Por GILSON SCHWARTZ*
Uma defesa da obra da economista, a partir da crítica de Eleutério Prado.
Para Marcos Müller, in memoriam
“Ocorre às vezes que uma crítica se aplique sobretudo ao seu autor” (Roberto Schwarz, Resposta a Gerard Lebrun).(1)
Para Eleutério F.S. Prado, em artigo postado no site A Terra é Redonda a obra O valor de tudo de Mariana Mazzucato peca fatalmente por carecer de “uma perspectiva científica” que dê conta da complexidade da crise capitalista a ponto de favorecer “uma práxis crítica não apenas reprodutora do existente, mas verdadeiramente transformadora”.
Evoco pervertendo a crítica da crítica apresentada por Roberto Schwarz a Gerard Lebrun e resgatada por Paulo E. Arantes na coletânea recentemente publicada de ensaios sobre o Museu da Ideologia Francesa.(2)
Essas referências um tanto labirintíticas são especialmente oportunas pois um aspecto central da reação marxiana de Prado a Mazzucato implica a economista ítalo-americana nas encruzilhadas do labirinto pós-moderno que reduz o real a um jogo de espelhos entre narrativas. No limite, Prado situa o pensamento de Mazzucato na vertente norte-americana da Ideologia Francesa.
A senha para essa (des)qualificação da autora é sua referência ao “mito do valor”, sua enunciação (a resenha crítica de Prado começa por uma frase) “a princípio, bem enigmática” de que o livro “O Valor de Tudo” volta-se “para um mito moderno: a criação de valor na economia”.
É o suficiente para identificar o pensamento de Mazzucato a uma espécie do gênero “narratológico”. A autora quer discutir criticamente as narrativas – “é esse o termo que emprega” – sobre a criação e apropriação de valor na sociedade contemporânea, pois julga que é requerido agora “um tipo de narrativa radicalmente diferente acerca de quem criou riqueza originariamente – e de quem, na sequência, a extraiu”.
Ao remeter o “mito” a Platão, já no segundo parágrafo Prado esclarece (“isso deve ficar claro logo de início”) que a autora “não trata a questão do valor econômico no campo da ciência moderna, mas da perspectiva de um discurso que se faz a si mesmo a partir de si mesmo, sem estar prisioneiro à realidade e ao real subjacente por dever de ofício”.
A “rememoração da mitologia” e de sua “vocação para a transmissão de lições morais” seria um passo em falso, atestado de pós-modernidade que supostamente autorizaria uma volta sem medo à Grécia antiga, ou seja, a “uma época em que os valores eram disseminados supostamente por contadores de histórias”. Afinal, nada é mais pós-moderno que acreditar que “tudo se resolve como uma questão de narrativas”. Eis o passo em falso da autora que segue a moda entre os “economistas do sistema”, “desconsolados” com os rumos atuais do capitalismo. Para corrigir os rumos do “sistema” seria então obrigatório retomar as narrativas do valor e, deslize imperdoável, perder-se na perspectiva que não leva a nada, a saber, a do entendimento do valor como pura narrativa.
Pior, narrativa moralizante, edificante ou apta a emitir juízos sobre quem cria valor e quem dele apenas se apropria, como se o desequilíbrio entre produção e distribuição revelasse afinal a chave da crise sistêmica.
Bastaria a essa heterodoxia pós-moderna orientar governantes a fazer uma opção mais esclarecida sobre as fronteiras entre criação/produção e apropriação/intermediação nos circuitos da economia para arbitrar uma trajetória sustentável, humanista e purificadora dos mercados no processo de desenvolvimento econômico.
A opção “científica” oferecida por Prado é a teoria do valor-trabalho ou pelo menos alguma entre tantas das alternativas marxistas para a economia vulgar que jamais ultrapassa o limiar do valor de uso como fundamento da sociedade mercantil.
Embora Prado sublinhe a linha fina (que ele incorpora ao título do livro sem mais), ou seja, a distinção entre as atividades que produzem valor e as que apenas dele se apropriam, cumpre sublinhar também o título propriamente dito. Pois ao alertar para o “valor de tudo”, a autora quer também dizer que tudo tem ou pode ter valor. E aí reside o que seria o calcanhar de Aquiles da argumentação não-marxista (centrada nos valores de uso) que por meio desse expediente mitológico deslocaria do trabalho para as esferas da valoração ética e moral o fundamento a partir do qual deve ser pensado (“cientificamente”) o problema do valor, de sua origem, apropriação e destruição.
Haveria assim uma incompatibilidade entre a perspectiva científica da economia política marxista e a proposição de reformas dentro do sistema, por meio do Estado, de políticas econômicas, marcos regulatórios e configurações institucionais amparadas apenas na distinção entre atividades produtivas e improdutivas, entre criação e extração, e mesmo destruição, de valor.
Prado recusa essa perspectiva supostamente mistificadora e apenas retórica como fundamento para a crítica do capitalismo contemporâneo ou mesmo para a sua reorientação a ponto de servir “ao bem comum e não ao enriquecimento de poucos”. A princípio, parece uma crítica radical de esquerda ao reformismo heterodoxo por deslocar a questão do valor e suas transfigurações fantasmáticas da determinação reflexiva em que o Trabalho (em luta por reconhecimento e superação do Capital) é a chave-mestra da História para um jogo de espelhos entre narrativas que arranham a superfície, mas não atingem a substância do processo de criação de valor, acumulação de capital e crise.
Se a essência do valor é a produção de valores de uso (bens e serviços) e não o engendramento de um processo de expropriação e roubo amparados pela propriedade privada, a distinção entre criação e apropriação já nasce comprometida com o status quo e assim nunca passará de mais uma fábula a serviço da dominação e da desigualdade.
No lugar da “ciência”, uma tautologia: tem valor o que é útil, valor econômico seria sinônimo de valor de uso e, portanto, expressão fetichista de preferências subjetivas. Tem valor o que é útil, tudo que é útil tem valor – bastaria apenas instaurar enfim uma nova percepção intersubjetiva utilitarista para superar as contradições do sistema capitalista sem passar pelo filtro da luta de classes ou pelo reconhecimento do caráter revolucionário da classe trabalhadora na gestação de um futuro melhor para todos. O sistema é o que é, cumpre inventar narrativas mais úteis, sustentáveis ou “justas” (sem que se possa efetivamente ancorar o critério da Justiça ou as bases do sistema de trocas, o lastro das equivalências em nada substantivo ou essencial).
É nesse território da luta de classes que se afiguraria uma “prática social efetiva, material, concreta, que faz as coisas se tornarem valores de uso – e não meramente histórias ou narrativas”, conclui Prado em sua rejeição ao reformismo heterodoxo. Nenhuma política econômica abolirá a contradição entre capital e trabalho, por mais edificantes que sejam as intenções dos economistas do sistema. Sem Revolução, não há solução.
Seguir a trilha pós-moderna das novas narrativas do valor equivaleria assim a uma condenação perpétua a ciclos de “diferença e repetição”, uma cômoda e bem-pensante, moralmente reconfortante deriva em que o sangue, o suor e as lágrimas da exploração capitalista tornam-se discursos, narrativas a partir das quais os comportamentos passariam a dançar ao ritmo de novas moralidades supostamente transgressoras mas afinal incapazes de mudar o real, por mais criativas que sejam as proposições heterodoxas na esfera simbólica. Sem uma teoria do valor-trabalho, sem o reconhecimento do Trabalho pelo Capital numa luta de vida e morte conducente a uma superação materialista das condições de vida e produção a sociedade está condenada ao eterno retorno do mesmo capitalismo.
Lembro de debates já um tanto antigos em torno do mote de Antônio Barros de Castro – “o capitalismo ainda é aquele” – mas essa é uma outra história.
Para Prado, a autora afasta-se da “tradição da economia política” que desde Adam Smith situa-se “no campo do saber científico ao tratar da questão do valor econômico” pois se trata de investigar “a objetividade social sem ficar apenas no modo como ela aparece”. É preciso ir à essência do valor, aos processos de abstração real determinados reflexivamente pela subordinação do trabalho. Evitando esse duro trabalho do Conceito, a Autora desloca a questão “do terreno duro da objetividade social para o campo fluido da filosofia moral”, mantendo nossas atenções “no interior do imaginário compartilhado socialmente”.
Nessa batida, por mais meritórios ou até bem-vindos os ataques ao rentismo e à destruição ambiental que ameaça a vida no planeta, ficamos ainda narrativamente sujeitos a concluir que “os ganhos recebidos por capitalistas industriais são ganhos legítimos, mas certos ganhos recebidos pelos capitalistas financeiros, não”. Sem ciência para fundamentar essa separação do trigo produtivista do joio especulativo, o ponto de fuga é o Estado, mais precisamente o “Estado empreendedor”, uma gigantesca máquina pública schumpeteriana voltada ao resgate do emprego, do investimento, da renda legítima e até da democracia por meio da inovação, das políticas industriais e mesmo fiscais expansionistas.
Doce e acomodada ilusão, que desloca o fetiche da mercadoria para uma feitiçaria heterodoxa que se imagina (e só mesmo no imaginário seria possível fabricar tal proposição) capaz de submeter o Capital ao Comum, a especulação sem fundo nem fim a uma nova era paradoxalmente amparada em inovação, regulação e propósitos.
Para Prado, esse novo fetiche heterodoxo promove a hipostasia do poder central como uma “figura” que orienta os mercados, compensa as desigualdades e arbitra a luta de classes cumprindo as funções de “guardião do progresso”.
O erro da heterodoxia estaria segundo Prado na projeção dos desejos revolucionários numa esfera meramente discursiva, já que o valor é posto “no interior do discurso que se gesta na sociedade e não no terreno da investigação científica sobre uma realidade posta historicamente”.
O golpe final e fatal sobre a Ideologia Francesa que animaria a heterodoxia inócua da Autora vem com a constatação de Prado sobre a natureza positiva da própria ideologia. Afinal, se “a realidade é já sempre simbólica, ela foi posta por meio de uma práxis material e, por isso, contém em si não apenas a sua verdade objetiva como também a sua própria ideologia”. Essa realidade, com sua essência e aparência, “deve ser investigada e exposta com o máximo rigor conceitual”. Mas como Mazzucato não pensa assim e “recusa o pensamento positivo”, está condenada a cair numa “suposta autonomia construtivista da linguagem”.
Nesse delírio (pós-keynesiano?), até o Estado seria capaz de criar valor e injetar na sociedade as bases de uma nova realidade produtivista que teria o dom de subsumir a anarquia especulativa e predatória que é da essência do capitalismo tal como ele realmente é – comprometido em sua origem pela apropriação indevida, percebida apenas pela análise científica da produção como usina de mais-valia, não de valores de uso.
Para a autora, no entanto, basta mudar a narrativa sobre a criação de valor, corrigindo comportamentos e juízos morais, para que o sistema mude na direção da sustentabilidade, da inclusão social e da criatividade contínua e eternamente diferenciadora, animadora do progresso na ordem capitalista.
O valor de Prado
Seria a heterodoxia pós-moderna? A aproximação entre teoria do valor e mito platônico convalida a tese de que ao defender políticas econômicas ou reformas no capitalismo estaríamos a reeditar o idealismo transfigurado em narratologia? Ou seria talvez a crítica à Autora nesses termos aplicável sobretudo ao próprio crítico?
Afinal, sustentar que uma teoria do valor científica é o requisito de uma crítica verdadeiramente radical lembra mais os procedimentos althusserianos da prática teórica que deixa intactas as estruturas em nome de um estruturalismo marxista, científico e radical do que supõe a mera referência a mitos e narrativas.
Se Prado reconhece que o Capital produz não apenas a materialidade das leis gerais da acumulação, mas também instaura um reino de fantasmagorias subjetivas e fetiches regulatórios como parte integrante de sua dinâmica estrutural, como separar o joio do trigo e sair em busca da essência “por trás” da aparência?
Ao fixar-se na apresentação (Darstellung), ou seja, na ordem de exposição de O capital, fazendo do capítulo 1, “A mercadoria”, a chave-mestra de interpretação da realidade concreta, histórica, marcada por práticas historicamente determinadas, não estaria o próprio crítico transformando a “ciência” de Marx numa aplicação retórica, linguística e idealista que, no limite, é tão ou mais dogmática, moralista e ideológica quanto a heterodoxia supostamente alheia às descobertas “científicas” da economia política desde Adam Smith?
A julgar por textos do próprio Prado e mesmo pela sua familiaridade com a adequada utilização do “método dialético” em “O Capital”, seria de esperar uma crítica menos essencialista à não-teoria do valor de Mazzucato (a referência é indispensável a Marcos Müller, publicado pelo próprio Prado).(3)
Persigamos a lúcida e atualizada apresentação dos limites da teoria do valor tal como formulada por Marx frente às transformações do capitalismo contemporâneo publicada pelo próprio crítico em sua página virtual.(4)
Em seu competente “aggiornamento” da lógica hegeliana rediviva na teoria do valor em Marx, Prado reconhece que os limites da narrativa original estão nela mesma postos na medida em que a superação da economia vulgar exige uma busca do equivalente-geral, uma determinação reflexiva no processo de produção que é indissociável de uma abstração tão real quanto o mais concreto e útil dos trabalhos.
A figuração fetichista ou mitológica é produzida pelo processo mais essencial de criação de valor e, enquanto objetividade, é indissociável de uma intersubjetividade (o que é bem diferente da recaída idealista, subjetivista ou “ultra-iluminista” característica da Ideologia Francesa tal como apresentada na já citada obra de Paulo Eduardo Arantes e na fundamental “Lógica da Desintegração” de Peter Dews).(5)
Retornemos ao marxismo aplicado de Prado e Guedes Pinto, aparentemente mais aberto ao reconhecimento do Estado e da política como elementos estruturais de determinação dos circuitos de valor no capitalismo pós-industrial.
Embora demarrando da Mercadoria como forma elementar da riqueza, ou seja, fundamentando sua análise histórica do capitalismo real em perspectiva hegeliano-marxista que não se resume a confundir valor com preço, valor de uso ou bens e serviços, a narrativa evolui para constatar que até mesmo na Grécia de Aristóteles (acompanhando Ruy Fausto), ou seja, antes do capitalismo industrial e portanto quando o trabalho era escravo e não existia mais-valia, o valor ao mesmo tempo é e não-é, ao mesmo tempo.
A questão é que naquela quadra não havia como projetar na sociedade o tempo de trabalho socialmente necessário, condição qualitativa indispensável à materialização do capital e à universalização de sua lógica de reprodução, monetização, acumulação, centralização e crise.
Ou seja, há trabalho e há valor, mas o valor não é posto pelo capital e, nessa condição, não tem como participar da dialética do reconhecimento que é a figura sem a qual inexiste consciência-de-si no escravo (figura fenomenológica hegeliana que inspira tanto Marx quando os próceres da Ideologia Francesa e da Teoria Crítica, como ensinam Arantes e Dews).
Portanto há, de fato, um ponto em comum a celebrar na mitologia pós-keynesiana e schumpeteriana, na Ideologia Francesa e na Teoria Crítica. É na transfiguração monetária da acumulação capitalista que se projetam as esquizofrenias especulativas igualmente apontadas por Marx, Keynes, Schumpeter e até Kalecki.
A possibilidade de crise é irmã da possibilidade de Estado, de esfera pública, de intersubjetividade e de transformação do capitalismo. Para chegar a tanto e ser mais tolerante com Mariana Mazzucato, Prado precisa apenas ler mais…Prado.
*Gilson Schwartz é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da FFLCH da Universidade de São Paulo (USP).
Notas
(1) Schwarz, R., Resposta a Gerard Lebrun, Revista Discurso, USP, disponível em https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37888/40615
(2) Arantes, P.E., Ideias ao léu: uma digressão a propósito de O Avesso da Dialética, pp.181-203, in Formação e Desconstrução, Uma Visita ao Museu da Ideologia Francesa, Duas Cidades/Editora 34, São Paulo, 2021.
(3) Müller, M., Exposição e Método Dialético em “O capital”, mimeo, disponível em https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2015/09/muller-exposic3a7c3a3o-e-mc3a9todo-dialc3a9tico-em-marx.pdf
(4) Prado, E.F.S., Guedes Pinto, J.P., Limits of the value and the capitalism, mimeo, disponível em https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2012/04/download-21.pdf
(5) Dews, P., Logics of Disintegration, Post-Structuralist Thought and the Claims of Critical Theory, Version, London, 1987.