Por MICHAEL LÖWY
Considerações por ocasião do centenário de seu “Primeiro Manifesto”
O surrealismo não é, e nunca foi, uma escola literária ou uma corrente artística de “vanguarda” (como o cubismo ou o fauvismo), mas uma visão de mundo, um modo de vida e uma tentativa eminentemente subversiva de reencantar o mundo. É também uma aspiração utópica e revolucionária de “mudar a vida” (Rimbaud) – uma aventura ao mesmo tempo poética e política, mágica e rebelde, que começou em Paris em 1924, e continua até hoje.
Desde sua origem, o surrealismo é um movimento internacional. No entanto, nas páginas que seguem, vamos nos concentrar no grupo surrealista de Paris, em torno de André Breton, no início, mas que continuou sua atividade após a morte do autor dos Manifestos du surrealismo.
A aspiração revolucionária está na própria origem do surrealismo. O Primeiro Manifesto do Surrealismo (1924) de André Breton é um documento radicalmente libertário. E um dos primeiros textos coletivos do grupo intitula-se “A revolução agora e sempre” (1925). Neste mesmo ano, o desejo de romper com a civilização burguesa ocidental levou Breton a aproximar-se das ideias da Revolução de Outubro, como mostra sua resenha de Lênin, de Leon Trotsky. Ainda que tenha aderido ao Partido Comunista Francês em 1927, manteve, como explicou no panfleto “Au Grand Jour”, seu “direito à crítica”.
Foi o Segundo Manifesto do Surrealismo (1930) que tirou todas as consequências deste ato, afirmando “nossa adesão total, sem reservas, ao princípio do materialismo histórico”. Ao mesmo tempo em que fazia valer a distinção, a própria oposição, entre o “materialismo primário” e o “materialismo moderno” reivindicado por Friedrich Engels, André Breton insistia que “o surrealismo se considera indissoluvelmente ligado, em razão das afinidades que mencionei, à abordagem do pensamento marxista e apenas a esta abordagem”. Ao mesmo tempo, os surrealistas mostraram grande interesse pela obra de Sigmund Freud, pela interpretação dos sonhos e pelo inconsciente como fonte de expressão poética “automática”. As trocas de cartas entre André Breton e Freud testemunham esse interesse.
É evidente que seu marxismo não coincide com a vulgata oficial do Comintern. Talvez pudesse ser definido como um “marxismo gótico”, isto é, um materialismo histórico sensível ao maravilhoso, ao momento obscuro da revolta, à iluminação que rasga, como um relâmpago, o céu da ação revolucionária. Em outras palavras: uma leitura da teoria marxista inspirada em Rimbaud, Lautréamont e no romance noir inglês (Lewis, Maturin) – sem perder de vista, um instante sequer, a necessidade imperiosa de lutar contra a ordem burguesa. Pode parecer paradoxal unir, como vasos comunicantes, O Capital e O castelo de Otranto, A origem da família e Uma temporada no inferno, O Estado e a revolução e Melmoth. Mas é graças a esta abordagem singular que se constitui, em sua inquietante originalidade, o marxismo de André Breton.
Em todo caso, ele pertence, como o de José Carlos Mariátegui, Walter Benjamin, Ernst Bloch e Herbert Marcuse, à corrente subterrânea que atravessa o século XX por baixo das imensas barragens construídas pela ortodoxia: o marxismo romântico. Refiro-me aqui a uma forma de pensamento fascinada por certas formas culturais do passado pré-capitalista e que rejeita a racionalidade fria e abstrata da civilização industrial moderna, embora transforme esta nostalgia em força na luta pela transformação revolucionária do presente.
Se todos os marxistas românticos se insurgem contra o desencantamento capitalista do mundo – resultado lógico e necessário da quantificação, mercantilização e reificação das relações sociais –, é em André Breton e no surrealismo que a tentativa romântica/revolucionária de reencantamento do mundo através da imaginação atinge sua expressão mais radiante.
O marxismo de André Breton também se distinguia da tendência racionalista/cientificista, cartesiana/positivista, fortemente marcada pelo materialismo francês do século XVIII – que dominava a doutrina oficial do comunismo francês – por sua insistência na herança dialética hegeliana do marxismo. Em sua conferência em Praga (março de 1935) sobre “a situação surrealista do objeto”, insistiu na importância decisiva do filósofo alemão para o surrealismo: “Em sua Estética, Hegel abordou todos os problemas que podem ser considerados atualmente os mais difíceis na poesia e na arte, e resolveu a maior parte deles com uma lucidez inigualável. (…). Eu digo que, ainda hoje, é Hegel que deve ser questionado sobre os acertos ou erros da atividade surrealista nas artes”.[i]
Alguns meses mais tarde, em seu famoso discurso no Congresso dos Escritores para a Defesa da Cultura (junho de 1935), voltou ao ataque e não teve receio de proclamar, na contramão de um certo chauvinismo antialemão: “É sobretudo na filosofia de língua alemã que descobrimos o único antídoto eficaz contra o racionalismo positivista que continua causando estragos por aqui. Este antídoto não é outro senão o materialismo dialético como teoria geral do conhecimento”.[ii]
Esta adesão ao comunismo e ao marxismo não impediu, no cerne da abordagem dos surrealistas, uma posição irredutivelmente libertária. Basta lembrar da profissão de fé do Primeiro Manifesto do Surrealismo (1924): “A palavra liberdade é a única que ainda me exalta”. Walter Benjamin, em seu artigo de 1929 sobre o surrealismo, convidava os surrealistas a articular “a componente anarquista” da ação revolucionária com a “preparação metódica e disciplinada” desta última – ou seja, o comunismo…[iii]
O resto da história é bem conhecido: cada vez mais próximos das posições de Trotsky e da Oposição de Esquerda, a maioria dos surrealistas (com exceção de Louis Aragon!) rompe definitivamente com o stalinismo em 1935. Não se trata de uma ruptura com o marxismo, que continua inspirando suas análises, mas com o oportunismo de Stalin e de seus acólitos, que “infelizmente tende a aniquilar as duas componentes essenciais do espírito revolucionário”: a rejeição espontânea das condições de vida oferecidas aos seres humanos e a necessidade imperiosa de mudá-las.[iv]
Em 1938, André Breton visitou Trotsky no México. Juntos redigiram um dos documentos mais importantes da cultura revolucionária do século XX: o apelo “Por uma arte revolucionária independente”, que contém a seguinte passagem famosa: “para a criação cultural, a revolução deve, desde o início, estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhum constrangimento, nem o menor resquício de comando! … Os marxistas podem andar aqui de mãos dadas com os anarquistas…”. Como sabemos, esta passagem foi escrita pelo próprio Trotsky, mas também podemos supor que foi o produto de suas longas conversas às margens do Lago Patzcuaro.[v].
Nos anos do pós-guerra, a simpatia de André Breton pelo anarquismo se manifestaria mais claramente. Em Arcano 17 (1947), ele lembra da emoção que sentiu quando, ainda criança, descobriu num cemitério um túmulo com esta simples inscrição: “Nem Deus nem Mestre”. A este respeito, enunciou uma reflexão de caráter geral: “acima da arte, da poesia, gostemos ou não, tremula também uma bandeira que é alternadamente vermelha e negra” – duas cores entre as quais se recusa a escolher.
De outubro de 1951 a janeiro de 1953, os surrealistas colaborariam regularmente no jornal Le Libertaire, órgão da Federação Anarquista Francesa, com artigos e notas. Naquele momento, seu principal correspondente na Federação era o comunista libertário Georges Fontenis. Nessa ocasião, André Breton escreveria o texto flamejante intitulado “A clara torre” (1952), que recorda as origens libertárias do surrealismo: “Onde o surrealismo se reconheceu pela primeira vez, muito antes de se definir, e quando ainda não era mais do que uma associação livre de indivíduos que rejeitavam espontaneamente e em bloco os constrangimentos sociais e morais de seu tempo, foi no espelho negro do anarquismo”.
Trinta anos e muitas desilusões depois, voltou a proclamar-se partidário do anarquismo – não aquele que se queria transformar numa caricatura, mas “aquele que o nosso camarada Fontenis descreve ‘como o próprio socialismo, isto é, esta reivindicação moderna da dignidade do homem (sua liberdade tanto quanto seu bem-estar)’…”. Apesar da cisão de 1953, André Breton não cortou relações com os libertários, continuando a colaborar em algumas de suas iniciativas.[vi]
Contudo, este interesse pelo socialismo libertário não levou os surrealistas a negarem sua simpatia pela Revolução de Outubro e pelas ideias de Leon Trotsky. Num discurso de 19 de novembro de 1957, André Breton insistiu e subscreveu: “Contra ventos e marés, sou um daqueles que ainda encontram, na memória da Revolução de Outubro, boa parte daquele impulso incondicional que me levou a ela quando eu era jovem e que implicava a entrega total de si mesmo”.
Saudando o olhar de Trotsky, tal como este aparece, com o uniforme do Exército Vermelho numa velha fotografia de 1917, ele proclamou: “Um olhar como esse e a luz que dele emana, nada poderá apagar, assim como o Termidor não pôde alterar as feições de Saint-Just”. Por fim, em 1962, numa homenagem a Natalia Sedova, que acabara de morrer, clamou pelo dia em que “não só se faria justiça a Trotsky, como se daria toda força e alcance às ideias pelas quais ele deu a vida”.[vii]
O surrealismo é talvez esse ponto de fuga ideal, esse lugar supremo do pensamento onde se encontram a trajetória libertária e a do marxismo revolucionário. Mas não devemos esquecer que o surrealismo contém o que Ernst Bloch chamou de “um excedente utópico”, um excedente de luz negra que escapa aos limites de qualquer movimento social ou político, por mais revolucionário que seja. Essa luz emana do núcleo irredutível da noite do espírito surrealista, de sua busca obstinada pelo ouro do tempo, de seu mergulho desesperado nos abismos do sonho e do maravilhoso.
Em 1969, figuras destacadas do surrealismo parisiense, como Jean Schuster, Gérard Legrand e José Pierre, decidiram que, por conta da morte de André Breton em 1966, seria melhor dissolver o Grupo Surrealista. Em 4 de outubro de 1969, Schuster publicou no jornal diário Le Monde um texto intitulado A Quarta Canção, que anunciava solenemente o fim do movimento surrealista como atividade coletiva organizada: “renunciamos à palavra para salvar a ideia”.
No entanto, esta conclusão foi rejeitada por muitos outros surrealistas. Vincent Bounoure tomou a iniciativa de responder a Schuster e a seus amigos, em outubro de 1969, num texto intitulado “Nada ou o quê”, que propunha a continuação da aventura surrealista. Vários surrealistas em Paris e em Praga juntaram-se a ele e, a partir de 1970, as atividades coletivas foram retomadas.[viii]
Infelizmente, a maior parte dos relatos acadêmicos e convencionais sobre o surrealismo assume que o grupo se “dissolveu” em 1969. É muito estranho que essa atitude tenha persistido apesar da presença bem visível do movimento surrealista em Paris depois de 1970. Para a maior parte dos historiadores da arte, o surrealismo foi apenas uma de inúmeras “vanguardas artísticas”, como o cubismo ou o futurismo, que tiveram uma vida bem curta.
Vincent Bounoure (1928-1996) foi quem impulsionou o novo período de atividade surrealista, e continuou sendo uma figura inspiradora até seu último dia. Poeta talentoso e ensaísta brilhante, ele era, assim como sua companheira Micheline, fascinado pela arte oceânica da Nova Guiné, sobre a qual escreveu vários ensaios.
Outra figura de destaque do grupo depois de 1969 foi Michel Zimbacca (1924-2021), poeta, pintor, cineasta e personagem cativante. Seu documentário sobre as “artes selvagens”, A invenção do mundo (1952), é considerado um dos poucos filmes verdadeiramente surrealistas; Benjamin Péret escreveu o texto mito-poético que comenta as imagens. O grupo surrealista reunia-se frequentemente no apartamento que ele compartilhava com sua companheira Anny Bonnin. Bounoure e Zimbacca foram o elo vivo entre o movimento surrealista pós-1969 e o grupo fundado por André Breton em 1924.
Nos anos 1970-1976, os surrealistas parisienses que se recusaram a desistir reuniram-se – em contato estreito com seus amigos de Praga – em torno de uma modesta revista, o Bulletin de Liaison Surréaliste (BLS). O Bulletin contém um debate sobre “o surrealismo e a revolução” com Herbert Marcuse. Entre muitas outras preciosidades, um artigo do antropólogo Renaud em apoio aos índios dos Estados Unidos reunidos em Standing Rock, em julho de 1974.
No último número do BLS, em abril de 1976, foi publicada uma declaração coletiva de apoio a um jovem cineasta surrealista brasileiro, Paulo Paranaguá, e à sua companheira, Maria Regina Pilla, que tinham sido presos na Argentina e acusados de “propaganda subversiva”. Iniciado pelos surrealistas, o apelo foi publicado por Maurice Nadeau em La Quinzaine Littéraire e assinado também por intelectuais franceses renomados, como Deleuze, Mandiargues, Foucault e Leiris.[ix]
Os surrealistas parisienses mantiveram relações estreitas com o grupo de Praga, que vivia na semi-clandestinidade sob o regime stalinista imposto à Tchecoslováquia após a invasão soviética de 1968. Eles podiam reunir-se informalmente em casas privadas, mas sua revista Analogon foi proibida e não lhes era permitido expor suas obras ou filmes. Em 1976, por iniciativa de Vincent Bounoure, os surrealistas de Paris e de Praga publicaram na França (Edições Payot) uma coletânea de ensaios, A civilização surrealista.[x]
Em 1987, os surrealistas publicaram uma resposta ao filósofo Jürgen Habermas. O ilustre filósofo racionalista tinha criticado uma suposta tentativa dos surrealistas de “forçar uma reconciliação entre arte e vida”. Em sua resposta, os surrealistas salientaram que seu objetivo não era “reconciliar” o que quer que fosse, mas mudar a vida pela superação dialética da oposição tradicional entre sonho e realidade. Habermas considerava que a revolta surrealista contra a institucionalização da arte tinha fracassado; em sua resposta, os surrealistas afirmaram que a rebelião surrealista não é apenas contra a condição institucional da arte, mas contra todas as instituições dominantes de nossa civilização. Além disso, “enquanto alguns pensadores obstinados se recusarem a se submeter ao poder total da razão instrumental, será muito cedo para falar do fracasso da revolta surrealista”.[xi]
O grupo surrealista sempre foi muito político, desde 1924. Depois de 1969, isso continuou sendo verdade, mas não significa que se tratava de aderir às organizações políticas existentes. Alguns membros participaram de organizações trotskistas (Ligue Comunista Revolucionária, seção francesa da Quarta Internacional), outros da Federação Anarquista ou da CNT anarcossindicalista. Mas a maior parte dos surrealistas parisienses não pertencia a qualquer organização; o espírito comum era antiautoritário e revolucionário, com uma tendência libertária dominante. Foi este espírito que inspirou suas atividades e declarações comuns publicadas nestes anos.
Muitas destas declarações dizem respeito aos movimentos de luta dos indígenas, seja no México, nos EUA ou em outros lugares. Isto certamente está ligado à tradição antiautoritária e anticolonialista do movimento e à sua rejeição da civilização ocidental moderna.
Mas esta empatia e o grande interesse pelas “artes selvagens” também são a expressão de um estado de espírito romântico/revolucionário/anticapitalista: os surrealistas acreditavam – tal como o primeiro romântico, Jean-Jacques Rousseau, que elogiou a liberdade dos caribenhos – que nestas culturas “selvagens” – os surrealistas não gostavam da palavra “primitivo” – podíamos encontrar valores humanos e modos de vida que eram, em muitos aspectos, superiores à civilização imperialista ocidental. As lendas, mitos e artefatos rituais destes “selvagens” eram muito apreciados, não só por Vincent Bounoure e Michel Zimbacca, mas por todo o grupo surrealista.
Em 1991, o Bulletin surréaliste international no. 1 foi publicado em Estocolmo, com a resposta dos grupos de Paris, Praga, Estocolmo, Chicago, Madri e Buenos Aires a uma enquete sobre a tarefa atual do surrealismo. O grupo de Paris insistia em seu texto que “o surrealismo não é um conjunto de receitas estéticas ou lúdicas, mas um princípio permanente de recusa e de negatividade, nutrido pelas fontes mágicas do desejo, da revolta e da poesia (…). Nem Deus nem mestre: mais do que nunca este velho lema revolucionário parece-nos pertinente. Está inscrito em letras de fogo nos portões que conduzem, para além da civilização industrial, à ação surrealista, cujo objetivo é o reencantamento (e a reerotização) do mundo”.
Para protestar contra as celebrações pomposas do Quinto Centenário da chamada “descoberta das Américas” (1992), os surrealistas publicaram o Bulletin Surréaliste International no. 2 em 1992, com uma declaração conjunta assinada pelos grupos surrealistas da Austrália, Buenos Aires, Dinamarca, Grã-Bretanha, Madri, Paris, Países Baixos, Praga, São Paulo, Estocolmo e Estados Unidos. Inspirado por um ensaio escrito por nossa amiga argentina Silvia Grenier, este documento celebra a afinidade eletiva do surrealismo com os povos indígenas, contra a civilização ocidental que os oprimiu e tentou destruir suas culturas: “na luta contra este totalitarismo sufocante, o surrealismo é – e sempre foi – o companheiro e o cúmplice dos indígenas”.
O Bulletin foi publicado em três línguas – inglês, francês e espanhol – pelos surrealistas de Chicago, que forneceram a capa com uma colagem de Franklin e Penelope Rosemont representando Colombo como o Père Ubu de Alfred Jarry.[xii]
O Museu de Arte Moderna de Paris (“Centre Georges Pompidou”) inaugurou uma grande exposição de arte surrealista na primavera de 2002, sob o título “Revolução Surrealista”. A exposição não tinha, de fato, qualquer significação “revolucionária” e tentava apresentar o surrealismo como uma experiência puramente “artística”, utilizando “novas técnicas”. À entrada do museu, os visitantes podiam pegar gratuitamente um folheto de quatro páginas que explicava que “o movimento surrealista queria participar ativamente da organização da sociedade” e que tinha tido uma grande influência nesta, especialmente por seu impacto na “publicidade e videoclips”…
Incomodado com esse amálgama conformista, Guy Girard sugeriu que o grupo surrealista preparasse um folheto alternativo, no mesmo formato de quatro páginas, com letras similares, mas com um conteúdo totalmente diferente: o surrealismo é descrito como um movimento revolucionário cuja aspiração à liberdade e à imaginação subversiva visa “eliminar a dominação capitalista”; o folheto é ilustrado com imagens de mulheres artistas – como Toyen ou Leonora Carrington – praticamente ausentes da exposição, e com uma fotografia histórica de 1927: “nosso colaborador Benjamin Péret insultando um padre”…
Os membros do grupo colocaram então, cuidadosamente, uma pilha do folheto surrealista sobre o folheto “oficial”, para que os visitantes o apanhassem. O curioso é que os curadores da exposição, desafiados pelo panfleto surrealista, retiraram sua própria peça fútil e substituíram-na por uma nova, que tentava levar em consideração o fato de que o surrealismo era um movimento subversivo antiautoritário que denunciava “a Família, a Igreja, a Pátria, o Exército e o Colonialismo”…[xiii].
Os diferentes panfletos e declarações do grupo foram publicados no livro Insoumission Poétique. Tracts, Affiches et déclarations du groupe de Paris du mouvement surréaliste 1970 – 2010 (Paris, Le Temps des Cerises, 2010). Guy Girard editou o livro, compilou o material e as ilustrações e escreveu uma breve apresentação para cada texto; M-D Massoni escreveu uma breve introdução histórica. O livro foi parcialmente traduzido para russo e português [Por uma insubordinação poética: panfletos e declarações do movimento surrealista 1970 – 2022 . São Paulo, sobinfluencia edições, 2022].
Entre 2019 e 2022, foram lançados três números de uma nova revista parisiense: Alcheringa. Le surréalisme aujourd’hui. “Alcheringa” é uma palavra de uma língua aborígene australiana, que significa “O tempo dos sonhos”, mencionada por André Breton em seu ensaio Main Première[xiv]. No editorial do primeiro número, Guy Girard recorda a oposição surrealista à civilização capitalista, a todas as religiões, ao poder do Estado, ao patriarcado e a “um pensamento que, dividido entre o delírio irracional e a racionalidade instrumental superficial, sempre lutou contra a imaginação criativa”. E num ensaio do terceiro número, Sylwia Chrostowska define o surrealismo como uma “arte do sonho” contra a positividade que nos sufoca, uma arte que inclui não apenas sonhos noturnos mas também sonhos utópicos.[xv]
Independentemente de suas limitações e dificuldades, o movimento surrealista em Paris manteve viva, ao longo dos últimos 50 anos, a chama vermelha e negra da rebelião, o sonho antiautoritário de uma liberdade radical, a insubordinação poética aos poderes estabelecidos e o desejo obstinado de reencantar o mundo.
*Michae Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centre nationale de la recherche scientifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de Franz Kafka sonhador insubmisso (Editora Cem Cabeças) [https://amzn.to/3VkOlO1]
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Notas
[i] A. Breton, Position politique du surréalisme, Paris, Denoel, 1972, pp. 128-129.
[ii] Ver Maurice Nadeau, Documents surréalistes, Paris, Editions du Seuil, p. 298.
[iii] W. Benjamin, “Le surréalisme, dernier instantané de l’intelligence européenne”, Mythe et Violence, Paris, Maurice Nadeau, 1970, pp. 299-301.
[iv] “Du temps que les surréalistes avaient raison”, in M. Nadeau, Documents Surréalistes, p.309.
[v] A documentação sobre este “encontro entre o Leão e a Águia” foi reunida por Arturo Schwarz em seu pequeno livro Breton/Trotsky, Paris, 10/18, 1977. Também podemos utilmente ler os textos de Marguerite Bonnet e Gerard Roche nos Cahiers Leon Trotsky, n. 25, março de 1986 (número sobre “Trotsky e os escritores franceses”).
[vi] A. Breton, “La claire tour”, La clé des champs, Paris, 10/18, 1967, p. 424. Sobre este episódio, ver os dois notáveis panfletos publicados sob o título “Surréalisme et Anarchisme” pelo Ateliê de Criação Libertária de Lyon, em 1992 e 1994.
[vii] Estes dois textos encontram-se em A. Schwarz, Breton/Trotsky, pp.194, 200.
[viii] Vincent Bounoure, “Rien ou quoi”? (1969) em Moments du Surrealisme, Paris, L’Harmattan, 1999.
[ix] BLS, n. 10,abril 1976, p. 25. O casal só foi libertado em janeiro de 1977. Foi em 1975, durante a campanha pela libertação dos brasileiros, que eu me encontrei com Vincent Bounoure para lhe pedir que nos ajudasse. Nós nos tornamos amigos e ele me convidou para ir ao Café dos Surrealistas.
[x] Vincent Bounoure (org.), La Civilisation Surréaliste, Paris, Editions Payot, 1976. Publiquei uma resenha deste livro no semanário (trotskista) Rouge em junho de 1976: “este livro manifesta toda diversidade, riqueza e inspiração libertária da mensagem surrealista. Acima de tudo, é um protesto apaixonado, uma declaração de “desvio absoluto” (uma expressão de Fourier frequentemente citada por Breton) da civilização capitalista-industrial e sua visão de mundo mercantil, racionalista-positivista”.
[xi] Fui o autor desta declaração, assinada pelos surrealistas de Paris, Praga e Buenos Aires, e publicada na revista Praxis International, Londres, janeiro de 1987, sob o título “Oiseau Hermétique”.
[xii] “1492-1992. Tant que les voyeurs parviendront à se substituer aux voyants”, em Insoumission Poétique, Tracts, affiches et déclarations du groupe de Paris du mouvement surréaliste 1970-2010, apresentado por Guy Girard, Paris, Le Temps des Cérises, 2011, p. 66. Conheci Silvia Grénier, a principal animadora do grupo surrealista de Buenos Aires, durante uma visita à Argentina por volta de 1985. Tornamo-nos amigos e gostei muito de Tierra Adentro, um ensaio contra o colonialismo ocidental que ela tinha escrito. Sugeri aos surrealistas internacionais que o utilizássemos como base para nossa declaração e escrevi uma versão mais curta, que foi adotada.
[xiii] Publiquei um artigo no principal jornal francês, “Le Monde”, em abril de 1999, que reconta essa história: “La révolution surréaliste est-elle soluble dans la cire des musées?”.
[xiv] A. Breton, “Main Première” (1962), Perspective Cavalière, Paris, Gallimard, 1970, p. 225
[xv] Sylwia Chrostowska, “Ni Commencement, ni Commandement, Juste un Rêve”, Alcheringa 3, 2022, pp. 2-5.
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