O jardim selvagem de Lygia Fagundes Telles

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Por LEANDRO ANTOGNOLI CALEFFI*

As narrativas da escritora, em maior ou menor grau e por procedimentos estéticos vários, subvertem o senso comum, ao trazer à tona sua insólita contraface

1.

Lygia Fagundes Telles figura entre as autoras mais reverenciadas do país, dividindo o posto com nomes não menos consagrados, como os de Clarice Lispector, Rachel de Queiroz e Cecília Meireles. Celebrada nacional e internacionalmente, a chamada “dama da literatura brasileira” coleciona diversas condecorações, dentre as quais se destacam o Prêmio Jabuti, atribuído a ela em 1966, por Histórias escolhidas (1961), e em 1974 e 2001, por As meninas (1973) e Invenção e memória (2000), respectivamente; o Prêmio Machado de Assis em 1998; o Prêmio Camões em 2005, além da indicação ao Prêmio Nobel de Literatura em 2016.

Embora tais honrarias atestem o talento inegável da escritora no tocante ao ponto de vista estético, essas distinções pouco ou nada dizem ao leitor mediano, cujo repertório cultural tende a não ser balizado pelos reconhecimentos formais concedidos a sujeitos e a obras relevantes no campo da literatura. Em vista disso, uma questão se impõe: a que exatamente se deve a grande comoção produzida pelas narrativas lygianas nos mais diversos públicos? Ou ainda: em que medida os contos da ficcionista consistem em uma expressão singular no panorama da tradição literária brasileira?

Longe de esgotar tais indagações, cuja complexidade excede os limites deste artigo, é possível afirmar que uma das particularidades do estilo da escritora corresponde à maneira peculiar com que ela trabalhou o cotidiano ou aquilo que se convencionou chamar de “realidade”. Como soube observar Antonio Candido, Lygia Fagundes Telles “teve o alto mérito de obter, no romance e no conto, a limpidez adequada a uma visão que penetra e revela, sem recurso a qualquer truque ou traço carregado, na linguagem ou na caracterização” (CANDIDO, 2011, p. 249). Grosso modo, pode-se dizer que é por meio de uma escrita relativamente objetiva e realista que a autora desentranha o que há de mais absurdo e inusitado na experiência humana.

Dessa profícua contraposição entre forma e conteúdo desponta aquilo que pode ser compreendido como um dos maiores êxitos do fazer artístico de Telles, qual seja, o fato de suas narrativas serem acessíveis a um conjunto bastante amplo de indivíduos, ao mesmo tempo em que essa simplicidade não se alinha a uma concepção simplista da existência.

Em outras palavras, ainda que do ponto de vista linguístico suas obras não causem grandes adversidades em quem as lê, o receptor é a todo momento impactado pelos temas algo desconcertantes que elas colocam em cena, levando-o à problematização constante do senso comum a partir da reavaliação de valores socialmente consolidados.

2.

No âmbito específico do conto, gênero ao qual a autora mais se dedicou e pelo qual obteve maior destaque, é comum que as tramas partam de um dado aparentemente banal da vida diária e cheguem a um desfecho imprevisível ou até mesmo perturbador, o que aproxima a ficcionista de Machado de Assis, Edgar Allan Poe e Julio Cortázar, cujas correspondências foram reconhecidas e estudadas por parte considerável da crítica especializada.

A esse respeito, lembre-se do que postula Walnice Nogueira Galvão: “Lygia pertence a uma linhagem em nossa literatura que vem de Machado de Assis — crítica, velada, expressa no bom português de quem sabe escrever e toma a literatura a sério. Nunca facilitou e nunca se mostrou sujeita a modas ou tendências” (GALVÃO, 2018, p. 742).

Quanto ao fato de o comezinho, em Lygia Fagundes Telles, ganhar contornos imprevistos, Antonio Dimas, por sua vez, alega: “a grande dama não conta: ela murmura, fala baixinho. Aproxima-se do leitor como seus gatos, de que ela gosta tanto. Parece até que são apenas estórias em torno daquelas mesas de barzinhos refinados, em fim de tarde de verão. Não as mesinhas da calçada, propícias ao chope, à algazarra, à voz elevada. Mas aquelas protegidas pelo ar-condicionado e pela luz indireta, nem um pouco solar”.

Adiante, porém, o pesquisador adverte: “Não se engane com essa sinuosidade felina, felpuda. Não vá na conversa, não relaxe. Fique esperto. Porque, quando você menos espera, as unhas retráteis aparecem e, logo depois delas, o risco na carne, o filetinho de sangue escorrendo. Nada muito profundo, mas o suficiente para incomodar, na hora e por tempo extenso, cravadas na memória. O suficiente para se lembrar de que, nas próximas vezes, você não deve se aproximar tão desguarnecido e confiante, porque o bote pode vir, quando menos se espera, não se sabe de onde” (DIMAS, 2009, p. 182).

3.

No conto “O noivo”, a título de exemplo, o que é narrado não são os motivos pelos quais o futuro esposo decide se casar nem as circunstâncias objetivas do matrimônio; antes, o que se observa é o total desconhecimento por parte da personagem sobre as razões que a conduziram a tal empreitada.

Ao final do enredo, marcado por acentuado teor introspectivo e sucessivas imagens associadas à nebulosidade, a par com a desordem instalada na mente do protagonista, apenas Miguel sabe quem será sua cônjuge; ao leitor restam apenas um estado de incerteza e a incômoda constatação de que nem tudo carece de uma explicação lógica.

Em “Venha ver o pôr do sol”, a acepção algo romântica aludida pelo título da narrativa cede espaço à crueldade de uma vingança planejada de maneira minuciosa por um ex-namorado enciumado. Como se sabe, esse aprisiona a antiga companheira no subsolo de um cemitério abandonado, a fim de que ela pague o preço por tê-lo trocado por um homem mais bem-sucedido.

No texto, cuja composição chega a lembrar um jogo de gato e rato e a evocar o conto “O barril de Amontillado”, de Edgar Allan Poe, Raquel só consegue ver efetivamente o anoitecer através das frestas da porta do local onde foi trancada por aquele em quem outrora confiou, o que conduz o leitor à inquietante constatação de que jamais se conhece alguém em sua totalidade.

Em “As formigas”, duas jovens se veem diante de uma caixa de ossos de um anão em um pensionato, os quais são misteriosamente reconstruídos ao cair da noite, fazendo com que o leitor não saiba ao certo os limites entre o real e o imaginado. Como é de praxe em Lygia Fagundes Telles, o conto termina sem uma resposta definitiva, provocando um significativo desconforto e estranhamento em quem o lê. Não seria exagero supor que o mistério que paira sobre os insetos e a montagem do esqueleto funciona como uma espécie de metáfora de algo maior, a saber, a fragilidade da razão em face do desconhecido e do incontrolável.

Em “Antes do baile verde”, o clima da euforia carnavalesca é contraposto a um dilema moral, na medida em que a personagem tem de escolher entre seguir os anseios individuais e ir à festa de carnaval ou ceder às convenções sociais e ficar em casa com o pai à beira da morte. Ao fim, Tatisa opta por abandonar o progenitor, atitude que obriga o leitor a confrontar a complexidade dos vínculos de parentesco e encarar o egoísmo como parte integrante da condição humana.

Vale dizer que o fato de a protagonista deixar o pai desamparado acaba também por revelar a vulnerabilidade dos laços familiares, os quais podem ser unicamente moldados por necessidades e interesses pessoais e não por uma entrega genuína efetiva. Com efeito, esse conflito mobiliza o receptor a ponderar sobre suas próprias relações e decisões no que tange ao outro.

Em “O menino”, o núcleo familiar estruturado é substituído por uma interação edipiana entre mãe e filho, a qual é abalada pela infidelidade conjugal desta, testemunhada por aquele em uma sessão de cinema, na qual um homem desconhecido acaricia de forma suspeita a esposa do seu pai. A aparente traição da mãe leva o filho a reconsiderar o papel dela em sua vida e a questionar o amor materno, colocando em xeque a confiança que ele tinha nessa figura e no conceito de família como alicerce social.

Trata-se, em outros termos, da transição, por parte da criança, de um mundo de certezas para o seu exato oposto, o que acaba por instigar o leitor a refletir sobre os aspectos ocultos e desoladores do contexto familiar, uma vez que sua dinâmica se mostra mais complexa do que a visão infantil ou olhares voltados apenas à superfície – é capaz de apreender.

Em “A caçada”, um homem é atraído de modo obsessivo por uma tapeçaria disposta em uma loja de antiguidades, na qual são representados dois caçadores: um, no primeiro plano, aponta com um arco para uma mata espessa; o outro, em uma disposição espacial mais profunda da paisagem, oculta-se entre as árvores.

Tal como em um jogo de espelhos, a sobreposição de camadas retratada no painel é incorporada pela fatura do texto, cujo entrelaçamento de focos narrativos põe à mostra vários níveis de apreensão da realidade. De modo análogo ao que ocorre no conto “Continuidade dos parques”, de Julio Cortázar, rompe-se a fronteira entre observador e objeto observado.

Sendo assim, o protagonista, inicialmente um espectador passivo da tapeçaria, acaba tragado pela cena, confundindo-se com os próprios personagens que contempla, o que desvela para o leitor a natureza instável e dissimulado daquilo que tradicionalmente se entende por percepção e por identidade.

4.

Como se buscou demonstrar, de modo panorâmico a partir de alguns breves exemplos da contística de Lygia Fagundes Telles, as narrativas da escritora, em maior ou menor grau e por procedimentos estéticos vários, subvertem o senso comum, ao trazer à tona sua insólita contraface. Isso posto, não seria descabido tomar de empréstimo do conto homônimo a expressão paradoxal “jardim selvagem” para pensar os contos de Lygia Fagundes Telles.

Como se viu, sua obra transita, de maneira incessante e desprovida de qualquer resolução possível, entre o que é racional e ordenado (“jardim”) e as pulsões inexplicáveis que fogem em tudo ao controle da lógica e da razão (“selvagem”). Talvez residam nessa imbricada relação a verdadeira grandeza e a apropriada celebração do fazer artístico da tão aclamada “dama da literatura brasileira”.

*Leandro Antognoli Caleffi é mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP).

Referência


Lygia Fagundes Telles. Antes do baile verde. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, 208 págs. [https://amzn.to/45i4MRd]

Bibliografia


CANDIDO, Antonio. “A nova narrativa”. In: A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.

DIMAS, Antonio. “Garras de veludo”. In: TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

GALVÃO, Walnice Nogueira. “O olhar de uma mulher”. In: TELLES, Lygia Fagundes. Os contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


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