Por Scarlett Marton*
A partir do ano 2000 Nietzsche torna-se “popular” no Brasil; é explorado pela mídia, utilizado pelos meios de comunicação, apropriado pelo mercado editorial
A presença de Nietzsche é incontestável entre nós. Nas últimas décadas, a repercussão de seus escritos acabou por fazer-se sentir nas mais diversas áreas: na literatura, nas artes plásticas, na música, na psicanálise, nas chamadas ciências humanas.
Houve quatro ocasiões em que a sua presença se fez sentir com maior ênfase no Brasil. Já no início do século, suas ideias despertaram interesse; aqui chegaram, provavelmente, através do movimento anarquista europeu e, em particular, do espanhol, que considerava Nietzsche um pensador dos mais revolucionários. E sua obra deixou marcas em romances e contos brasileiros de teor anarquista.
Poucas décadas depois, seguindo o espírito da época, Nietzsche passou a ser tomado em nosso país como pensador de direita. Por ocasião da Segunda Grande Guerra, artigos ideológicos, que apareciam em revistas de cunho fascista, pretenderam apropriar-se de seu pensamento. Mas, quando chegava ao auge a sua difamação entre nós, intelectuais de peso tomaram a sua defesa, conclamando a que se levasse em conta “sua técnica de pensamento” e se recuperasse o filósofo Nietzsche.
Por fim, na efervescência de Maio de 68, quando a extrema-esquerda francesa fez dele o suporte de suas teorias, aqui passou a ser visto como iconoclasta. Na França, Foucault, Deleuze, Derrida e outros questionavam conceitos desde sempre presentes na investigação filosófica, punham em xeque noções consagradas pela tradição, subvertiam formas habituais de pensar e, ao lado de Marx e Freud, incluíam Nietzsche entre os “filósofos da suspeita”; em nosso país, quase como uma caixa de ressonância, privilegiava-se a vertente corrosiva do seu pensamento.
Então, Nietzsche passou a nomear um estilo a serviço de um certo sentimento de existência, marcado pela ousadia e pela irreverência. Invocou-se o seu nome, para pôr em causa as instituições e os valores estabelecidos, a maneira bem-comportada de pensar e de agir de nossa sociedade. A ele se recorreu para afirmar a necessidade de transbordamento e excesso, o desejo de êxtase e vertigem. Enfim, dele se lançou mão para proclamar radicalismos políticos e pulsões eróticas; dele se fez o patrono de uma “comunidade de rebeldes imaginários”. E assim se formou e cristalizou a imagem de Nietzsche libertário, conhecido sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir ídolos. Não havia nada melhor do que essa imagem de Nietzsche para contrapor-se à ditadura militar, que levava à recrudescência da violência no Brasil.
Ao lado desse Nietzsche libertário, que continua presente entre nós, prepara-se um outro nos anos de 1990. O país abre-se ao neoliberalismo e a tudo o que ele acarreta, a começar por converter cidadãos em consumidores. O ano 2.000 marca um ponto de inflexão no trato com o pensamento nietzschiano. No Brasil, Nietzsche torna-se “popular”; é explorado pela mídia, utilizado pelos meios de comunicação, apropriado pelo mercado editorial. Publicam-se livros introdutórios a respeito de sua filosofia, textos de divulgação de suas ideias, artigos em jornais e revistas que mencionam a qualquer propósito palavras suas. No mais das vezes, operam-se recortes arbitrários em seus escritos visando a satisfazer interesses imediatos. Dele se fala como se fala de um autor na moda: sem ter conhecimento da densidade de sua reflexão filosófica. Tomado como objeto de consumo, Nietzsche é domesticado. A partir do ano 2.000, impõe-se cada vez mais a imagem de um Nietzsche que nos ensinaria como ser bem-sucedido na profissão, preservar a saúde, encontrar a felicidade, em suma, como viver bem. Ele deveria sobretudo nos ensinar a evitar o estresse quando questionamos pré-juízos, crenças e convicções.
Hoje, presenciamos a presença de vários Nietzsche. De um lado, há aquele que, domesticado, é completamente desprovido de caráter crítico. De outro lado, há o que se toma como um objeto de estudo como qualquer outro, ainda que continue a atrair as massas. É sobretudo como historiadores da filosofia que se comportam os estudiosos nietzschianos. Ricas e múltiplas, as pesquisas sobre o pensamento de Nietzsche continuam a prosperar entre nós.
Entre as pesquisas em curso mais relevantes, não se pode deixar de mencionar as que revelam uma outra face do filósofo. Voltando-se com atenção e rigor para os seus textos, elas exploram aspectos totalmente inesperados de seu pensamento: os ataques contra o ideal democrático, o combate à ideia de igualdade, a crítica da abolição da escravidão, a intolerância em face dos enfermos e fracassados, a condenação do movimento de emancipação feminina. É um Nietzsche conservador que surge na cena filosófica brasileira. No momento, em que a extrema direita chega ao poder, essa imagem de Nietzsche denuncia a situação mesma que estamos vivendo: os cinco pontos acima estão em vigor entre nós.
A perseguição política, que leva a expulsar do país, encarcerar e até assassinar políticos de oposição, ao lado da censura aos blogueiros e da limpeza ideológica nas universidades, bem mostram que vivemos num estado de exceção e não numa democracia. A promoção dos interesses de grupos ligados ao capitalismo financeiro e ao agronegócio leva boa parte da população a viver abaixo da linha da pobreza, aprofundando as desigualdades sociais. A reforma das leis trabalhistas, contrariando a Constituição brasileira, que reduzem ou mesmo suprimem os direitos dos trabalhadores, e o abandono deliberado da luta contra o trabalho escravo ainda presente no país, condenam milhares a uma espécie de escravidão. O extermínio dos índios, o ódio contra os negros e o desprezo pelos imigrantes bolivianos e haitianos, além dos insultos xenófobos e racistas que invadem a vida cotidiana, manifestam intenções de caráter eugênico. A condenação do aborto, o desprezo pela igualdade de gênero nos salários e na política, assim como as atitudes homofóbicas, são indícios das ideias retrógradas sobre o lugar da mulher na sociedade.
Mas Nietzsche também revela entre nós o seu potencial de resistência. Em vez de apropriar-se de certos aspectos de seu pensamento que seriam suscetíveis de confirmar os seus discursos, os ideólogos do poder, expressando a sua ignorância, não podem suportá-lo. Se os movimentos religiosos conservadores, apoiados por políticos evangélicos, não aceitam o anunciador da morte de Deus, os militares no poder rejeitam o discípulo de Dioniso, que contribuiu para a contestação da ditadura nos anos de 1970. E assim volta, em toda a força, o Nietzsche libertário.
*Scarlett Marton é professora titular aposentada do Departamento de filosofia da USP. Autora, entre outros livros, de Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche (Barcarolla)