Por LUÍS AUGUSTO FISCHER*
Prefácio da nova edição – revista e ampliada –, recém-lançada, do livro de Homero Vizeu Araújo
1.
Machado de Assis conta com uma galeria notável de leitores sulinos. Pode-se começar a descrevê-la com Alcides Maya, jornalista e escritor (1878-1944) de primeiro plano no Rio Grande do Sul nas primeiras décadas do século XX, primeiro gaúcho eleito para a Academia Brasileira de Letras – e sua nomeada nacional nasceu em parte de sua ficção, misto de empenho localista com visada naturalista largamente ressentida e linguagem parnasiana.
Mas em outra parte justamente por um estudo sobre a figura central da Academia: em 1912 veio à luz Machado de Assis – Algumas notas sobre o humour, em mais de um sentido o primeiro estudo monográfico sobre o grande escritor carioca, o que não é pouca coisa, em se tratando de quem se trata e considerando o recorte notavelmente específico operado por Alcides Maya, que à diferença da generalidade do comentário sobre a obra machadiana tal como praticada por Sílvio Romero (Machado de Assis, 1897) em seu maledicente estudo, e da abordagem biográfica levada a efeito por Alfredo Pujol (Machado de Assis, 1917). Abordagem ousada, grande ganho crítico, pensamento enfim moderno, no contexto, praticado na crítica literária.
O segundo dessa família certamente será Augusto Meyer (1902-1970). Poeta e crítico que se converteu em administrador cultural, Augusto Meyer veio a ser uma referência forte em todo o país por vários motivos, especialmente por seu clássico Machado de Assis, publicado pela primeira vez em 1935 e revisto em 1958, livro responsável por uma notável ampliação do horizonte crítico em torno do autor das Memórias póstumas de Brás Cubas, eis que alinhou o escritor brasileiro a autores europeus de primeiro nível, em particular Fiódor Dostoiévski, para nem falar de suas instigantes embora incompletas observações sobre procedimentos narrativos empregados por Machado.
Mais uma vez, leitor moderno, inventivo, capaz de iluminar o debate. Ou deveríamos antepor a Augusto Meyer a figura lamentavelmente pouco lida, mas de enorme valor crítico, de Vianna Moog (1906-1988)? Em 1934, quando amargava uma experiência pessoal complicada (fora transferido punitivamente por Getúlio Vargas para os confins da Amazônia, onde precisou viver um par de anos, bem longe de sua Porto Alegre de eleição e de sua São Leopoldo natal), Vianna Moog lançou outro ensaio de visada cosmopolita sobre nosso autor: Heróis da decadência – Reflexões sobre o humour. Ali, Machado de Assis é colocado em linha com ninguém menos do que Petrônio e Cervantes, compondo os três, na visão do crítico, uma linhagem de humoristas, no sentido mais elevado do termo.
Poderíamos mencionar outros analistas nascidos igualmente na primeira década do século XX, como Guilhermino César, mineiro de origem, mas habitante de Porto Alegre na maior parte de sua vida. Não tendo escrito um livro inteiro sobre Machado de Assis, Guilhermino César porém frequentou muito sua obra, em vários artigos. Da mesma geração foi Alfredo Jacques, autor de livro-solo polêmico no tema.
Com muito maior qualidade figuram nessa época e tema ensaios de Moysés Vellinho, refinado crítico que em 1939 proferiu conferência que fez história na cidade, “Um brasileiro contra a paisagem”, que viria a constar no livro Machado de Assis: histórias mal contadas e outros assuntos (publicado em 1960). Mesmo Erico Verissimo, fundamentalmente um romancista, não se furtou a alguns palpites significativos sobre Machado de Assis em sua Breve história da literatura brasileira, escrita quando de sua primeira temporada norte-americana, em 1944.
2.
Mas de fato a sucessão de Maya, Meyer e Moog acontece na figura de Raymundo Faoro (1925-2003), também parte do Quixote, colega de turma do também machadiano Wilson Chagas na faculdade de Direito, leitor agudo e criativo da obra de Machado de Assis, tomada por Raymundo Faoro como uma espécie de guia geral para a leitura sociológica do Brasil, em particular do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Sua obra mais notável, Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro, teve uma primeira edição em 1958, em um volume, e voltou às prateleiras em segunda edição no ano de 1974, agora em dois alentados volumes.
Essa mudança, de aspecto arbitrário em relação ao nosso tema aqui, tem tudo a ver com Machado de Assis: porque foi justamente entre as duas datas que Raymundo Faoro esboçou uma leitura completa, minuciosa, empirista, da obra machadiana, que o ajudou decisivamente a reinterpretar o país e que rendeu um clássico, Machado de Assis – A pirâmide e o trapézio, de 1973. (Por uma curiosa coincidência, Raymundo Faoro seguiu os passos de Maya, Meyer e Moog, entrando também ele para a Academia Brasileira de Letras.)
Depois dessas figuras maiúsculas, cuja obra ainda hoje rende reflexões de relevo, se configurou a primeira geração universitária de Letras com formação e carreira de fato especializadas, gente que ingressa na universidade nas décadas de 1950 e 1960. Muitos escreverão trabalhos sobre Machado de Assis no sul; entre eles, caberá apontar Donaldo Schüler, Regina Zilberman, Juracy Assmann Saraiva e Flávio Loureiro Chaves, este um machadiano notório, o mais constante e produtivo da geração no metiê, pelos ensaios que escreveu mas também pelos muitos cursos que ministrou e pelas muitas dissertações e teses que orientou sobre o autor.
Alunos dele, gente da segunda geração profissional das Letras, foram Patrícia Flores da Cunha, Eunice Piazza Gai, Ildo Carbonera, todos com livro publicado no tema. A modéstia não pode me impedir de requerer matrícula entre os machadianos, nessa mesma geração, com meu estudo comparativo entre Machado de Assis e Jorge Luis Borges. Entre os nomes mais recentes de relevo, é obrigatória a menção a Lúcia Serrano Pereira, psicanalista que tem renovado o debate sobre Machado de Assis com seu trabalho crítico de grande inteligência e sensibilidade, unindo leitura interna eficaz com o instrumental freudiano e lacaniano.
3.
Tudo isso serve como parâmetro inicial da apresentação do livro que o leitor tem agora nas mãos. Homero Vizeu Araújo pertence à mesma geração que eu, esta que ingressou na universidade nos anos 1970 e 80, que cursou programas já bem estruturados de mestrado e doutorado.
É machadiano de carteirinha, embora nem seu mestrado nem seu doutorado tenham versado sobre o grande escritor. Talvez porque, como verdadeiro machadiano, sabia que era preciso esperar pela maturidade para arriscar-se nesse mar alto, em que tantos naufragam e muitos querem apenas surfar uma pequena onda de prestígio.
(Essa história do verdadeiro machadiano é uma piada interna, inventada por um machadiano verdadeiro, também gaúcho, amigo que o Homero e eu compartilhamos, um sujeito que ainda não tinha aparecido neste recorrido mas precisa aparecer: Aníbal Damasceno Ferreira. Autor de alguns textos muito criativos sobre certas figuras de escritores – entre os quais figura uma paródia a “Teoria do medalhão” chamada, hummm, “Teoria do machadista” –, Aníbal criou e espalhou a seguinte piada: dois machadianos se encontram e passam horas a desfiar impressões sobre Machado de Assis. Repassam detalhes de enredos, giros de linguagem, marcas de personagens, incluindo os mais obscuros dos dados, coisas de especialista fino. Depois da conversa, se afastam, com uma despedida formal.
Em seguida, um deles encontra um terceiro e, apontando para o outro machadiano com quem estivera a medir intimidade no tema, declara: “Tá vendo aquele ali? Não entende nada do Machado de Assis”. Segundo o Aníbal, este maledicente é o verdadeiro machadiano, que seria então, na sua versão, um vaidoso, um ciumento de seu machadismo. Segundo ele, o verdadeiro machadiano é necessária e fatalmente um ciumento.)
Mas ainda é preciso uma outra evocação, para entender o lugar que o presente livro ocupa no debate brasileiro. A linhagem de machadianos gaúchos foi lembrada e sumariada não para sugerir que o Homero Vizeu Araújo tem algo de localista em sua abordagem, aliás longe disso; a rigor, dos citados acima, o trabalho que neste livro se encontra dialoga talvez especificamente com um só, Raymundo Faoro, independentemente de pelo menos outros dois estarem no horizonte, Augusto Meyer e Flávio Loureiro Chaves.
Afinal, uma linhagem traçada pela geografia é, como um acidente da natureza, uma fatalidade, não uma escolha. Agora, é o caso de lembrar a filiação voluntária de Homero (e minha também) à tradição de interpretação que tem no Brasil seus mais altos expoentes em Antonio Candido e Roberto Schwarz, os dois fartamente referidos ao longo dos estudos que aqui se encontram.
Filiação voluntária: desde sua graduação, Homero Araújo demonstra não apenas simpatia ideológica como pertinácia metodológica para com essa tradição, que é a mesma de pelo menos dois grandes críticos do mundo ocidental, Erich Auerbach e Theodor Adorno, estes mais do que Georg Lukács e Walter Benjamin. Claro que só aqui já se esboça uma linhagem que a rigor mereceria matizamento, porque sabemos que uns e outros guardam distinções importantes – um Erich Auerbach que enfatiza muito mais os aspectos culturais difusos da linguagem literária, um Theodor Adorno que privilegia o nexo entre forma e processo social, etc.
Não é hora de teoria, nem eu seria a pessoa mais indicada para mergulhar nela. Aliás, para ser justo, preciso dizer que, na longa e proveitosa amizade e convivência profissional que temos mantido há mais de 30 anos, é o Homero Vizeu Araújo quem mais se ocupa dos aspectos conceituais e teóricos, enquanto eu tendo muito mais ao narrativo, ao anedótico e ao varejo da empiria.
Assim tem sido, para meu proveito, sempre que tenho sido brindado com a leitura dele em trabalhos meus, ocasiões em que o Homero me puxa a orelha para manter maior rigor conceitual aqui e ali, ou me indica uma dimensão mais abstrata num passo em que eu estava mergulhado na concretude de um texto. (Que eu me beneficio dessa amizade, atesta-o o ensaio sobre meu Machado e Borges, uma reflexão generosa sobre meu trabalho que está recolhida neste livro.)
De todo modo, vale esse registro de filiação mental dos trabalhos aqui reunidos à tradição de Candido e Schwarz no Brasil, Auerbach e Adorno no Ocidente, filiação que implica uma série de compromissos, que o leitor vai comprovar estarem atendidos aqui. Dois deles vale mencionar: um, schwarziano e adorniano, a quase obsessão em entender a estrutura da narrativa, a arquitetura do romance, os detalhes quase sempre deixados na sombra pelo fluxo da narração, mas que dão sentido a tudo; outro, candidiano e auerbachiano, o horizonte social em que se movimenta a linguagem, os temas, os personagens. Dessa mescla, que sou suspeito para declarar magnífica, se faz o método que anima os ensaios reunidos nesta publicação.
4.
Como nota biográfica relevante – eu acabei de dizer que tendo ao episódico, ao anedótico, e é verdade –, registro que Homero Vizeu Araújo e eu participamos de um grupo de professores, de várias universidades brasileiras, reunido justamente por nossa compartilhada afinidade com Antonio Candido e Roberto Schwarz, entre outros menos evidentes.
Chamamo-nos Grupo Formação, anotando em nossa designação um dos conceitos-chave de Antonio Candido, motivo de muita controvérsia e muita inteligência. Há mais de vinte anos nos reunimos a cada tanto com colegas cariocas, paulistas, paranaenses, goianos, potiguares, etc., e isso não é pouca coisa em matéria de aprimoramento de um ponto de vista.
E eis-nos aqui com esse material, ensaios sobre e em torno de Machado de Assis. Todos eles guardam uma primeira marca de convergência, para além do tema: o empenho em desenvolver, desdobrar, aprimorar um ponto de vista, esse aí acima referido.
Não se trata de turrice, e pelo contrário: é sinal de consistência intelectual, que merece ser saudada, mormente em nosso campo, o das Letras, em nosso país, em que é mais comum o sujeito trocar de teórico e de referência crítica a cada estação, a cada par de anos, para supostamente ficar “em dia” com as novidades do mercado acadêmico, numa sucessão em que as ideias têm prestígio mas não precisam ter valor de verdade, ou de busca por alguma verdade, nem são medidas cientificamente, isto é, não são submetidas ao teste da realidade, nem sofrem a necessária interpelação dos fatos. Homero Araújo mantém assim uma coerência rigorosamente admirável.
Machado de Assis estar no centro de um livro de ensaios, por outro lado, é coisa que guarda algumas significações a merecer apreciação. Não se trata de um conjunto de estudos sobre o autor carioca, em si e na totalidade: aqui há uma longa (e enormemente criativa) reflexão sobre o clássico estadunidense e ocidental Moby Dick, assim como dois ensaios que soltam chispas de inteligência em várias direções a partir do relato naturalista da virada do século XIX e do inventivo jornal O Pasquim. Isso sem contar o passeio drummondiano que está no centro de um dos ensaios, a atestar outra fidelidade homeriana.
Quer dizer: Machado de Assis é o centro gravitacional desse livro, mas não o assunto exclusivo. E essa condição, longe de significar capricho, precisa ser lida como uma interpretação, por si só: tomar o autor de Dom Casmurro nessa condição referencial, sabendo que Candido o tem na condição de ponto de chegada do longo processo de formação da literatura brasileira e que Schwarz o colocou no posto de um dos grandes inventores da forma moderna do romance ocidental, implica toda uma visada sobre o processo cultural brasileiro. E assim de fato acontece, aqui.
Dá pra acrescentar outra camada nesse assunto: lembrando Jorge Luis Borges, no originalíssimo ensaio “Kafka y sus precursores”, todo grande autor reordena a tradição – sua obra nos faz ver uma série de eventos, dados, características, que sem ela não se poderia ver. O argumento de Jorge Luis Borges tem aspecto de prestidigitação: ele diz que uma vez havia intentado escrever um ensaio sobre os precursores de Franz Kafka, autor que ele conhecera em alemão e em parte traduzira ao espanhol, mas que havia desistido, por se dar conta de que todo grande autor não provém de precursores, mas ao contrário ele os cria.
Os cria porque, tendo atingido um ponto altíssimo com sua obra, o grande autor realiza tendências apenas apontadas antes dele. Ora, Machado de Assis é alguém exatamente deste porte – um dos grandes da literatura mundial, nascido e nutrido pela realidade brasileira, autor de uma obra que, repetindo, reorganiza a tradição, dando a ver coisas até ali invisíveis.
Onde entra o livro de Homero Araújo nessa equação borgiana? A constelação que ele ajuntou em torno de Machado de Assis só é visível porque a obra de Machado de Assis assim o permite. Não é que de outro modo seriam inacessíveis autores como Euclides da Cunha, Oswald de Andrade e outros não façam sentido; é que, lidos na constelação em cujo centro está Machado de Assis, eles ganham outras cores, tão ou mais interessantes que as anteriores.
5.
Em aparente contradição com a tarefa de apresentar este livro, proponho ao leitor que nem falemos dos ensaios específica e estritamente dedicados a Machado de Assis, embora valha a nota: para além da qualidade de todos eles, do manejo produtivo do instrumental metodológico à frequentação viva e animadora do texto machadiano que se encontra em cada um dos cinco ensaios, aquele texto sobre Esaú e Jacó traz notável novidade na fortuna crítica, tanto quanto eu posso avaliar, ao demonstrar que o narrador ali armado, que é e não é o conselheiro Aires, toma a providência relativamente perversa de impedir a individuação dos dois gêmeos, em procedimento que tem total consistência com a enigmática figura de Flora, flor de ambivalência e de indecisão. Falemos, então, dos mais criativos trabalhos, daqueles que, a juízo deste leitor aqui, são os que fazem deste livro uma notável novidade no cenário crítico brasileiro.
“Modernos e enfurecidos” realmente joga luz inédita sobre todo um grupo de escritores e intelectuais da primeira geração republicana. Ao pensar neles tendo como ponto de referência, como régua de mensuração, as conquistas levadas a efeito por Machado de Assis, conquistas que se afiguraram ou como inigualáveis, ou como desprezíveis por muitas inteligências de sua época, o ensaio detecta familiaridades até agora inéditas entre os quatro (Aluísio Azevedo, Raul Pompéia, Euclides da Cunha e Lima Barreto), um grupo que talvez possa ser acrescido de outros, como Alcides Maya e Sílvio Romero, creio eu.
Em todos eles, nos ensina Homero Vizeu Araújo, vamos encontrar não genericamente os “paladinos malogrados” que o já clássico estudo de Nicolau Sevcenko identificou em Lima Barreto e Euclides da Cunha, mas escritores que desenham coletividades em textos panfletários, a partir de um ponto de observação que combina crítica e ressentimento, sendo todos eles, em alguma medida, suicidas. Não são poucas as intuições analíticas, convenhamos.
Da mesma estirpe iluminadora é o texto sobre O Pasquim, sobre Ivan Lessa, sobre o que Homero Vizeu Araújo acertou em chamar de “Tropicalismo cínico”, aquele humor anarquizado do texto lessiano – Homero foi desencavar uma novela seriada que ele publicou naquele semanário, em que Machado de Assis é sacaneado de um modo altamente eloquente – que realmente nos faz olhar para o movimento de Caetano e Gil como tendo sido algo bem comportado, muitíssimo construtivo e empenhado, em comparação com o nihilismo metalingüístico e carnavalesco do grande Ivan Lessa. Um insight crítico que ainda vai render muita análise, eu espero.
Mas a pedra-de-toque do conjunto de ensaios aqui agrupado, aquele que num filme norte-americano poderia ser descrito com o clichê “o ponto da separação entre os meninos e os homens”, me parece ser aquele passeio inesperado pelas águas nada óbvias da comparação entre as Memórias póstumas de Brás Cubas e Moby Dick.
(Aqui cabe mais uma evocação, mais um desvio narrativo: o grande romance do capitão Ahab e sua demenciada procura pela baleia entrou nas cogitações recentes do Homero por obra e graça de nosso já mencionado trabalho conjunto, neste caso enriquecido sobremaneira pela presença de Ian Alexander. Australiano de origem, empirista da melhor cepa anglo-saxã e com vocação para as grandes equações históricas, sem prejuízo da leitura miúda da tradição narrativa ocidental, o Ian começou uns tempos atrás a fazer parte de nosso grupo local de estudos – por anos mantivemos, o Homero Vizeu Araújo e eu, com o acréscimo do Guto Leite e Karina Lucena, um seminário de leitura, no Pós-Graduação em Letras da UFRGS, invariavelmente repassando a tradição Candido-Schwarz e os nossos prediletos Lukács, Adorno e outros, sempre acrescentando algum interesse novo no mesmo campo, como é o caso de Franco Moretti.
Em certo momento, creio que no já remoto 2008, estávamos relendo Mimesis, de Auerbach, quando o Ian sugeriu abordar, entre outros romances de língua inglesa, justamente Moby Dick, o primeiro grande romance do Novo Mundo, dizia ele, que Auerbach tinha deixado de lado por haver naturalizado a visada eurocêntrica que de fato está na alma de seu trabalho.
Um mais um, dois: Homero Vizeu Araújo tomou a si o encargo de voltar ao velho livro de Melville, mas agora à luz de anos de estrada candidiana e no âmbito da reflexão auerbachiana, esta sendo dedicada, em Mimesis, a pensar sobre os modos de representação da realidade na literatura ocidental.)
6.
Salvo melhor juízo, ninguém antes de Homero Vizeu Araújo havia sacado as várias analogias estruturais entre os dois grandes romances do Novo Mundo, da América, com seus dois narradores em primeira pessoa, graciosos a ponto de promover piruetas verbais, um deles morto e o outro sobrevivente de naufrágio, ambos representando, como o ensaio trata de mostrar, esforços desiguais mas convergentes na direção de reinventar a forma romance em sua transferência de objeto e de ambiente, desde a Europa até a América.
O leitor vai ver como ilumina a cena o alinhamento promovido pelo ensaio, que, dito em um sentido, incorpora o clássico de Melville ao patrimônio formativo, vendo as coisas pelo lado candidiano, e que, dito em outro, estende as reflexões schwarzianas maduras para as paragens estadunidenses (sublinho que as maduras, porque as verdes já tinham tomado a ficção do “grande irmão” do norte como assunto, como se lê naquele ensaio sobre A letra escarlate, que foi editado em A sereia e o desconfiado).
Isso sem contar o requinte de acrescentar Baudelaire, Castro Alves e Manoel Antônio de Almeida ao conjunto. Quem pode querer mais de um ensaio, como este que se mostra capaz de colocar em movimento uma comparação nada óbvia segundo uma chave histórica e sociologicamente informada? Com a complexa equação que trama, Homero Vizeu Araújo inscreve seu trabalho no repertório dos grandes ensaios sobre Machado de Assis, neste caso em perspectiva comparatista sólida, relevante, inventiva.
Nesse ensaio, que imodestamente (mas fraternamente) tomo como primo-irmão de meu ensaio envolvendo Poe, Machado e Borges, creio que temos um embrião de uma possível história formativa da literatura novomundista, sonho que o Homero Vizeu Araújo, o Ian Alexander e eu acalentamos.
Nesse ensaio e nos outros que perfazem este belo livro, escrito com leveza e algum humor pícaro mas com grande rigor conceitual, o leitor vai encontrar motivo suficiente para retomar leituras, para pensar o país e o Ocidente, para refletir mais informadamente sobre como é ser herdeiro de Machado (e de Melville, dos realistas, de Drummond, do Pasquim) neste tempo que nos cabe viver.
*Luís Augusto Fischer é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor, entre outros livros, de Duas formações, uma história: Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio (Arquipélago Editorial). [https://amzn.to/3Sa2kEH]
Referência

Homero Vizeu Araújo. Machado de Assis e arredores (revisado e ampliado). Porto Alegre, Editora Coragem, 2025. [https://abrir.link/NSKdC]
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA





















