Por EDUARDO NOVAES*
O tema da reconstrução das formas simbólicas da religião perpassa a profunda reflexão sobre o subdesenvolvimento da cultura na obra de Glauber
De Barravento (1961) a A idade da Terra (1981) o tema da reconstrução das formas simbólicas da religião perpassa a profunda reflexão sobre o subdesenvolvimento da cultura na obra de Glauber Rocha. Essa cifra de como a desconstrução da religião emerge de um princípio alegórico que consta em toda mitologia religiosa é algo que unifica a reflexão glauberiana do cinema como cinema essencialmente político.
Glauber Rocha, mesmo quando tentava, fazia da poesia um movimento de ascese das personagens nascidas da terra ao transe da alimentação que não era amamentada pela intensa forma com que a ausência do elemento emancipatório trazia ao seio da questão. Por exemplo, é do profundo corte entre a emancipação dialética que Antônio das Mortes perambula pelo posto Shell ao final de O dragão da maldade contra o santo guerreiro.
É pois uma situação comum, a fim de instaurar a cosmovisão de mundo das muitos premonições de Glauber, que a volta do nordestino ao desenvolvimento, hoje provindo de meios de produção estatais de fomento à emancipação, como é o caso do bolsa-família, não seria nada mais ou nada menos que conservadora. A mudança que traria o novo ao mercado de trabalho permaneceria agreste através das vestimentas, da cultura que não se desconstrói e desse enigma que é a percepção de ser à margem da sociedade, figurado através da dança e da música dos fins do filme.
Como Glauber Rocha pode situar a religião como condição da miséria? Através do folclore da mitologia que perpassa as crenças religiosas das muitas formas de ambientar a realidade. Só que a noção de ‘crítica’ em Glauber tem uma dupla função na esfera de uma mesma moeda. Em primeiro lugar, é preciso situar que a crença religiosa não encontra no mar da sua manifestação alegórica a crença na realidade da sua crença. Em outras palavras, a formação do pensamento religioso e do folclore que instalam cultura e civilização lado a lado converge num processo de desconstrução do messianismo, pois toda forma religiosa de conhecimento é uma construção alegórica da metáfora indiciária.
Em segunda lugar, o folclore é subserviente com a dialética do senhor com o escravo, com aquele que permuta funções sem haver uma correlação social a um mesmo nível. Assim, ensinar a pescar nem sempre garante o sucesso da pesca que, por sinal, antes ocorria com sucesso. É que a dinâmica sociológica da mudança na esfera pública do elo comunicativo entre escravo e empregado só ocorre, com efeito, quando as condições para as mudanças são de fato reais. Eis de novo Antônio das Mortes com os seus mesmos trajes do sertão perpassando o capitalismo sem mudar em nada o seu instinto.
Ora, a crítica ao folclore em Glauber Rocha tem esse mecanismo crítico-libertário, mas com as bases bem assentadas em uma crítica da cosmovisão de uma imagem de mundo que se faz visão de mundo. É que nem toda desconstrução da promessa ocidental do legado hermeneuta do objeto de troca foi pela via alegórica. Muito pelo contrário. A escravidão, o extermínio, a submissão de um atentado ao significante pôde produzir o mal, que, em Glauber Rocha, é poetizado para permite ser justificado numa ascese da fome à morte. Paulo Martins de Terra em Transe, entre a poesia e a política, desafia o elo das verdades contraditórias e, por essa razão, fica no meio do caminho, como um monolito representativo do seu autor.
As crenças que não se constatam em Barravento são o auxílio para uma mudança de perspectiva na percepção geral de um mar que não mais nos serve alimento e que por isso mesmo exige logicamente a mudança. O povo, enfim, de O dragão da maldade contra o santo guerreiro que pausa os duelos para comer carne seca com farinha precisa desse bem-estar para perceber a lacuna do sentimento metafísico de completude com um sistema cultural para modificá-lo através dos ritmos das músicas e das lutas.
A cosmovisão de Glauber Rocha, então, tem essa latente ambiguidade da metáfora no jogo de linguagem da crítica ao folclore. Em primeiro lugar, é preciso estender a apresentação da mise-en-scène da forma religiosa de encarar o real até a crítica aprofundada, através da alegorização dos processos produtivos do folclore, da desconstrução da camada sobretudo mitológica da religião. É o exemplo de A Idade da Terra em seu postulado pós-cinema: se a representação da ficção já não serve como base linguística da boa informação do entretenimento vazio de estetização política, é preciso pois desconstruí-lo através, como um Cidadão Kane tupiniquim, da forma como que a narrativa é elaborada.
É pois uma questão lógica a inversão da narração em produções de subjetivação fragmentadas na montagem elíptica, as entrevistas sobre a situação econômica histórica do Brasil e, não raro, a própria ideia do espírito da obra: a de muitos Jesus, cada um a desconstruir um objeto temático da cultura estendida da fome pelo processo de sublimação da dor até a mudança de atitude.
Em segundo lugar, o folclore não é destruído, mutilado ou mitigado. A partir da ideia de inversão lógica interna, a desconstrução da qualidade religiosa de discriminar o real construindo o símbolo ante o sinal sensível sem efeito ao conhecimento daquela realidade, Glauber Rocha messianiza o procedimento metafísico atributivo do significado que se deixa atrofiar para enfim deixar desobstruir as veias abertas dessa magia geral que permeia o imaginário coletivo do que afinal seja a ideia do colonizador sobre o que é o Brasil.
É pois a ideia da crença de que sabemos todos o que a dialética dos modos de produção do conhecimento de nação que se pulveriza. Afinal, a nossa visão, dada a circunstância da TV sobretudo, é o conjunto amealhado de uma visão de mundo colonizada por nós mesmos. É aí que o processo de alienação encontra o processo da ideologia refundadora da ideia de Brasil. Ora, o Brasil não é uma imagem, uma personagem ou um Estado: ele é, antes de tudo, uma civilização a se criar, em porções de terra e mar, pois passa fome da ideia de si.
O ineditismo da análise glauberiana do folclore está não na imersão de uma categoria do pensamento, a desconstrução de processos dialéticos, mas na ideia de que uma nação é antes de tudo a história dos seus processos de leitura de problematizadoras: quem fez a civilização da barbárie, o povo ou o gênio da raça? Quem é responsável pela alienação contínua nos meios de produção virtuais da realidade sensível hoje, o próprio povo ou os grandes magnatas de extensa família que ordenha a informação? Quem, por fim, é condição para a alternância do status quo social, é o governo, que não é o Brasil executivo na democracia, ou o próprio povo por meio da movimentação de alimentar-se criticamente do grande eixo-central de formação dos poderes executivos, legislativos e judiciários.
Para concluir, em breves parágrafos podemos situar a condição do folclore que anima o imaginário coletivo ou documentado, representados em A idade da Terra, entre a subjetivação dos meios de produção da alienação. Numa inversão da lógica nietzschiana, no Brasil não criamos ídolos, mas símbolos de superação, a fim do exemplo se tornar o patamar de uma virada-de-decisão da personagem social de cada um.
Pois não temos a figura do gênio como o folclore alemão tem. Temos sim a ideia de quem superou-as-expectativas em determinada área do conhecimento, da dança até os esportes de luta. A construção do itinerário, então, entre o messianismo necessário para a alternância na imagem de mundo, da alienação ao conhecimento crítico, perpassa a ideia alegorizada de símbolos, como são os nossos santos, santas e caboclos.
O pensamento de Glauber Rocha é tão profundo nesse quesito que ele soube, como ninguém, diga-se de passagem, pensar o Brasil através da sua raiz mais profunda: a interpretação da cultura dos povos originários que simplesmente celebram sem um respeito religioso as muitas formas de atribuição de vinculação entre representação e entes religiosos do povo europeu colonizador. (Basta lembrar da cena do descobrimento do Brasil em Terra em Transe, onde o que se deve ser o pudor por se sentir nu se transforma na aversão pela armadura de guerra das muitas significações de uma só ação que é colonizar.)
O que é o messianismo então e de que modo ele coage o pensamento de Glauber Rocha em uma meditação das formas de atribuição simbólicas a papéis sociais? Em que medida surge a mudança de aspecto, da alienação para a desconstrução? Se podemos arriscar, dentre a enorme gama de escritos produzidos sobre o autor, algum conteúdo original, acreditamos que é na ideia de que a nossa forma de vida não é um dado fixo, de um ponto de vista sociológico.
O quadro social retratado por Glauber dificilmente entregará a um único personagem uma única vinculação de papel social. As personagens mudam sem que se mude a face, e é preciso esperar, se não a progressão, a alternância do eu, de um professor que se torna ativista, e assim por diante. O movimento de laicização do processo de habituação de uma personagem social com a realidade, então, depende da instituição do símbolo para fazer acontecer a, afinal de contas, revolução. Mas é preciso ser menos unilateral inclusive com essa cosmovisão de que a alternância nos fará uma civilização. É que o messianismo é um discurso dirigido à construção de mudança não da realidade em si, mas do real significado nas ações revolucionárias de cada figura social que se alterna.
Para, pois, concluir, é preciso resgatar em outros textos, numa inundação bíblica em que nós e animais se salvem, uma personagem contraditória como era o gênio baiano Glauber Rocha e o seu pensamento, profundo e lateral, unilateral e alegórico, religioso e cético… é preciso que tenhamos ídolos.
*Eduardo Novaes é mestre em filosofia pela Universidade Federal da Bahia.
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