Fim da arte?

Eduardo Berliner, Serrote, 2009.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FLÁVIO R. KOTHE*

Considerações sobre a natureza e a finalidade da arte

Nunca a arte se desenvolveu tanto quanto desde que Hegel previu a sua morte. Ele precisava dela para introduzir a necessidade da filosofia da arte como a coruja de Minerva que começa a voar no anoitecer dos acontecimentos. Em nome do que se poderia supor uma agonia da arte?

Talvez de uma visão idealizada da cultura helênica, em que se supunha que todo o povo participava dos eventos artísticos. Sabe-se hoje, no entanto, que as encenações teatrais excluíam escravos, mulheres, jovens, estrangeiros: atingiam talvez 5% da população. Nunca houve um apogeu da arte. Um desfile de carnaval no Rio arrasta mais gente do que a arte grega: quer ser vistoso e bonito, mas não tem densidade artística.

Heidegger endossou a tese de Hegel, sem comprovar. Os dois queriam sugar verdades que validassem o filosofar, como se a arte existisse em função de alguma corrente filosófica. Quando Kant definiu o belo como não tendo finalidade, deixou de considerar as utilizações do estético na sociedade. Era conveniente e conivente. Priorizou, em sua tabela de categorias, a finalidade (para dizer que não havia) e deixou de lado a origem, que ficou escondida na figura do gênio, como se ele vivesse sozinho e como se as relações de poder que propiciam ou não o surgimento e a circulação de determinada obra não tivessem relevância. Embora Kant tenha sido revolucionário ao se contrapor à utilização da arte para a propaganda religiosa, política ou moralista, não examinou como a arte funciona na realidade e como a concepção do que seja arte tem marcas ideológicas profundas.

Quando o idealismo alemão, com Solger e Hegel, propôs que a obra de arte deveria transmitir uma ideia, estava inventando uma finalidade para a arte: transpor ideias. O belo não tem “uma” finalidade porque tem várias. A arquitetura sempre é feita de acordo com um programa de necessidades, ou seja, ela é sempre finalística. Nesse sentido, ela ficaria fora das artes, mas nos sistemas das artes ela sempre constou. Como arte ela se distingue quando tem algo a mais, uma ideia, uma simbologia, que a faz ser mais que mero espaço construído para atender necessidades. Exatamente aí está, porém, um problema escondido.

As obras mais imponentes costumam ser templos, palácios, fortalezas e – nos tempos modernos – sedes de grandes empresas, ou seja, aparelhos do poder. Exatamente por serem ideológicas é que são apresentados como “ideias”, como “obras de arte”, como “verdades”. Por outro lado, não é preciso ser católico para admirar a catedral de Florença ou a Sagrada Família em Barcelona ou ser ortodoxo russo para admirar a bela igreja da Praça Vermelha. Pelo contrário, quando se é crente admira-se o objeto de culto, não a obra de arte. É preciso perder a fé para ganhar a arte, admirar a obra pelo que ela é e não pelo falso que ela pretende ser.

Traduz-se para o português um conceito kantiano do belo como “finalidade sem fim”, o que induz a pensar que haveria infinitas finalidades possíveis à arte, mas a expressão “Zweckmässigkeit ohne Zweck” significa antes “adequação a objetivo sem ter objetivo”. Ora, como algo é estruturado como se tivesse funções a cumprir para acabar não tendo nenhuma? A arquitetura atende a um programa de necessidades e só a partir disso ela pode se delinear como bela. O que atende necessidades perdura enquanto não houver um meio mais adequado e econômico para atendê-las. Falar de finalidades acaba dessacralizando a arte. Enquanto a arte tiver finalidades, não vai acabar.

Ela está apenas começando a se emancipar da servidão a castas de aristocratas e sacerdotes, burgueses e oligarquias mais ou menos bem assessorados no fomento às artes. Só quando não estiverem mais a serviço da aura que faça parecer transcendental o poder que é apenas local é que ela vai se libertar e conseguir descobrir o que ela pode ser. A obra de arte foi uma escrava útil durante milênios. Só com o capitalismo ela conseguiu ser uma trabalhadora assalariada, o que ainda não é sua plena emancipação.

O que marca a compreensão da arte na filosofia é a projeção de uma teologia do que seria o homem. Toda definição tem sido um fracasso, desde supor que ele teria uma dimensão angelical, a alma, até que ele seja racional ou bom por natureza. Supõe-se que ele teria corpo e alma, daí se vê a arte como sendo coisa e ideia, coisa e alétheia, significante e significado, suporte material e objeto estético. Daí vem a filosofia e quer resgatar a parte mais nobre para o seu próprio céu. A arte deixa de valer por si, passando a somente ter validade na medida em que transmitir uma ideia e for salva pela filosofia. Daí a arte passa a valer para alimentar a filosofia com ideias e ela poderia ser substituída pela Filosofia da Arte, que é o que Hegel propôs e Heidegger endossou. Ora, a arte não é feita com a finalidade de alimentar o vampiro da filosofia.

A visão catastrófica da arte, proposta por Hegel e desmentida pela história posterior, foi propiciada pela visão kantiana de que a arte seria estruturada como se tivesse uma finalidade sem ter. É muito estranho estruturar algo como se tivesse finalidades, para acabar abdicando delas. É um divertido paradoxo. Não tendo a arte qualquer finalidade, precisaria ser salva pelo cavaleiro da filosofia, ao preço, porém, da condenação à morte de sua diferença.

Hegel e Heidegger tinham uma visão apolínea e idealizada da Grécia antiga. A arte não era lá algo de pleno domínio público. Excluídas as mulheres, as crianças, os jovens, os escravos, os periecos e estrangeiros, mal sobravam menos de 5% da população para assistir aos espetáculos teatrais. O próprio teatro grego se prejudicou com as crendices religiosas que tinha de propagar. Quando Eurípides ousou alguns temas, como a manipulação religiosa pela casta sacerdotal, a igualdade do escravo ou a liberdade da mulher, foi obrigado a fugir de Atenas para não ser morto.

O que Kant queria dizer era talvez outra coisa, por outro motivo. Como iluminista, queria livrar a arte da servidão de incensar crendices, prelados e aristocratas, mas também não a submeter aos interesses do mercado. Queria a arte como exercício da liberdade. Para isso, o artista não poderia depender das ordens de um patrão, seja ele um órgão do governo, uma autoridade eclesial ou o gosto do comprador. Difícil fugir a tantos senhores.

A arte egípcia durante três milênios repetiu sempre os mesmos padrões (desenho de perfil, olhos delineados, o tamanho da figura conforme sua relevância política ou religiosa), que permitem identificá-la, ou seja, o artista era obrigado a cumprir normas estéticas estabelecidas pelo poder eclesial. Ele não tinha liberdade, não podia inventar. Ele nem queria, pois achava certo obedecer às regras vigentes. Por exemplo, o faraó tinha de ser a figura maior (por pior que fosse sua tirania) e sempre de perfil (a exceção foi sob o faraó que aderiu ao monoteísmo, que chegou a ser apresentado em cenas familiares). Durante mais de dois mil anos seguiram-se regras assim.

Iluminista, Kant podia querer livrar o artista da servidão de exaltar a mitologia ou o mercado; como luterano, não tinha objeções a Bach nos cultos como também não à exaltação do seu déspota dileto, Frederico, dito O Grande. Era a favor do governo forte, mas constitucional; não acreditava na democracia, que seria sempre a tirania de uma parte contra o resto (como se monarquia, aristocracia ou teocracia não fizessem isso também). Nos rótulos correntes, Descartes e Kant são estampados como iluministas, embora um fosse católico e o outro luterano.

O mercado de arte, que parece ser um juiz neutro para determinar o valor das obras, mensurando-o não pelo trabalho social médio investido na produção (já que o dom artístico não está na média) e sim pelo que se está disposto a pagar por elas, flutua muito de leilão para leilão, de época para época. O que hoje é moda, pode ser menosprezado amanhã. Ele flutua também dentro de si mesmo, na mesma época e no mesmo país. Podem-se adquirir obras equivalentes por preços muito diferentes. A mesma obra que um dia foi comprada por 5 X talvez seja revendida depois de uns anos por apenas 1 X ou 50 X.

A obra continua, porém, como que idêntica a si mesma: mudando, porém, o suporte material ou/e o perfil do receptor, altera-se o objeto estético que se constitui. A obra se torna outra, muda até de categoria: pode passar de religiosa a artística ou vice-versa, de respeitável a problemática. O mercado é manipulado pela propaganda, por flutuações de gosto, por vetores não estéticos. O valor artístico deveria, no entanto, independer disso. Há uma estrutura “metafísica” subjacente, que determina uma aparência de continuidade.

A arte sacra católica perdurou por séculos, foi posta em locais de preservação e permaneceu como que intocada pelo mercado. Quando este, no entanto, se impôs, a dessacralização das obras retirou-lhes muito do preço e do apreço. Enquanto oligarquias conseguiram ser aceitas porque se acreditava que seus privilégios decorriam de origem ou vontade divina, a arte que as auratizava conseguiu ser aceita, posta em museus, precificada em galerias. Quando outras classes puderam comprar obras, mudou-se o gosto, houve uma enxurrada de -ismos.

Os pobres, que mal ganham, se ganham, o suficiente para comer, precisam atender às necessidades primárias, não podem aplicar recursos em arte. Consideram até virtude não ter arte e não buscam a arte que poderiam obter de modo gratuito. Não há garantia de que a convivência com arte torne logo as pessoas melhores.

*Flávio R. Kothe é professor titular de estética na Universidade de Brasília. Autor, entre outros livros, de Ensaios de semiótica da cultura (UnB).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Osvaldo Coggiola Ronald León Núñez Eleutério F. S. Prado Thomas Piketty Antônio Sales Rios Neto Flávio Aguiar José Machado Moita Neto Paulo Sérgio Pinheiro Airton Paschoa Yuri Martins-Fontes Liszt Vieira Marcelo Guimarães Lima Tadeu Valadares Marilia Pacheco Fiorillo Daniel Costa Milton Pinheiro Priscila Figueiredo Gabriel Cohn Berenice Bento Leonardo Sacramento Érico Andrade Andrés del Río Samuel Kilsztajn Luiz Eduardo Soares Matheus Silveira de Souza Eugênio Trivinho Carlos Tautz Maria Rita Kehl Manchetômetro Slavoj Žižek Vinício Carrilho Martinez Valerio Arcary Sergio Amadeu da Silveira Paulo Martins João Carlos Salles Gerson Almeida Luís Fernando Vitagliano Eduardo Borges Jean Marc Von Der Weid Benicio Viero Schmidt Alexandre Aragão de Albuquerque Ricardo Musse André Singer Eugênio Bucci Chico Alencar Vanderlei Tenório Denilson Cordeiro Alexandre de Freitas Barbosa Marcos Aurélio da Silva Renato Dagnino Luiz Renato Martins Boaventura de Sousa Santos Eliziário Andrade João Paulo Ayub Fonseca Flávio R. Kothe Leonardo Boff Plínio de Arruda Sampaio Jr. Leda Maria Paulani Ronald Rocha José Costa Júnior Alysson Leandro Mascaro Kátia Gerab Baggio Marcelo Módolo Eleonora Albano Michel Goulart da Silva Francisco de Oliveira Barros Júnior Gilberto Lopes Vladimir Safatle Luciano Nascimento José Luís Fiori Celso Favaretto Everaldo de Oliveira Andrade Antonino Infranca Lorenzo Vitral Ari Marcelo Solon Paulo Nogueira Batista Jr Daniel Afonso da Silva Valerio Arcary Annateresa Fabris Celso Frederico Armando Boito Luiz Werneck Vianna Bruno Machado João Feres Júnior Francisco Pereira de Farias Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ladislau Dowbor Fábio Konder Comparato Manuel Domingos Neto Julian Rodrigues José Raimundo Trindade Rubens Pinto Lyra Dennis Oliveira Tales Ab'Sáber Fernão Pessoa Ramos Tarso Genro Mário Maestri Luiz Marques Paulo Capel Narvai Elias Jabbour Remy José Fontana Mariarosaria Fabris Luiz Carlos Bresser-Pereira Ricardo Abramovay Juarez Guimarães José Dirceu Luis Felipe Miguel Atilio A. Boron Walnice Nogueira Galvão Chico Whitaker Jorge Branco Sandra Bitencourt Francisco Fernandes Ladeira Luiz Roberto Alves Gilberto Maringoni Jorge Luiz Souto Maior Marcos Silva Caio Bugiato Carla Teixeira Rafael R. Ioris Afrânio Catani Bento Prado Jr. Anselm Jappe Heraldo Campos Otaviano Helene André Márcio Neves Soares Marilena Chauí Daniel Brazil Bruno Fabricio Alcebino da Silva Lucas Fiaschetti Estevez João Sette Whitaker Ferreira Marcus Ianoni Antonio Martins Henri Acselrad Marjorie C. Marona José Micaelson Lacerda Morais Ricardo Antunes Paulo Fernandes Silveira João Carlos Loebens Ricardo Fabbrini Luiz Bernardo Pericás Salem Nasser Michael Löwy Bernardo Ricupero Ronaldo Tadeu de Souza Jean Pierre Chauvin Lincoln Secco Igor Felippe Santos Henry Burnett Alexandre de Lima Castro Tranjan Leonardo Avritzer Claudio Katz Michael Roberts João Adolfo Hansen Fernando Nogueira da Costa Rodrigo de Faria Andrew Korybko João Lanari Bo José Geraldo Couto Dênis de Moraes

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada