Por MÁRIO MAESTRI*
Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
Há 90 anos, em inícios de 1935, Aderbal Jurema, de 23 anos, apenas egresso da Faculdade de Direito de Recife, publicou um livro, para a sua época, excêntrico às leituras do passado escravista brasileiro – Insurreições negras no Brasil. Em forma pioneira, desenvolvia a proposta da oposição, entre escravizados e escravizadores, como expressão da luta de classes sob a escravidão. Apesar de seu caráter referencial, o livrinho permaneceu praticamente desconhecido pela historiografia brasileira.
Entre as razões do tardio e frustrado reconhecimento da centralidade do trabalhador escravizado no devir da história do Brasil pré-1888, destacam-se a longa vigência da ordem negreira e de suas classes hegemônicas; a gênese tardia e atomizada da moderna classe trabalhadora na república federalizada de 1889 a 1930; a demorada chegada ao Brasil de um marxismo rapidamente abastardado; um partido comunista dirigido pelo colaboracionismo stalinista; o forte dinamismo do populismo burguês. O resultado foi que, por um longo período, silenciou-se a contradição entre o escravizado e o escravizador como o nexo central do passado pré-Abolição.
Após o fim do escravismo, sob o prestígio do dito “racismo científico”, reinou o anátema lançado pelo maranhense Nina Rodrigues e seus seguidores sobre uma sociedade brasileira comprometida pela miscigenação. A partir de 1933, com Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre, governou, como senhor de baraço e cutelo, sobre as narrativas referentes ao passado escravista e às relações raciais do país. O magnífico cabotino, propôs colaboração hierarquizada de europeus, negros e índios como imprescindível à transposição da cultura ocidental aos Trópicos.
Foram poderosos os apoios e as razões do longo silenciamento da centralidade da luta de classe na escravidão brasileira, a mais longeva, acabada e impiedosa ordem negreira, que massacrou milhões de trabalhadores escravizados. A negação da determinação da sociedade brasileira pela ordem escravista; a sua apresentação, ontem e hoje, adocicada; as negativas de sua materialidade e organicidade e por aí vai, permitiram a apresentação de facção das classes exploradoras como os demiurgos do fim da escravidão e da emancipação capitalista do Brasil.
O silêncio dos vencidos
Nessa reconstrução fantasmagórica do passado escravista, vozes, memórias, leituras, interpretações transgressoras, com raízes ou inspiradas nos oprimidos, foram silenciadas pela marginalização, cancelamento e, mesmo, pela violência. Em sentido oposto, foram legitimadas, consagradas e financiadas, as apologias que interpretavam, consolidavam e modernizavam as narrativas tranquilizadoras do passado, desconhecendo e minimizando a luta dos trabalhadores escravizados, para melhor sufocar e combater a dos trabalhadores atuais. [GORENDER, 1990.]
Nesse movimento de ocultação, destacou-se a marginalização do livro germinal de Clóvis Moura, nos anos 1950, Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, torpedeado, por Caio Prado Júnior e Édison Carneiro, intelectuais reconhecidos e camaradas do jovem autor, que os consultou em procura de apoio para o desenvolvimento e para publicação de sua investigação. (MAESTRI, 2022, p.280.) Em forma concomitante, o ensaio de Benjamin Péret, “Que foi o quilombo de Palmares?”, de 1956, conheceu igual conspiração do silêncio que, neste caso, se arrasta até hoje. [PÉRET, 1956.]
Ambos, Clóvis Moura e Benjamin Péret, nos limites da informação histórica da época, assinalaram o caráter escravista dominante da escravidão e o confronto entre o escravizador e o escravizado como expressão central da luta de classes no Brasil da época. O jovem intelectual piauiense, pouco conhecido, militante de partido stalinista, e o francês, consagrado intelectual e combatente trotskista, propunham que o avanço da sociedade brasileira dependera da destruição da escravidão.
Benjamin Péret morreu, em 18 de setembro de 1959, em Paris, na França. A seguir, se fez silêncio, quase total, sobre a dessacralização do trotskista e surrealista francês das visões oficiais e oficiosas sobre a escravidão brasileira. No Brasil, seus dois artigos foram apresentados, contextualizados e comentados, sob forma de livro, passados 45 anos, pela Editora da UFRGS. [PÉRET, 2002.] Apesar de esgotada, a edição foi raramente citada. Uma reedição, revista, prevista para o fim deste ano, será lançada por iniciativa do economista Nildo Ourique, diretor da Editora da Universidade de Santa Catarina.
Inventando a história
Em 1952, por carta,Caio Prado Júnior negou-se a publicar, na prestigiosa Brasiliense, Rebeliões da Senzala, sob desculpa pífia. O livro terminou sendo lançado, apenas em 1959, pela Edições Zumbi, pequena editora, de curta vida, fundada para divulgar livros rejeitados pela editora Vitória, do PCB, segundo me confessou Clóvis Moura, amargurado, em 30 de janeiro de 1999, ao me entregar cópia da correspondência com Caio Prado e Édison Carneiro, quando eu preparava artigo sobre a importância de seu livro. [MAESTRI, 2022.]
Nos anos 1950, o comunismo “marxista-leninista” colocava a luta pelo socialismo no congelador e entregava a sorte do movimento social à direção da espectral “burguesia anti-imperialista e anti-latifundiária”, aquela que deu o golpe em 1964. Reconstruindo a história segundo suas necessidades políticas, os intelectuais orgânicos pecebistas propunham, como o conflito central do passado escravista, o choque entre os latifundiários e um campesinato construído “ad hoc”, invisibilizando os cativos e suas lutas.
Clóvis Moura pretendeu dar um passo à esquerda, rompendo com o PCB, ao ingressar no PCdoB, em 1962, poucos anos após a publicação de Rebeliões da Senzala. Porém, o partido dos futuros maoístas brasileiros, onde militou por longos anos, seguiu, com uma retórica esquerdista, a mesma orientação política e interpretação colaboracionista da formação social brasileira do partido-mãe com o qual rompera. Clóvis Moura viveu sob aquela cultura, sem poder aprofundar o salto epistemológico que dera, para o qual, lhe faltou, igualmente, recursos para avançar essa sua investigação.
Em meados dos anos 1950, a chamada “Escola Paulista”, conformada, sobretudo, por Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, iniciou investigação sobre a escravidão e as relações raciais no Brasil. Ela impugnou as teses da escravidão patriarcal e da democracia racial, enfatizando o despotismo escravista e suas sequelas pós-1888, com destaque para o racismo. Porém, apresentou o cativo como um “figurante mudo”, objeto e jamais sujeito do devir da história do Brasil. A Abolição foi proposta como um “negócio de branco”, nascido do anacronismo da escravidão.
Saltos de qualidade
A retomada da visão sobre um Brasil escravista e da importância da oposição entre escravizados e escravizadores deu-se, em forma crescente, nos anos 1960, com importantes trabalhos, produzidos por, entre outros, J. Stanley Stein [1961], Emília Viotti da Costa [1966], Luiz Luna [1968], José Alípio Goulart [1971], Décio Freitas [1973]. Movimento muito logo reprimido, em 1964, pelo Golpe Militar, que demitiu, prendeu, torturou e assassinou intelectuais progressistas, esquerdistas, marxistas.
O salto de qualidade, nessa leitura, ocorreria, a seguir, com a interpretação do passado escravista a partir da categoria modo de produção escravista colonial. Em 1973, Ciro Flamarión Cardoso publicou, no exterior, artigo exemplar sobre a escravidão colonial. Anos mais tarde, ele retrocedeu nesse avanço epistemológico. [CARDOSO, 1973, 1987.] Em 1978, Jacob Gorender apresentou sua obra generativa O escravismo colonial. [GORENDER, 2016.] Em fins dos anos 1970, o avanço das lutas sociais no Brasil impulsionava as leituras do passado e do presente a partir da ótica do mundo do trabalho.
A refundação da historiografia da escravidão a partir do trabalhador feitorizado foi submetida, quase de imediato, a um esforço acadêmico de deslegitimação, através, não raro, da proposta de cativos que comiam bem, trabalhavam pouco, apanhavam ainda menos; impunham suas vontades negociando com os escravizadores; libertavam-se aos borbotões, através de alforrias; constituíam habitualmente famílias estáveis; exploravam com enorme sucesso pequenas parcelas agrícolas; defendiam a escravidão. [MAESTRI, 2015.] O esforço restauracionista tornou-se hegemônico quando a noite caiu sobre o mundo social, com a vitória mundial da contra-revolução liberal, assinalada pela derrota da URSS, em 1991.
Há 90 anos
Há 90 anos, em inícios de 1935, Aderbal Jurema publicou seu pioneiro livro Insurreições negras no Brasil. O jovem paraibano apresentara, no ano anterior, no I Congresso Afro-Brasileiro, de Recife (11-15 de novembro), organizado por Gilberto Freyre, a comunicação “O potencial revolucionário do negro brasileiro”, resumindo as propostas que desenvolveria no seu livrinho, do ano seguinte. Sua comunicação não foi publicada nos anais do Congresso.
Ao escrever Insurreições negras no Brasil, Aderbal Jurema era um jovem militante comunista, galvanizado pela reorientação esquerdista do comunismo internacional, quando dos chamados “Terceiro Período” e “social-fascismo”. Em 1928, sob a direção de Joseph Stalin, a Internacional Comunista propôs que o nazifascismo era um fenômeno transitório e o principal inimigo da revolução seria a social-democracia. Superado o primeiro e vencida a segunda, o mundo ingressaria em era de vitórias da revolução proletária. O barco revolucionário devia ser lançado ao mar, não importando o tempo que fizesse.
Em 1933, devido aos enormes desastres que produzira, o ultraesquerdismo do “Terceiro Período” foi abandonado pela III Internacional. Em agosto de 1935, ele seria substituído pela orientação direitista e colaboracionista das Frentes Populares, que defendia o combate ao fascismo abraçado com a burguesia proposta como democrática. Entre outros desastres, a nova orientação enterrou o impulso revolucionário francês, quando do Front Populaire (1936-1938), e a Revolução Espanhola (1936-1939).
Ao apagar das luzes do “Terceiro Período”, sua aplicação no Brasil resultou no desastroso putch vanguardista do PCB, de novembro de 1935. Realizado à margem e sob o desconhecimento dos trabalhadores, até a sua eclosão, ele apoiou-se essencialmente nos oficiais e nos soldados comunistas e antifascistas da Aliança Nacional Libertadora. O movimento facilitou o golpe de Getúlio Vargas, de novembro de 1937, e o longo período ditatorial que se prolongou até 1945. [FREITAS, 1998.]
Pouca ilustração
Pesou sobre o ensaio de Aderbal Jurema o seu limitado conhecimento da história do Brasil, comum à enorme parte da intelectualidade comunista de sua época. Nenhum intelectual de peso aderiu ao PCB, imediatamente após sua fundação. A literatura marxista foi traduzida de forma demorada e limitada ao português. De 1937 a 1945, o país viveu sob a ditadura burguesa, o mesmo ocorrendo em Portugal, de 1933 a 1977.
Compreende-se que Aderbal Jurema se apoie em Casa Grande & Senzala, de Freyre, ao explicar, em uma falsa lógica culturalista, a preferência, do africano ao nativo, como trabalhador escravizado, já que, segundo o sociólogo pernambucano, o americano pouco praticaria e pouco se adaptaria à cultura agrícola. Interpretação que segue viva nos dias de hoje.
O jovem comunista abraçou igualmente as propostas de reduções jesuítas nascidas da cobiça clerical pela força de trabalho nativa – “Não era talvez menor a tirania do religioso, na missão, que a do lavrador, na fazenda.” Uma interpretação retomada, por Freyre, em seu trabalho referencial, dos encomenderos e escravistas sul-americanos que desejavam feitorizar os nativos.
A modernidade de Insurreições negras no Brasil não se deve apenas à afirmação da proposta do confronto entre escravizados e escravizadores como luta de classes, que se expressaria nas fugas, na formação de quilombos, nas insurreições, formas diuturnas de oposição do cativo à sua exploração e à construção do país tendo como “argamassa” o seu “suor”, “sangue” e “carne”.
Dupla dominação
Aderbal Jurema vai mais longe, ao definir que, nas Américas, a escravidão ensejara uma dupla dominação e “ódio”, de “classe” e de “raça”. A partir dessa visão, em breve capítulo dedicado ao “Negro nos Estados Unidos”, no qual, se apoiando em uma restrita bibliografia sobre o tema, avança reflexões comparativas, não despidas de interesse, para a sua época.
O autor dedica um capítulo ao “Estado Negro dos Palmares” e outro às “Principais insurreições negras”. Quanto à confederação de Palmares, repete algumas visões gerais então em curso, definindo-a como um “verdadeiro Estado africano”, “uma transposição da cultura africana para as terras das Alagoas”. Enfatiza, com argúcia, que Palmares não fora isento da “influência das senzalas”.
Em sua leitura sobre a confederação dos quilombos de Palmares, Aderbal Jurema apoiou-se em Nina Rodrigues, na expedição de João Blaer, em documentação editada e em autores nacionais, ou que escreveram sobre o Brasil colonial, como Oliveira Lima, Jaime Altavila, o inglêsRobert Southey, o alemão H. Handelmann. Sobre a África Negra Pré-Colonial, o autor sabia quase nada, comungando não raro com as fantasmagorias de origem colonial ou imperialista.
As principais insurreições
O jovem revolucionário dedicou um capítulo, também breve, às “Principais insurreições negras”, nas quais destaca os movimentos baianos. “De 1807 a 1835, as classes dominantes da Baía viveram em constantes sobressaltos por causa das periódicas insurreições de escravos”. Para o marxismo revolucionário, a insurreição dos trabalhadores é o principal caminho do assalto ao poder. Em 1928, para orientar as insurreições que seriam abertas pelo “Terceiro Período”, a III Internacional publicou, em alemão, sob o pseudônimo de A. Neuberg, o manual A Insurreição armada.
O quinto capítulo é dedicado aos “Negros nos movimentos populares”. Nele, Aderbal Jurema avança que os “escravos negros” “deram o seu forte contingente de rebeldia aos grandes movimentos populares que agitaram o governo colonial, imperial e republicano no Brasil”. Refere-se à forte adesão de cativos ao levante em Recife, em fevereiro de 1823; a escravizados que reivindicaram a liberdade, em Campo Grande, na Paraíba, quando dos Quebra-quilos; à revolta da marinhagem negra da armada, em 1910, sob a direção de João Cândido, encarnação das “energias revolucionárias do negro brasileiro”.
Saltos lógicos, tropeços históricos
No capítulo “Maus tratos na senzala e na roça”, a menos de cinquenta anos do fim da escravidão, com ex-cativos ainda vivos, Aderbal Jurema descreveu cenários do quotidiano dos escravizados, de “negros fugidos trabalhavam com gargaleiras ao pescoço e peias de ferro com manoplas bem pesadas, trancadas a cadeado”. Fala de cativos labutando com apenas “tanga de baeta encarnada amarrada à cintura com cipó caruru”. Refere-se a “senzalas” nordestinas que eram “verdadeiros chiqueiros”.
Ao comparar o “Negro escravizado e o negro assalariado”, em contradição com o que propusera, retoma a defesa de Gilberto Freyre da escravidão. Segundo ela, o assalariado vivia pior do que o cativo, já que o escravizador devia, em teoria, cuidar de seu investimento, e o capitalista, ao contrário, contratava e despedia os trabalhadores ao bel-prazer.
Sua explicação – que abstraía um tráfico negreiro despejando infelizes, aos borbotões e baixo preço, nos portos do Brasil – nascia, porém, da vontade de enfatizar a situação e a exploração do trabalhador negro contemporâneo. Sobre ele, afirma que conhecia a “escravidão dos salários miseráveis”. Realidade que se mantém, em forma substancial, em nosso país, neste fim de 2025.
Em breve conclusão, “O problema da liberdade”, refere-se a um cenário futuro, que acreditava estar em gestação no Brasil e nas Américas. Nele, a elevação da consciência e da união dos novos escravizados negros, pardos e brancos, os faria avançar em direção a um mundo de autonomia, sem preconceitos e desigualdade. Ele não define este mundo futuro como socialista ou comunista, certamente, para não espantar os propostos aliados “capitalistas democratas e anti-imperialistas” de burguesia progressista.
Burguesia revolucionária
Projetando essa visão para o passado, Aderbal Jurema afirmou que, quando da escravidão, fora uma “jovem burguesia brasileira”, “anti-escravocrata”, que não define, que golpeara o “feudalismo luso-brasileiro” , procurando, na Abolição, “enfraquecer o sistema feudal de exploração e fortalecer a economia liberal do salário”. Tudo, segundo o abecedário moscovita, que definia o Brasil como formação semi-feudal e propunha uma revolução burguesa, antes de partir para a luta pelo socialismo.
Em uma latente tensão interna à sua narrativa, Aderbal Jurema apresentou, por um lado, a contradição, entre escravizados e escravizadores, como luta de classes, e sugeriu, pelo outro, a superação da escravidão impulsionada pela ação de burgueses progressistas fantasmagórica. Em explicitação dessa tensão analítica, reclama que Caio Prado Júnior, em Evolução política do Brasil, de 1933,livro que define como “interpretação materialista da história” brasileira, “tenha subestimado os movimentos dos negros, silenciando por completo sobre Palmares”,.
Naquele livro,Caio Prado fizera pior do que ignorar a luta de classes na escravidão, o que era coerente com seu estranhamento ao método marxista. Ele desqualificou, como grosseira, e ironizou a liderança de dom Cosme Bento das Chagas, o Negro Cosme, “defensor e protetor das liberdades Bem-Te-Vis” (liberais), o principal líder quilombola da Balaiada, no Maranhão.
Ignorando a centralidade da luta de classes na escravidão, Caio Prado podia apresentar, com maior coerência interna, mas em contradição com a realidade histórica, sua leitura da superação do escravismo como obra das pressões externas e dos impulsos modernizadores da sociedade do Brasil. Formação social que ele via com uma natureza capitalista, desde suas origens, em visão de inspiração weberiana e estranha ao marxismo.
Dupla opressão
Ainda que em forma sumária, destaca-se, em Insurreições negras no Brasil, a assinalada proposta de que o trabalhador negro, na escravidão e após ela, sofrera uma dupla opressão, de “classe e de raça”. Aderbal Jurema lembra, com acuidade, a dominância e determinação da opressão de classe sobre a de raça. Rejeita os “muitos dos nossos historiadores que querem dar ao sentido revolucionário do negro um caráter profundamente religioso”. Avança que esse impulso nascia, comumente, de tensões da luta contra a exploração, pela terra, pela liberdade.
Em forma correta, mas em viés mecanicista, lembra que, nos confrontos do passado, a “cultura maometana e cultura católica agiam como superestruturas de subestruturas econômicas em antagonismos irreconciliáveis”. Recorda que as Cruzadas não “foram motivadas unicamente” pela vontade de reconquistar o “santo sepulcro”. Cinco anos mais tarde, o historiador marxista Christopher Hill, no clássico A revolução inglesa de 1640, descreveualuta de classes, que abrira o caminho na grande ilha para a ordem capitalista, galvanizada por interpretações opostas sobre a Bíblia.
Mudando de trincheira
O germinal livrinho, de 1935, foi praticamente esquecido. Poucos meses após a publicação, comunistas, socialistas, antifascistas foram perseguidos, presos, torturados, mortos, quando da repressão ao movimento de novembro daquele ano. E, após o golpe getulista de 1937, conheceram a longa perseguição, da qual saíram, apenas, após a “redemocratização”, em 1945.
Sobreviveram a tudo isso raros exemplares da edição original de Insurreições negras no Brasil, publicada em inícios de 1935, pelas Edições da Casa Mozart, de Recife. Apesar do avanço analítico, o livrinho teve apenas uma reedição, com “feição fac-similar”, na administração do governador pernambucano Gustavo Kruse [1986-87], do PDS, para homenagear o autor, convertido ao conservadorismo. Havia muito, Aderbal Jurema mudara de trincheira, uma outra razão para o olvido-rejeição do trabalho, pela esquerda e, possivelmente, pelo próprio autor.
Insurreições negras no Brasil teria inspirado Clóvis Moura, que o citou, retomando e ampliando, de forma significativa, qualitativa e quantitativamente, as teses de 1935, em seu livro referencial, publicado vinte anos mais tarde. Eugene Genovese, destacado historiador estadunidense da escravidão, ao abordar a historiografia dos levantes dos escravizados nas Américas, citou, em Front Rebellion to Revolution, de 1979, o trabalho de Aderbal Jurema, assim como o de Luiz Luna, de 1968, O negro na luta contra a escravidão.
*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).
Referência

Aderbal Jurema. Insurreições negras no Brasil. Recife, Edições da Casa Mozart, 1935.
Bibliografia
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CARDOSO, Ciro Flamariam S. Escravo ou camponês. O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016.
MAESTRI, M. Como era Gostoso ser Escravo no Brasil: A Apologia da Servidão Voluntária de Kátia de Queirós Mattoso. Revista Crítica Histórica, 2015. 6(12). https://doi.org/10.28998/rchvl6n12.2015.0010.
MAESTRI, Mário. Filhos de Cã, Filhos do Cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira. Porto Alegre: FCM Editora, 2022.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Zumbi, 1959
PÉRET, Benjamin. “Que foi o quilombo de Palmares?” Revista Anhembi, São Paulo, abril e maio, 1956.
PÉRET, Benjamin. O quilombos dos Palmares. Organizada e apresentada por Mário Maestri e Robert Ponge. Porto Alegre: EdUFRGS, 2002.
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