Jacarezinho

Edwin Sánchez. Torcido (Foto Laura Imery-IDARTES), Colômbia.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RENATO DA SILVA QUEIROZ*

Os capitães do mato caçam, pisoteiam e exterminam enfavelados naquele quilombo urbano

Os homens são muitos. Um pelotão. Mascarados, uniformizados, empunhando fuzis, metralhadoras e pistolas. Descem de viaturas camufladas, blindadas. Desfilam ao som de uma marcha fúnebre acelerada. Disparam suas armas.

Botas polidas derrubam portas de barracos barrocos, eternizados em quadros naif. Crianças em pânico, garotos em disparada, mulheres protegendo seus bebês, refugiadas nos cantos dos barracos. Homens indefesos estraçalhados.

Os capitães do mato caçam, pisoteiam e exterminam enfavelados naquele quilombo urbano. “Tudo bandido”. Pretos e quase pretos. Que não se emanciparam. Que não se libertaram. Por onde andará a princesa Isabel?

Eviscerados tentam escapar, segurando suas tripas explícitas. Escorregam no sangue corrente das vielas estreitas e mal traçadas. Estampidos, gritos, dor, pavor. Fogo. CPFs cancelados. “Tudo bandido”. “Atira na cabecinha!”.

Camburões fúnebres enfileirados, prontos para o desfile triunfal. Cadáveres não-reconhecíveis. “Tudo bandido”. Falta-lhes rosto, falta-lhes identidade, falta-lhes dignidade, falta-lhes humanidade.

O ataque prossegue. Mais sangue para saciar a sede dos que ordenaram o extermínio. Mais sangue! Mais sangue! Mais sangue! Densa fumaça deixa os canos das armas. Bebês crianças moleques mulheres homens indiferenciados – “tudo bandido”.

Barracos não são casas, não são lares, enfavelados não são gente. Derruba! Põe fogo! Mata! Mata! Sem clemência, sem piedade. “Tudo bandido”.  O fedor da morte não se dissipa.

Cães farejadores, os capitães do mato vasculham os barracos. Põem abaixo portas e janelas e móveis e tudo o que estiver em pé. Nada poderá permanecer em pé. A verticalidade do morro dá lugar à horizontalidade da morte.

Encerrada a matança os capitães do mato retornam às delegacias. Botas ensanguentadas. Confraternizações. Aclamados. Reverenciados. Condecorados. Cumpriram ordens. Com o prazer dos sádicos, com o olhar dos loucos.

Os que sobreviveram à matança buscam seus mortos. Sem abraço derradeiro, sem despedida derradeira. As lágrimas já foram todas vertidas. Essa gente não se apega mesmo à vida. “Tudo bandido”.

*Renato da Silva Queiroz é professor titular do Departamento de Antropologia da USP. Autor, entre outros livros, de Um mito bem brasileiro (Polis).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Jorge Luiz Souto Maior Paulo Martins Chico Alencar Anselm Jappe Henri Acselrad Igor Felippe Santos Eleutério F. S. Prado Bento Prado Jr. Francisco Pereira de Farias Otaviano Helene Valerio Arcary Bernardo Ricupero Bruno Machado Leda Maria Paulani Everaldo de Oliveira Andrade Ronaldo Tadeu de Souza Daniel Afonso da Silva Ricardo Abramovay Ricardo Antunes Renato Dagnino José Machado Moita Neto Elias Jabbour Ricardo Fabbrini Dennis Oliveira Jorge Branco Eugênio Trivinho Luis Felipe Miguel Marcelo Módolo Flávio R. Kothe Manuel Domingos Neto Thomas Piketty Antonio Martins Michael Roberts Luiz Eduardo Soares Gilberto Lopes Armando Boito Érico Andrade Ari Marcelo Solon Luiz Roberto Alves Sandra Bitencourt Slavoj Žižek Salem Nasser Afrânio Catani Luís Fernando Vitagliano José Micaelson Lacerda Morais Heraldo Campos Antônio Sales Rios Neto Gilberto Maringoni Francisco de Oliveira Barros Júnior José Costa Júnior Andrew Korybko Paulo Nogueira Batista Jr Michel Goulart da Silva Gabriel Cohn Flávio Aguiar Rubens Pinto Lyra Vanderlei Tenório Francisco Fernandes Ladeira João Sette Whitaker Ferreira Jean Pierre Chauvin Samuel Kilsztajn Walnice Nogueira Galvão Lincoln Secco Annateresa Fabris Luiz Bernardo Pericás Ronald Rocha Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Liszt Vieira Daniel Costa João Adolfo Hansen Mário Maestri Luiz Carlos Bresser-Pereira Priscila Figueiredo Caio Bugiato Yuri Martins-Fontes Fernão Pessoa Ramos Chico Whitaker Paulo Sérgio Pinheiro Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Dirceu Tadeu Valadares Carla Teixeira Mariarosaria Fabris Paulo Fernandes Silveira Marjorie C. Marona Boaventura de Sousa Santos João Carlos Loebens André Singer André Márcio Neves Soares Leonardo Boff Remy José Fontana Fábio Konder Comparato Marcelo Guimarães Lima Tales Ab'Sáber Eugênio Bucci Lucas Fiaschetti Estevez Milton Pinheiro José Raimundo Trindade Vinício Carrilho Martinez Alexandre de Lima Castro Tranjan Marilia Pacheco Fiorillo Tarso Genro João Carlos Salles José Geraldo Couto Matheus Silveira de Souza Alexandre Aragão de Albuquerque Ladislau Dowbor Ronald León Núñez Osvaldo Coggiola Paulo Capel Narvai Eliziário Andrade Jean Marc Von Der Weid Kátia Gerab Baggio Manchetômetro Eduardo Borges João Paulo Ayub Fonseca Alysson Leandro Mascaro Andrés del Río Celso Favaretto Marcus Ianoni Sergio Amadeu da Silveira João Lanari Bo Denilson Cordeiro João Feres Júnior Fernando Nogueira da Costa Carlos Tautz Alexandre de Freitas Barbosa Benicio Viero Schmidt Leonardo Avritzer Antonino Infranca Gerson Almeida Lorenzo Vitral Marcos Aurélio da Silva Rodrigo de Faria Dênis de Moraes Airton Paschoa Luiz Renato Martins Plínio de Arruda Sampaio Jr. Valerio Arcary Atilio A. Boron Vladimir Safatle Celso Frederico Luiz Marques Juarez Guimarães Eleonora Albano Claudio Katz Marcos Silva José Luís Fiori Rafael R. Ioris Henry Burnett Luiz Werneck Vianna Berenice Bento Marilena Chauí Michael Löwy Julian Rodrigues Luciano Nascimento Maria Rita Kehl Daniel Brazil Ricardo Musse Leonardo Sacramento

NOVAS PUBLICAÇÕES