos obituários ao músico. Uma pena que outros músicos radicais e verdadeiramente criativos não tenham podido ter o mesmo espaço. A força da música e da pessoa de Hermeto Pascoal não pôde ser ignorada nem por eles.

Há também uma certa ironia nessa promoção de um músico que, por um lado, sempre foi avesso à grande mídia e nunca fez concessões mercadológicas durante sua longa carreira musical – tendo inclusive enfrentado problemas legais relacionados a direitos de difusão e reprodução, pelo fato de exigir o máximo de autonomia para a sua música.

E que, por outro lado, sabendo da sua força de sua música e do carisma da sua figura singular, nunca abriu mão da possibilidade de ocupar certos espaços mainstream — basta acessar as dezenas de vídeos no YouTube em que Hermeto Pascoal participa de vários programas famosos da televisão brasileira. Algumas performances são excelentes, mas o melhor certamente é o desprezo que o músico demonstra pelos apresentadores.

Fica uma obra absolutamente singular, composta de discos, inúmeros registros audiovisuais e memórias do público e músico. Penso que a diversidade da sua obra se encontra melhor sintetizada no disco Só não toca quem não quer (1987) e que o disco seguinte, Festa dos Deuses (1992), é aquele que mais apontou para a abertura do futuro. Hermeto Pascoal também se destaca por ter criado, durante os anos 1980, um grupo coeso de músicos que o cercavam e lhes eram fiéis. Isso foi determinante para o alcance e a profundidade formal que ela atingiu.

Hermeto Pascoal pôde, assim, liderar uma das bandas mais entrosadas e coletivamente criativas da história da música instrumental mundial. Basta ver qualquer concerto dessa época para perceber isto.[i] O grupo era composto por Itiberê Zwarg no baixo, Márcio Bahia na bateria, Carlos Malta nos sopros, Pernambuco na percussão e Jovino Santos Neto nos teclados (na verdade, todos eram multinstrumentistas).

Sem dúvida, o feito mais impressionante dessa formação clássica foi terem conseguido funcionar como uma microcomunidade durante mais de uma década. A devoção dos músicos à música de Hermeto Pascoal eram tantas que todos se mudaram para o bairro do Jabour. Dessa maneira, vizinhos, mantinham uma rotina diária de longos ensaios coletivos que lhes permitia trabalhar a música nos mínimos detalhes. Isso é coisa raríssima em qualquer lugar do mundo.

Foi essa coletividade que se criou a partir de uma música que emanava de um criador singular, mas que se formava na comunhão daquele grupo de músicos que se dedicaram quase religiosamente à criação coletiva que permitiu à música atingir o mais profundo dos conteúdos existenciais.

3.

O grupo clássico também sofreu os efeitos do “fim da história” e se dissolveu em meados de 1992, com a saída de Carlos Malta, Jovino e Pernambuco. Hermeto Pascoal, aos poucos, recompôs o grupo com Vinícius Dorin (saxofone), André Marques (piano) e seu filho Fábio Pascoal (percussão). Na década de 2010, Ajurinã Zwarg passou a ocupar a bateria e, após o falecimento de Vinícius Dorin, Jota P assumiu os sopros.

Hermeto Pascoal continuou produzindo muitos discos até o final de sua vida. Eu e Eles (1999) se destaca por ter sido aquele no qual ele gravou todos os instrumentos. Trata-se também de um dos álbuns mais experimentais do músico. Vale chamar a atenção para o livro de partituras batizado de Calendário do Som, escrito entre os junhos de 1996 e 1997.

O livro documenta um ano inteiro de produção musical, no qual Hermeto Pascoal se comprometeu a escrever uma música por dia, dedicada a cada dia do ano. Dessa forma, todas as pessoas são contemplados com uma composição de aniversário. É um presente de Hermeto à humanidade. Como somos milhões nascidos nos mesmos dias, fomos todos presenteados, enquanto indivíduos e como coletividade humana, com uma música dedicada a cada um de nós e a todos aqueles espalhados pelo mundo que compartilham conosco o nosso dia de nascimento. Esse presente pode, inclusive, ser estendido àqueles que já faleceram, afinal, eles também nasceram algum dia.

É sempre importante recordar aquele momento que talvez tenha sido o ponto de virada crucial para a carreira de Hermeto Pascoal e, certamente, um dos momentos determinantes na história da música brasileira. Trata-se do Quarteto Novo, grupo extremamente original e radical, embora de curta duração, composto por Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Théo de Barros e Airto Moreira, e principal responsável pela invenção da improvisação musical genuinamente brasileira.

Isto é, o grupo que conscientemente se afastou da influência do vocabulário do jazz para, como em uma negação determinada, materializar coletivamente um jeito bem brasileiro de utilizar o material musical próprio deste país para efetivamente improvisar música. Essa criação coletiva está registrada no único disco homônimo do Quarteto Novo, gravado em 1967 – e nunca é demais lembrar que eles eram o grupo que acompanhava Geraldo Vandré, inclusive na lendária performance de Disparada no Festival da Record.

Pode parecer estranho enfatizar uma invenção de caráter tão brasileiro após ter iniciado este artigo falando da música universal. Poderia soar como um apelo nacionalista, o que não condiziria com o discurso e a prática musical elaborados por Hermeto Pascoal nas décadas seguintes até seu desaparecimento. O que ocorre é exatamente o contrário: foi mergulhando naquilo que há de mais profundo na música brasileira, nos detalhes das construções e tradições musicais populares, na experiência territorial e histórica deste país sedimentada na sua música que Hermeto Pascoal e seus camaradas conseguiram extrair coletivamente aquilo que viria a ser a matéria bruta da dimensão universal de sua música.[ii]

O momento exato em que fazia sua passagem para uma outra dimensão coincidiu com um show que os músicos da sua banda estavam fazendo em Belo Horizonte. Impedido de tocar, Hermeto Pascoal não fora, mas a banda, que segue viva agora batizada de Nave Mãe, não anulou o show e foi sem ele. Isto é, no momento que passava da vida a morte, a música transcendia e continuava viva com aqueles cinco músicos tocando-a no palco mineiro. É possível que continue a ser tocada por vários músicos e grupos espalhados pelo mundo afora. De fato não foram poucos músicos dos quatro cantos do planeta que na semana que seguiu a sua disparição saudaram a sua obra compartilhando experiências e memórias de rara beleza.

É cedo para medir o tamanho da herança efetiva que Hermeto Pascoal deixará na música e nas artes do planeta. Ela tende a ir para muito além da música brasileira e do mundo do jazz, e mesmo para além da música. Como música radical, ela se posiciona objetivamente contra o espetáculo dominante. Tempo e engajamento são necessários para a escuta da música universal. Ela é complexa, densa, mas está disponível para qualquer um.

Ao final do show no dia 13 de setembro, já sabendo do falecimento do farol que nos guiou, Itiberê Zwarg, Ajurinã Zwarg, Jota P, André Marques, Fábio Pascoal, acompanhados por Nivaldo Ornelas e pelos produtores, declamaram o seguinte poema escrito por Hermeto Pascoal como marco de início dessa nova vida:

“Este canto vem de longe /
A distância não sei dizer /
Salve, salve a toda gente /
Que vive e deixa viver /
Aqui vai o nosso abraço /
Com o som e o saber /
Tirando de nossas mentes /
As palavras pra dizer /
A música segura o mundo /
Enquanto a gente viver /
É a maior fonte sem fim /
De alegria e prazer /
Toquem, cantem, minha gente /
Até o dia amanhecer”.

*Frederico Lyra é filósofo, musicólogo e professor na França.

Notas


[i]Por exemplo: Hermeto Pascoal & Grupo June, 19, 1986, Antibes, Juan-les-Pins, France, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=NUCBBobAaTs

[ii]Para mais detalhes, permito remeter ao meu artigo publicado em 2019 no volume 18 da revista Passages de Paris: “Quarteto novo: A invenção da improvisação brasileira”, disponível em: https://www.apebfr.org/ojs/index.php/passadesdeparis/article/view/5/5


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