Por MARC FERRO*
Aumenta a distância entre as sociedades mais ricas e as mais pobres; no seio de cada uma, aprofunda-se o fosso entre os mais privilegiados e os desprovidos.
No final de milênio, pairava sobre nós a ideia de que estamos entrando em uma nova era histórica, a era da globalização. Isso não seria, no entanto, uma simples ilusão de ótica? Afinal, o movimento de unificação do mundo há muito tempo já existia, a despeito de sua ampliação e aceleração recentes. O caráter dramático das duas guerras mundiais – dramático ao ponto destes conflitos serem considerados como marcadores do começo e do fim de uma época – não teria sido um mero incidente no decorrer da História, apenas alterando discretamente o curso de um processo plurissecular?
Vejamos um exemplo. Atribui-se à globalização a emergência de novos mestres anônimos e incontroláveis que aumentam ou diminuem arbitrariamente os preços, que especulam sobre os capitais, desencadeiam crises econômicas, criam e destroem modas e opiniões. Ora, esse diagnóstico pode ser igualmente aplicado ao pré-guerra – uma época em que profissões nasciam e morriam antes de se completar o ciclo de uma geração, enquanto as últimas invenções atropelavam umas às outras.
A colonização, à sua maneira, já tinha representado uma primeira forma de uniformização do mundo, seja ela em nome de Deus, da civilização ou da busca por ouro. Pouco importa se o mestre de ontem foi um banqueiro ou alguma figura importante, se ele hoje mora na City, em Wall Street ou em Bruxelas. E para as vítimas, os efeitos são praticamente os mesmos. A novidade é que a globalização atinge os cantos mais distantes do planeta, ignorando tanto a independência dos povos quanto a diversidade de regimes políticos.
Existe, de todo modo, uma diferença importante entre o presente e o passado. No começo do século XX, para as vítimas das transformações da sociedade – sejam elas de perseguições políticas ou religiosas – havia uma saída: alguns partiam para as Américas, outros organizavam uma revolução ou lutavam por sua independência. Agora, quando a fratura social do Ocidente se vê ainda mais profunda, a emigração europeia não oferece mais as possibilidades de outrora, a revolução deixou de ser atraente: do outro lado do oceano, a manhã seguinte das independências veio carregada de desilusões. A queda do sistema soviético descreditou as ideias sobre as quais ele se dizia estar fundado – apesar delas terem sido, na verdade, por ele pervertidas.
Fora do Ocidente, os dramas enfrentados por populações inteiras – na África Central, em Bangladesh etc. – testemunham que a melhora do padrão de vida dos mais desafortunados, ainda que possível, continua sendo uma ilusão. De um lado, aumenta a distância entre as sociedades mais ricas e as mais pobres; de outro, no seio de cada uma, aprofunda-se o fosso entre o nível de vida dos mais privilegiados e aquele dos desprovidos.
Tais reviravoltas tiveram efeitos que, no amanhecer do pós-guerra, ninguém poderia imaginar. Na Rússia, por exemplo, o fim do regime soviético, tido como o renascimento de sua liberdade, traduziu-se em uma série de catástrofes. A “transição” foi marcada pelo desemprego em massa e por uma inflação galopante, que reduziu a pó as economias de milhões de cidadãos, empurrando-lhes para a miséria e diminuindo sua expectativa de vida. Este trauma, sem precedentes históricos, atingiu principalmente pessoas entre 40 e 50 anos: elas assistiram à destruição de seu padrão de vida, à desaparição da relação que tinham com as organizações que lhes ofereciam estabilidade – fábricas, universidades, serviços públicos etc.
As reviravoltas na sociedade ocidental foram menos dramáticas. Mas os efeitos da crise e da globalização acelerada trouxeram, igualmente, uma regressão. Desempregadas, as vítimas das reestruturações econômicas também perderam sua segurança. Nos tempos dos “trinta anos gloriosos” ninguém imaginava que o elevador social que os carregava subitamente travaria. Aqui, como em qualquer parte, tais mudanças catastróficas tiveram efeitos na saúde das pessoas: o estresse, que anteriormente afetava apenas os indivíduos expostos a perigos ou em cargos de responsabilidade, atinge enfim vastas camadas sociais. Na Europa ocidental, doenças associadas à crise e à desorganização do trabalho assumem o lugar daquelas que, até então, estavam associadas à organização do trabalho.
Por dois séculos, a principal reivindicação das populações ocidentais foi o direito ao trabalho, associado a uma renda mínima em caso de adoecimento. Graças ao Estado de bem-estar e à segurança social, esse direito era garantido. No mundo do trabalho, assistimos, desde então, a um lento deslocamento dos focos de conflito. Foi a Alemanha quem abriu o caminho: há meio século, observa-se uma redução regular do número de dias de greve e um aumento, também regular, no número de faltas por doença. Mais claramente do que em outras partes da Europa, observa-se a existência de uma associação entre greve e doença, de tal modo que o patronato afirma ser o caso de reduzir o salário de base daqueles cujo número de faltas ultrapasse um determinado piso.
Pode-se considerar que a doença se tornou uma nova forma de recusa social, uma deserção individual em resposta a um mal-estar geral. Dentre os países da OCDE, a Suécia assume o primeiro lugar em absentismo, com apenas 250 a 280 dias de trabalho efetivo por ano; o número de faltas por doença passou de 13 para 25 entre 1988 e 1997, com o sistema sueco “transformando a doença em um amortecedor social”.
Ademais, nos últimos anos, o direito a um tratamento perdeu seu lugar para o direito a ser curado. A saúde perfeita transforma-se, assim, em um projeto de vida – senão em uma ideologia substitutiva. Tais doentes de terceiro tipo, arautos de um novo paradigma sanitário, transformam-se em pacientes-parceiros de seus médicos, mantendo seus advogados por perto – especialmente nos Estados Unidos. Adoecer não é mais um acidente, mas uma forma de vida que garante uma identidade àqueles que, por vezes, não possuem outra. Dá um sentido às suas vidas.
O fim do futuro brilhante
Assim, por meio de toda sorte de efeitos perversos, e, também, graças aos progressos do prolongamento da vida, a crise das sociedades fabrica doentes, e tais doentes arruínam a sociedade. Um ciclo infernal: os problemas da saúde e da segurança passaram para o centro dos debates políticos, nos Estados Unidos como na França, justamente no momento de maior longevidade, quando nunca houve tantos médicos e doentes.
Outro traço que diferencia nosso presente é o questionamento do dogma do progresso, associado ao sucesso contínuo da ciência. No começo do século XX, e com o desenvolvimento das ciências sociais e das teorias políticas – o socialismo “científico” de Marx, o anarquismo “científico” de Kropotkin etc. –, pensava-se que o progresso no modo de governo seguiria necessariamente aquele das outras atividades científicas. De fato, em resposta aos crimes cometidos em nome de ideologias perversas, desapareceu a crença em um futuro brilhante, mas, ao menos, restava uma esperança no progresso material e técnico. E, de fato, após o fim das grandes guerras essa crença foi fortalecida pela sociedade de consumo, pela erradicação de uma primeira epidemia, a de varíola – que será seguida por outras –, pela invenção da pílula, pelas aventuras do satélite Sputnik e do primeiro homem na Lua etc..
Agora, por todos os lados, vemos sinais de uma catástrofe que se aproxima. Na África, para começar, o imperativo do desenvolvimento econômico a todo custo provoca a aparição ou a reaparição de epidemias “desconhecidas”. Depois, em conformidade com as advertências dos ecologistas, Chernobyl demonstra a realidade do perigo nuclear. Enfim, surgem a Aids e as consequências da industrialização dos recursos médicos (com o escândalo do sangue contaminado) etc. Confirma-se, assim, que os efeitos da ciência devem ser controlados – uma convicção que a “vaca louca” e os primeiros clones reforçam – mas, também, confirma-se que a ciência colide com barreiras intransponíveis.
Agora sabemos que não é apenas o hábito do consumo excessivo de antibióticos que reduz a sua eficácia, mas a resistência das bactérias que reagem e se regeneram sem que a ciência possa reagir – fato que contraria diversas crenças correntes. O mesmo vale para a imprevisibilidade do ciclo da febre amarela, cuja periodicidade ainda não dominamos; tampouco dominamos os fenômenos cósmicos que produzem as variações do El Niño.
Encontramos limites e questões similares no domínio da política – exceto nos Estados Unidos, onde, em qualquer circunstância, os americanos acreditam que seu país representa um modelo para todas as sociedades. Na Europa, e particularmente na França, porém, somos atingidos por uma contradição. Não paramos de cobrar do Estado enquanto estigmatizamos seus agentes. Constatamos um questionamento dos dispositivos políticos adotados, aos quais testemunhamos um aumento na abstenção. Este fenômeno (que atinge seus ápices nos Estados Unidos) está associado, aqui, ao surgimento de uma classe política cuja regionalização, é verdade, aumentou o escopo, mas que se perpetua e se reforça sob a forma de dinastias familiares hereditárias. Esta dissociação entre os cidadãos e os eleitos confirma que tais regimes são, de fato, representativos e parlamentares, mas não são democráticos.
Sem recursos políticos
Este modus operandi do sistema político se traduz no discurso que os eleitos apresentam a seus eleitores: “Nós respeitamos os seus direitos, definidos por nós, mas nos deixem governar sozinhos e tranquilos”. O essencial se reduz, desta maneira, às eleições – uma situação, de fato, mais democrática que os regimes, comunistas ou não, que nem sequer respeitam esses direitos e cuja vanguarda, em toda sua sabedoria, rejeitou qualquer forma de democracia representativa. De todo modo, essa dissociação ainda é vivida como uma alienação.
Então, em um tempo no qual o rádio, a impressa escrita e a televisão informam os cidadãos e democratizam o saber, não apenas os dirigentes dos partidos não parecem ser mais competentes que boa parte dos cidadãos como os próprios militantes são transformados em simples apoiadores à americana – a menos que queiram adotar a carreira política, da mesma maneira que os burgueses de outrora queriam entrar na nobreza. Os cidadãos perderam, com isso, não só suas referências ideológicas, mas acabarem sentindo-se sem recursos.
Esta frustração tem por contrapartida um ativismo participacionista que se traduz, especialmente na França, na vitalidade da vida associativa. Ele leva à aparição de contrapoderes, verdadeiramente democráticos, com capacidades reduzidas, de fato, mas que testemunham tanto o abandono, por parte dos cidadãos, das formas tradicionais da vida política representativa quanto a vontade de participar nas atividades do país.
O que surpreende, particularmente na França, é que aqueles que discursam em defesa da modernização da política pertencem, eles mesmos, ao establishment e pensam apenas nos termos das formas tradicionais do sistema parlamentar. Consultados, alguns anos atrás, sobre uma reforma constitucional, nossos grandes juristas não encontraram, sob suas togas, soluções que não fossem a redução do mandato presidencial, a harmonização dos modos de eleição e a limitação do acúmulo de mandatos. Isso não seria esquecer que tais dispositivos políticos surgiram no final do século XVII, quando as revoluções americana e francesa construíam uma nova ordem política e um projeto apoiado sobre uma análise do funcionamento das sociedades daquela época?
Os princípios sobre os quais eles repousam – direitos humanos, separação dos poderes etc. – continuam, certamente, pertinentes. No entanto, novas formas nasceram desde a constituição deste modelo democrático e republicano, que se trate da organização capitalista, das capacidades da ciência ou do desenvolvimento das mídias. Ora, nenhum projeto constitucional as leva consideração. É a ordem econômica e gestionária que assume, pouco a pouco, a figura da lei, impondo seus critérios e julgamentos. O que resta da capacidade da democracia política de fazer ouvir a sua vontade?
*Marc Ferro (1924-2021) foi professor de história na École polytechnique (Paris) e co-diretor da revista Les Annales (Économies, Sociétés, Civilisations). Autor, entre outros livros, de A revolução russa de 1917 (Perspectiva).
Tradução: Daniel Pavan.
Publicado originalmente na revista Le Monde diplomatique em setembro de 1999.