O mercado planetário da morte

Imagem: Ales Uscinau
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

As guerras hoje são prolongamentos racionais da globalização financeira, criando e extinguindo mercados

Na pequena aldeia de Zimmerwald, em setembro de 1915, em função do dissenso na Segunda Internacional Socialista sobre a Guerra de 1914, os partidos italiano e suíço convocaram uma Conferência para examinar a gravidade da crise mundial e buscar uma definição política estratégica sobre aquela hecatombe. Lênin, um dos líderes da social democracia ali presentes, defendia denunciar a guerra como “guerra imperialista” e chamar os proletários dos respectivos países em conflito, para negar-se a lutar e protestar contra a guerra.

Roberto Grimm era o líder centrista, majoritário na reunião, que queria saísse dali apenas uma proclamação pacifista, em abstrato, se opondo a uma manifestação concreta contra a guerra concreta, encobrindo sua posição “patriótica” com a defesa da reativação da Internacional Socialista. Lenin se opunha frontalmente, tanto ao pacifismo em abstrato de Grimm, como à negativa de condenar fortemente a guerra concreta, que abriria o sangrento Século XX.

Para Lênin era impossível conviver com correntes políticas complacentes com a carnificina em curso, que promoveram a chacina engendrada pelos governos nacionais, que disputavam espaços de dominação imperial, semeando os campos e as montanhas da Europa com milhões de cadáveres de todas as nações envolvidas no conflito. Com as bombas que moveram as placas tectônicas e os gases venenosos, que criaram as condições para a emergência do nazismo e a tragédia da Segunda Guerra Mundial.

Este momento da história europeia pode ser considerado um marco que materializou a diferença de princípios entre o socialismo e a democracia liberal-representativa – que está hoje, nos dois lados da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Mas não estão presentes, nos dois lados, nem Robert Grimm com seu pacifismo abstrato, nem Lênin com sua repulsa concreta às guerras imperialistas.

“A guerra é a continuação da política por outros meios” (Clausewitz) diz a definição celebrada, originária de quem se ocupava em pensá-la como ciência. Observá-la com rigor, todavia, não garante que – se a definição foi correta na época da sua emissão – possa ser repetida como verdade para todo o sempre. Nos diferentes ciclos históricos as guerras adquirem certos contornos, que exigem mudanças no juízo sobre a sua dinâmica. Nos tempos atuais, tudo indica que a política é que se tornou, predominantemente, “guerra por outros meios”.

São tempos curtos de guerra sujas e “clínicas”, apresentadas como “limpas”, que logo se insinuam como jogos virtuais. Nestes, a distância entre os beligerantes e o espectador não tem nexo temporal, no qual se visualiza a morte: tudo parece – ao mesmo tempo – ficção para o lazer e crueldades sem dor, que não nos aproximam do humano, que se torna apenas uma parte de um espetáculo lúdico e perverso.

A sucessão interminável das guerras se prolifera “de forma quase compulsiva, a despeito de que a maioria das sociedades humanas considera e defende a paz como um valor universal”. É o que torna a política – hoje – uma “guerra continuada”, assevera Fiori. Se é certo que “as guerras são uma catástrofe” e que, em princípio, constituem um “mal” para a Humanidade, também é certo que podem ser formalmente justas e defensivas, desencadeadas contra agressões injustas.

A busca da paz, em cada tempo concentrado de guerra, concretiza uma oposição de valores (agressão x paz – conquista ou defesa) que tornam a ação política das partes, na guerra, decisiva para conquistar o legado que advém da sua barbárie. O problema maior, porém, está no “motor” da guerra, como decisão política e militar que a justifique em termos civilizatórios: como ela se legitima para suscitar as emoções militantes que estão nos porões agressivos do inconsciente do povo?

Vem a pergunta: de onde os atores da economia global tiram legitimidade social e política para a suas decisões estratégicas?”, pergunta o Gilberto Dupas em Atores e poderes na nova ordem global (Unesp). E responde: a natureza do mandato desses atores vem da “racionalidade econômica e do sucesso comercial”. Concluo: as massas de soldados e os sentimentos da maioria, que compõem o cenário histórico da guerra, são sempre manipulados

A seguir, Dupas lembra – com Urlich Beck – que o mandato da economia global (ou da “democracia global”) “se baseia no voto econômico dos acionistas, que se manifesta pelas altas e baixas de ações nos mercados financeiros mundiais. Ao consumidor, diz ele, “só sobraria uma forma organizada de poder expressar o seu direito de voto, a saber, comprar ou não comprar”. O keynesianismo de Guerra de Reagan, que alimentou a economia americana no seu tempo, volta assim com força total no mercado planetário da morte.

Integrada por interesses muito concretos, nesta guerra o que interessa mais é “em que mercado estou lutando”, do que o “porque estou lutando”, ao contrário do que ocorreu nas duas Grandes Guerras do século passado. Com diferentes formas e argumentos, protagonistas de posições políticas até opostas entendem – de forma crítica ou apologética – que é necessário, “para maximizar o poder (dos acionistas), maximizar (também) as conexões entre capital e direito”.

Esta conexão imediata entre o capital e o direito exige rapidez dos atores políticos. Não só para promoverem, em cada país, reformas constitucionais e da legislação ordinária, para viabilizar as guerras entre os mercados, mas também para abrir brechas no Estado de Direito, através de decisões “de exceção”, mais moderadas ou radicais, para subordinar o Estado ao mercado.

Há um Direito Internacional que rege a guerra e protocolos que tentam humanizar o que é impossível tornar humano. O inumano exige, na sua facticidade, a morte de inocentes, a perversão do reconhecimento do outro só como desigual e não se comove com as fileiras fúnebres das crianças mortas, nem com a suprema degradação da natureza: a guerra estará sempre mais perto do “estado de natureza” do que do “estado humano”, pactuado pela ideologia da virtude e da justiça.

É neste contexto histórico, hoje, no qual não mais se opõem “blocos” comunistas reais de um lado e, de outro lado, imperialismos da expansão industrial, – neste contexto – é que as guerras assumem uma outra feição. Elas não são mais projetos nacionais ou internacionais em expansão, através de choques militares planejados, mas prolongamentos racionais da globalização financeira, criando e extinguindo mercados, dominando e liberando a reprodução virtual do dinheiro especulativo que os alimenta. E em todos os mercados morrem jovens e crianças e viceja a hidra do fascismo!

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Daniel Brazil Priscila Figueiredo Francisco Pereira de Farias Francisco de Oliveira Barros Júnior Luiz Carlos Bresser-Pereira Valerio Arcary Andrew Korybko Michael Löwy Jean Pierre Chauvin Celso Favaretto Thomas Piketty Ladislau Dowbor Luís Fernando Vitagliano Gilberto Lopes Eduardo Borges Dennis Oliveira Ricardo Abramovay Carla Teixeira Matheus Silveira de Souza José Raimundo Trindade Valerio Arcary Fernando Nogueira da Costa Denilson Cordeiro Gabriel Cohn Daniel Afonso da Silva Walnice Nogueira Galvão Plínio de Arruda Sampaio Jr. Eugênio Trivinho Remy José Fontana Eliziário Andrade Ronald Rocha Tales Ab'Sáber Renato Dagnino João Paulo Ayub Fonseca João Feres Júnior Salem Nasser José Costa Júnior Julian Rodrigues Anselm Jappe Jean Marc Von Der Weid Chico Alencar Rodrigo de Faria Armando Boito Michael Roberts Henri Acselrad Ronaldo Tadeu de Souza João Carlos Salles Juarez Guimarães Carlos Tautz Yuri Martins-Fontes Jorge Luiz Souto Maior Luiz Eduardo Soares Alexandre de Lima Castro Tranjan Rubens Pinto Lyra Vinício Carrilho Martinez Manchetômetro Ricardo Musse Fernão Pessoa Ramos Annateresa Fabris Érico Andrade Flávio R. Kothe Bernardo Ricupero Sandra Bitencourt Ricardo Antunes Lincoln Secco Alexandre de Freitas Barbosa Bruno Fabricio Alcebino da Silva Tarso Genro José Machado Moita Neto Marilia Pacheco Fiorillo Elias Jabbour Manuel Domingos Neto Maria Rita Kehl Sergio Amadeu da Silveira Michel Goulart da Silva Heraldo Campos José Luís Fiori Eleutério F. S. Prado Alysson Leandro Mascaro João Lanari Bo Francisco Fernandes Ladeira Otaviano Helene Marjorie C. Marona Everaldo de Oliveira Andrade Rafael R. Ioris Igor Felippe Santos Bento Prado Jr. Chico Whitaker Luis Felipe Miguel Tadeu Valadares Claudio Katz Mariarosaria Fabris Leonardo Avritzer Marilena Chauí Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Fábio Konder Comparato Leonardo Sacramento Kátia Gerab Baggio Berenice Bento Paulo Martins Antonio Martins Milton Pinheiro Marcus Ianoni Airton Paschoa Samuel Kilsztajn Dênis de Moraes Marcelo Guimarães Lima Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Fabbrini Afrânio Catani João Carlos Loebens João Adolfo Hansen Bruno Machado Marcos Aurélio da Silva Ari Marcelo Solon Lorenzo Vitral André Singer Atilio A. Boron José Micaelson Lacerda Morais Paulo Sérgio Pinheiro Andrés del Río Jorge Branco Liszt Vieira Leda Maria Paulani Paulo Fernandes Silveira Lucas Fiaschetti Estevez Marcos Silva Luiz Bernardo Pericás José Geraldo Couto Gilberto Maringoni Eugênio Bucci Celso Frederico Caio Bugiato Slavoj Žižek Mário Maestri Paulo Capel Narvai Luiz Werneck Vianna Luiz Marques Daniel Costa Alexandre Aragão de Albuquerque Vanderlei Tenório Eleonora Albano Vladimir Safatle Leonardo Boff Henry Burnett Luiz Renato Martins André Márcio Neves Soares João Sette Whitaker Ferreira José Dirceu Flávio Aguiar Luiz Roberto Alves Gerson Almeida Ronald León Núñez Antônio Sales Rios Neto Boaventura de Sousa Santos Luciano Nascimento Marcelo Módolo Benicio Viero Schmidt Osvaldo Coggiola Antonino Infranca

NOVAS PUBLICAÇÕES