A irracionalidade da guerra às drogas

Imagem: Josh Hild
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARCOS FERREIRA DE PAULA*

Nos países em que a guerra às drogas continua, as atividades do narcotráfico só crescem, o número de consumidores só aumenta, e a corrupção é cada vez maior

“O abuso de drogas é o inimigo público número um dos EUA. Para lutar e vencer esse inimigo, é necessário empreender uma nova ofensiva total” (Richard Nixon, junho de 1971).

“A guerra global contra as drogas fracassou, com consequências devastadoras para indivíduos e sociedades ao redor do mundo” (ONU, Global Commissionon Drug Policy, Relatório Anual, 2011).

“A guerra às drogas é um prejuízo mortal. Ela é muito pior do que qualquer outro efeito que se possa pensar. Nós temos que pensar seriamente nisso, com responsabilidade, com cuidado. Mas eu acho que a guerra às drogas, a forma com que se combate as drogas, causa um prejuízo irreparável na sociedade brasileira” (Sílvio Almeida, entrevista à BBC News Brasil, março de 2023).

Por um debate público sobre a legalização das drogas

Recentemente, o atual ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Sílvio Almeida, defendeu que o STF retome uma ação parada na corte desde 2015, que trata do tema da descriminalização das drogas.[1] É verdade que todo o obscurantismo reacionário, que vivemos sobretudo nos últimos sete anos, ainda não passou, mesmo após a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro no final de 2022. Mas por isso mesmo é tão importante colocar na agenda pública um debate racional sobre temas como este.

Sílvio Almeida sabe que a sociedade brasileira (ou pelo menos a maior parte dela) não está preparada para a legalização das drogas. Perguntado sobre isso, ele respondeu: “Não está preparada, mas é tarefa do Estado brasileiro, do governo brasileiro, preparar a sociedade para isso, uma vez que estamos falando de ciência. Não é uma questão de achismo. Não é uma opinião”. Talvez como a exceção do Canadá, país onde a maconha é totalmente legalizada, qual sociedade estaria hoje preparada para discutir a questão com cuidado, tranquilidade e racionalidade?

Um simples exercício de imaginação

Imagine você se há cerca de 60 anos vários países decidissem investir pesadamente nos sistemas públicos de saúde e declarassem “guerras às doenças”. Imagine vários chefes de estado, autoridades de saúde, líderes religiosos, publicitários, imprensa, canais de TV, especialistas em saúde pública, médicos, professores, mães, pais – enfim, imagine todo mundo repetindo e propagando, quase em uníssono, a ideia de que é preciso acabar com as doenças, erradicá-las, criar um “mundo totalmente livre das doenças”, porque elas seriam um verdadeiro demônio que é preciso extirpar do planeta, “um demônio que está acabando com a vida de nossos filhos!”.

Então imagine esses países investindo bilhões e bilhões em política pública, envolvendo batalhões de profissionais de saúde colocados na linha de frente da guerra para combater o mal, equipados com armas cada vez mais poderosas, com instrumentos e aparelhos médicos cada vez mais sofisticados, e com remédios e modalidades de tratamento cada vez mais potentes e acessíveis devido ao gigantesco complexo industrial da saúde.

Mas imagine que, após quase meio século adotando essa mesma política, com pequenas variações e ajustes ao longo do tempo, esses países vissem, a cada ano, aumentar o número de pessoas mortas ou doentes, assim como o de novas doenças, com hospitais superlotados, cada um com apenas três leitos para cada seis internados, metade deles tendo que ser tratado no corredor do hospital.

Imagine também que, no entanto, vários estudos mostrassem que quanto maiores os gastos em saúde e quanto maior a intensificação da “guerra às doenças”, maior o número de mortos, doentes e novas doenças. E, por fim, imagine se, mesmo assim, a cada ano os governantes, os partidos políticos, as autoridades de saúde e boa parte da grande mídia corporativa desses países continuassem a defender a mesma política de “guerra às doenças” para derrotar “o demônio que está acabando com as famílias e a vida dos nossos filhos”.

Não seria algo muito irracional? Não seria irracional investir pesadamente numa política pública que recebesse cada vez mais recursos para aumentar cada vez mais o problema que ela busca diminuir ou erradicar?

Pois bem, é exatamente isso, ou quase, o que vem ocorrendo desde 1961, quando vários países assinaram na ONU a Convenção Única sobre Drogas Narcóticas, e sobretudo a partir de 1971, quando assinaram, também na ONU, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas. Assinando esses acordos, vários países signatários, como o Brasil, comprometiam-se a implementar políticas de “guerras às drogas”.

Na América Latina e em diversas outras partes do mundo, essa guerra se intensificou nos anos 1990. E desde então, nos países em que a guerra às drogas continua, as atividades do narcotráfico só crescem, o número de consumidores só aumenta, e no Estado – policiais, juízes, funcionários públicos, políticos, governantes –, assim como nas empresas privadas (de pequenas empresas de transporte coletivo a grandes bancos, passando por postos de gasolina), a corrupção é cada vez maior.

É uma guerra sem sentido. E sem fim – porque do outro lado da oferta dos produtos pelos traficantes está a demanda dos consumidores, e esses consumidores fazem parte de uma longa linhagem de seres humanos que há pelo menos 5 mil anos utilizam substâncias psicoativas para diversos fins, dos medicinais aos recreativos, passando pelas finalidades religiosas. Há milênios muitas dessas substâncias psicoativas, principalmente a canábis, estão entre nós; há milênios nós, humanos, fazemos usos delas, e não há nenhum indício de que vamos parar.

A guerra que fortalece o inimigo

Le roy est mort. Vive le roy!”. Era o que se proclamava, no final da na Idade Média, quando um rei morria, para lembrar a todos que outro rei deveria entrar imediatamente no lugar dele. Um rei podia ter uma vida breve, mas a linhagem dos reis deveria sempre ter vida longa – cai um, outro sobe ao trono. Quando o então Pablo Escobar foi morto em 2 de dezembro de 1993, o Cartel de Cáli já estava pronto para assumir o lugar do Cartel de Medellín nos lucrativos negócios da coca exportada para os Estados Unidos e outras partes do mundo. Quando um “rei da coca” é morto, podemos estar certo de que outro já estará em seu lugar.

Agentes da DEA, a Agência de Fiscalização de Drogas (Drug Enforcement Administration) dos EUA, já estavam na Colômbia desde o final dos anos 1970, realizando operações de combate ao narcotráfico. Estados como o da Flórida e da Califórnia estavam entre os principais consumidores da coca colombiana. Os Estados Unidos queriam destruir o principal produtor, para que a coca não entrasse no país. Sonhavam “cortar o mal pela raiz”. Mas não era só uma questão de entrada da coca vinda da Colômbia: era também um problema de saída dos dólares dos Estados Unidos fluindo para o país de Pablo Escobar. Para os EUA, era preciso acabar com aquele negócio. Negócios de Estado…

Após quase uma década de intensificação da guerra contra o Cartel de Medellín, a revista Forbes revelava ao mundo, em sua lista de bilionários de 1989, que Pablo Escobar era o sétimo homem mais rico do planeta, com uma fortuna estimada em 25 bilhões de dólares. Mas a Forbes só começou a publicar seus rankings a partir de 1987. Escobar já era, portanto, muito rico antes disso, e permaneceu assim até sua morte, figurando nos rankings dos mais ricos da Forbes até o ano de sua morte, em 1993. A guerra às drogas só aumentou a fortuna de Escobar. Fortaleceu seus negócios e aumentou seu poder político e tirânico.

Como alguns tiranos, ele atraiu os mais pobres, construindo um bairro de casas para eles em Medellín. Mas também, como um tirano digno de sua fama, enquanto a Forbes o figurava entre os mais ricos do mundo, Escobar mandava explodir o voo 203 da Avianca, matando mais de cem pessoas em 1989. Quatro anos antes, quando a Colômbia tentava criar uma lei de extradição de narcotraficantes colombianos para os Estados Unidos, ele havia mandado assassinar metade dos juízes da Suprema Corte. Guerra, dinheiro, mortes – como se vê, o endurecimento do combate ao narcotráfico na Colômbia só fortaleceu o poder econômico e político de Escobar.

Não é um fenômeno difícil de entender. Existe pelo menos uma correlação causal entre guerra às drogas e fortalecimento do narcotráfico, e ela diz respeito à relação econômica entre oferta e demanda. Os chefes do narcotráfico são, antes de tudo, homens de negócio; eles querem dinheiro e se organizam para ganhá-lo. À medida que a guerra às drogas se intensificou na Colômbia, o preço da coca subiu nos Estados Unidos. Isso tornou o negócio ainda mais atrativo: os lucros ficam tão altos que compensam os riscos e sobra verba para corromper policiais e outros agentes públicos.

O que ocorreu nos anos 1980 seguiu-se também nos anos 1990, com a intensificação ainda maior da guerra às drogas, para além das fronteiras colombianas. Enquanto na Colômbia a guerra se travava por ataques aéreos, com as fumigações de plantação que se iniciaram em 1994 – não sem consequências nocivas ao meio-ambiente –, o preço da coca subia nos Estados Unidos, com propriamente com a diminuição da oferta, mas com a contabilização do aumento dos riscos.

Na década de 1980, a Colômbia produzia 80% da cocaína do mundo. Era a maior produtora da droga. Após décadas de guerra ao narcotráfico, ela ainda é a maior produtora de cocaína, responsável por 70% do total. Um sucesso na redução de 10%? Nem sequer isso. A guerra às drogas não diminuiu a produção global de cocaína, apenas a descentralizou. Agora a Colômbia tem que competir com outros grandes centros produtores, sobretudo com o México, para onde parte da produção se deslocou, à medida que a repressão se intensificava sobre os cartéis colombianos de Medellín e Cali, a partir dos anos 1980.

Relatórios da ONU dos anos 2000 já mostravam que a produção e o consumo de drogas aumentam a cada ano que passa. Mas, após tantas mortes e resultados contraproducentes, nos anos 2000 a Colômbia ainda gastava 3% do PIB com seu Ministério da Defesa,[2] encarregado do financiamento e execução da guerra às drogas. Os Estados Unidos, desde que iniciaram uma guerra cujos corpos caem do lado de fora de suas fronteiras, já gastaram mais de 1 trilhão de dólares. É muito dinheiro para aumentar o problema que se quer diminuir. É irracional.

Erramos

O auge dessa guerra ocorreu nos anos 1990. Bill Clinton era o presidente nos Estados Unidos; Fernando Henrique Cardoso (FHC), no Brasil; César Gavíria, na Colômbia. Em 2011, no documentário Quebrando Tabu, uma palavra está presente, implícita ou explicitamente, no depoimento de todos eles: “Erramos”.

Fernando Henrique, personagem principal do documentário, admite ter errado em sua política de combate às drogas e atribui o erro antes de tudo à sua própria falta de informação e consciência sobre a complexidade do problema. Bill Clinton também diz claramente, “Errei”. Sua confissão é ainda mais pungente, porque, revelando ter à época um irmão viciado em cocaína, ele admite que sua administração foi contra não só ao uso medicinal da maconha, como também à distribuição de seringas descartáveis, para “não passar a mensagem errada” de que o governo estaria estimulando o uso de drogas.[3] Naquele momento, muitos viciados em drogas injetáveis estavam se contaminando com o vírus da Aids, o HIV.

É realmente incrível como um consenso em torno de uma visão das drogas como algo demoníaco pode cegar até mesmo grandes lideranças políticas. A fé, afinal, cega – há algo de religioso, nisso. Também a Igreja Católica foi inicialmente contra a distribuição de camisinhas para conter a disseminação do HIV, com receio de que isso “passasse a mensagem errada” de que a Igreja era a favor de relações sexuais livres fora do sagrado matrimônio.

César Gavíria, por sua vez, revela no documentário o quanto a guerra às drogas na Colômbia não só não resolveu, mas aumentou o problema: “Fumigações destroem plantações e alimentos. É muito traumático para a sociedade colombiana esse tipo de destruição de plantações. Quando o Plano Colômbia começou, havia plantações de coca em oito Estados. Hoje são 24 ou 28 Estados, alguma coisa assim. Mais que triplicou”. E, ainda, causou danos ao meio ambiente… Em outras palavras, “errei” – e continuamos errando.

Um ex-deputado do Partido Republicano, Jim Kolbe, também reconhece, no documentário, o insucesso do confronto. “A guerra às drogas é um fracasso”, ele diz. Mas antes mesmo desses reconhecimentos públicos que atestam o malogro das políticas públicas de drogas na década de 1990, a guerra contra as drogas já era um fiasco, como sempre foi. No mesmo documentário, outro ex-presidente, Jimmy Carter, que governou os Estados Unidos entre 1977 e 1980, reconhece o desperdício e a ineficácia da guerra às drogas: “Houve um enorme desperdício de dinheiro e bilhões de dólares foram gastos sem grandes retornos. Na maior parte dos casos, as iniciativas foram ineficientes”.

Encarcerar: o inferno do lado de dentro

As políticas públicas de combate às drogas têm como um de seus efeitos necessários o aumento da população carcerária. Nos Estados Unidos, país que há décadas financia a guerra às drogas dentro e fora de suas fronteiras, ela é a maior do planeta, tanto em números absolutos quanto relativos, com quase 2 milhões de pessoas encarceradas (antes de 2009, o número era maior e vem caindo desde então, ainda que muito lentamente, a partir de algumas iniciativas de redução da população carcerária estadunidense).

Costuma-se citar a China em segundo lugar, com cerca de 1,6 milhões de detentos. Em números absolutos, a posição se justifica – mas neste caso a China é vítima de sua superpopulação. Se levarmos em conta que em toda sociedade se cometem crimes, a China não está, proporcionalmente, entre os países que mais prendem: o país tem mais de 1 bilhão e 400 milhões de habitantes, enquanto os Estados Unidos têm cerca de 330 milhões. A República Popular da China, um país dirigido pelo PCC (sim, o PCC, Partido Comunista Chinês), tem, portanto, uma população quase cinco vezes maior que a dos EUA e prende proporcionalmente quatro vezes menos que a Land of the free.

No Brasil, a população a carcerária era de 114 mil em 1992, quando a guerra às drogas começou para valer. Vinte anos depois, o país já tinha 550 mil detentos, ao final de 2012 – um aumento de 480%![4] O Brasil, em números absolutos, tem a terceira maior população carcerária, com cerca de 837 mil detentos (dados do Infopen de 2022).[5] Mas, pelo mesmo raciocínio, considerando que somos 211 milhões de habitantes, prendemos proporcionalmente 3 vezes mais que a China.

Essas comparações, aliás, podem ser melhor visualizadas quando se comparam as taxas de prisões por cada 100 mil habitantes: os EUA tem uma taxa de 655 para cada 100 mil; no Brasil a taxa é de 384; na China ela é 121, uma taxa muito próxima de países que não costumam ser considerados entre os que mais prendem, como Canadá (107), França (104) e Espanha (124); nesse aspecto, aliás, a China está abaixo de países como a Inglaterra, que tem uma taxa de 134 presos para cada 100 mil habitantes.[6]

Os presídios no Brasil, como se sabe, estão quase todos lotados. Em média, a taxa de ocupação das prisões brasileiras é de 200% – elas têm o dobro do número de presos que poderiam ter. Nelas, os presos por tráfico de drogas correspondem a mais de 30% dessa massa encarcerada. Nos presídios femininos, a situação é ainda pior: 60% das detentas foram presas por tráficos de drogas – boa parte delas em flagrante, apenas por levar “drogas” para seus companheiros… presos. Mas nós sabemos que mesmo assim a droga entra nos presídios – e não só no Brasil. “Não existe prisão no mundo que não tenha drogas. Todas elas têm”, dizia o Dr. Dráuzio Varela, ainda em Quebrando tabu, há mais de 10 anos. Ele atendeu nas cadeias por mais de 30 anos.

Mas as cadeias não são apenas um bom lugar para se ter contato com as drogas. Elas são boas também para entrar em contato com o crime organizado. O PCC (Primeiro Comando da Capital), principal organização criminosa que tem no tráfico de drogas sua maior fonte de renda, só aumentou seu poder e sua presença no país, desde que nasceu em 1996. E o PCC nasceu dentro da penitenciária de Taubaté, no interior de São Paulo, como resultado de uma política penitenciária que parece ser antes de tudo regida por uma moral punitivista segundo a qual a vida dos presos nas prisões tem que ser um inferno – é como se a sociedade dissesse: “Criminosos são pecadores e pecadores devem ir para o inferno”. Mas tornar infernal a vida nas prisões significa desrespeitar os direitos humanos, a Constituição e, é claro, a própria pessoa humana, sua dignidade.

Uma boa parte dos presos e presas por tráfico são pegos portando pouca quantidade de drogas. A Lei de Drogas de 2006 buscou estabelecer uma diferença entre usuário e traficante, a fim de criminalizar e penalizar ambos diferentemente – para o traficante, penas pesadas, como alguns anos de prisão numa penitenciária; aos usuários, penas mais leves, como medidas sócio-educativas, prestação de serviços à sociedade ou uma simples advertência. O problema é que a lei não deixa objetivamente clara a distinção entre traficante e usuário, porque não define a quantidade e a qualidade da droga portada que caracterizem um e outro. Se um usuário for pego com uma determinada quantidade e variedade de drogas, pode ser acusado de tráfico – e dependendo do inquérito policial, assim como do juiz ou da juíza, poderá ser indiciado e condenado como traficante.

Muitos são detidos preventivamente e muitas vezes chegam a esperar pelo julgamento por mais de um ano. Há no Brasil quase 235 mil pessoas nesta condição, e pesquisas recentes estimam que quase 40% delas são consideradas inocentes ao final do julgamento – cerca de 95 mil pessoas estão presas e não deveriam estar lá! Não é só a privação de liberdade, o que elas sofrem. Na maior parte dos presídios, é também a dignidade humana o que elas muitas vezes perdem, porque as condições nas cadeias brasileiras são frequentemente o lugar onde mais se desrespeitam os direitos humanos.

Pobres e pretos: o inferno do lado de fora

O encarceramento em massa de muitos usuários de drogas e pequenos funcionários do tráfico não gera um inferno apenas dentro das prisões. Do lado de fora, a população mais pobre e preta das periferias e favelas sofre duramente os efeitos mais diretos da guerra. No dia 18 de maio de 2020, por exemplo – mas é só um exemplo, dentre tantos outros –, nós vimos o que aconteceu: um adolescente foi morto por forças especiais da Polícia Federal e da Polícia Civil, numa das favelas do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, um município situado a 22 km da capital do Rio de Janeiro.

João Pedro Mattos Pinto tinha apenas 14 anos, era evangélico, como muitos em seu bairro, e estava em sua casa com seus pais. Estudava, jogava videogame, como muitos de sua idade. As forças policiais entraram na favela com um mandado de busca e apreensão contra chefes locais do tráfico. Na versão dos policiais, eles foram recebidos com granadas pelos seguranças dos traficantes, que correram por entre as habitações precárias da favela, como costuma ocorrer nessas situações, e os bandidos teriam entrado na casa de João Pedro. “A polícia chegou lá de uma maneira cruel, atirando, jogando granada, sem perguntar quem era”, disse o pai do menino.Quando viram que João Pedro estava baleado, os policiais acionaram o helicóptero e levaram João Pedro. Não disseram para onde iriam. Os parentes passaram 17 horas sem saber onde e como João estava. Um primo usou as redes sociais para tentar obter informações sobre João. Naquela noite, o caso repercutiu no Twitter, inclusive em perfis de famosos. Na manhã seguinte, uma terça-feira, os policiais informaram a família sobre como e onde estava João: morto, no IML de Tribobó.

Exemplos como o de João Pedro se multiplicam. São os corpos que tombam na guerra. Três dias antes da repercussão de seu caso, policiais do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) entraram numa das favelas do Complexo do Alemão, que fica na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Após uma denúncia anônima, queriam apreender oito fuzis de traficantes de drogas. Seis homens foram mortos num mesmo local. Moradores suspeitaram de que teria havido execução – uma chacina. Outros sete supostos traficantes, incluindo um chefe local, foram mortos no confronto ou a caminho do hospital. Uma nota pública da Polícia Militar do Estado afirmou que os policiais teriam sido recebidos com tiros e granadas pelos traficantes – e admitiu terem sido mortos “apenas” dez jovens, dos quais cinco seriam criminosos do tráfico. Nessa operação, segundo a nota, os policiais apreenderam algumas drogas, 85 granadas e os oito fuzis. Não diz que quando os policiais foram embora deixaram para traz um rastro de 13 pessoas mortas.

O barulho dos tiros, o som das metralhadoras, as explosões de granadas, os corpos caindo no chão – para a população preta e pobre das favelas e periferias, guerras às drogas não é metáfora, é realmente uma guerra. E uma guerra sem trégua: quando esses casos e vários outros ocorreram, naquele mês de maio de 2020 no Rio de Janeiro, o país começava a entrar no seu primeiro pico da pandemia do coronavírus (Covid-19), com quase 300 mil casos e 20 mil mortes pela doença – mesmo com subnotificação, o Brasil já era então o segundo país com maior número de mortes, atrás apenas dos Estados Unidos. E os números só aumentavam. Ainda assim, o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e a Polícia Federal não interromperam suas operações de guerra.

No dia 20 de maio, na Cidade de Deus, bairro da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, outro jovem de 18 anos também foi morto pela polícia. O jornalista, Fernando Brito escreveu: “Outro garoto negro foi morto numa ação policial injustificável, em meio ao terror de uma pandemia: uma invasão bélica na Cidade de Deus, justo no momento em que se distribuíam cestas básicas àquele povo abandonado por todos”.[7]

O STF chegou a proibir operações de combate ao narcotráfico nas favelas durante o período da pandemia. Inicialmente, em 5 de junho de 2020, a decisão foi tomada em caráter liminar, pelo ministro Edson Fachin; posteriormente, ela foi confirmada pelo plenário, em 5 de agosto. No entanto, a decisão deixava aberta a possibilidade de realização de operações em casos “absolutamente excepcionais”, desde que “devidamente justificados” e tomando-se os devidos e necessários cuidados sanitários em virtude da pandemia. Talvez com base nessa brecha legal, operações policiais continuaram a ser realizadas, num desrespeito à decisão do Supremo. Mais mortes e prisões ocorreram. Uma dessas operações da polícia, não custa relembrar, deixou 28 mortos na favela do Jacarezinho, em 6 de maio de 2021, na que foi considerada a mais letal das operações policiais no Rio de Janeiro.

Em sua História da Guerra do Peloponeso, Tucídides narra as aflições da população de Atenas, atingida em 430 a.C. por uma epidemia (varíola ou tifo, segundo os estudiosos) que teria vindo da Etiópia. Naquela época, os gregos da Liga do Peloponeso, liderada por Esparta, decidiram dar uma trégua e interromper a guerra. Poderiam ter-se aproveitado da fragilidade dos atenienses por causa da epidemia. Mas talvez fossem mais humanos, sensíveis e civilizados do que corporações policiais, governadores e presidentes da extrema direita brasileira da segunda década do século XXI…

*Marcos Ferreira de Paula é professor do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Notas


[1] A declaração foi feita numa entrevista BBC News Brasil. “Ministro de Lula quer debate sobre descriminalização de drogas para reduzir população carcerária”, Leandro Prazeres, BBC News Brasil, Brasília, 7 de março de 2023. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c036d04n6ezo.

[2] VALENCIA, Léon. Drogas, conflito e os EUA. A Colômbia no início do século. São Paulo. Revista ESTUDOS AVANÇADOS, vol. 19, no. 55, set./dec. 2005.

[3] BURGIERMAN, Denis R. O fim da guerra: a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com a se drogas. São Paulo: Leya, 2011.

[4]WASSERMANN, Roberio. BBC Brasil em Londres. “Número de presos explode no Brasil e gera superlotação de presídios”. BBC Brasil em Londres, 28-12-2012.

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/12/121226_presos_brasil_aumento_rw.shtml.

[5] As informações são do Banco de Monitoramento de Prisões do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), atualização de 2022.

[6]Exceto a taxa referente ao Brasil (ver nota de rodapé anterior) os dados são da WPB – World Prision Brief, da Universidade de Londres: https://www.prisonstudies.org/world-prison-brief-data.

[7]BRITO, Fernando. São Paulo. Diário do Centro do Mundo.

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-nos-e-preto-mano-o-desabafo-de-um-homem-com-mais-uma-execucao-de-crianca-em-favela-do-rio/.


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Salem Nasser Tadeu Valadares Rubens Pinto Lyra Jorge Luiz Souto Maior Francisco Pereira de Farias Kátia Gerab Baggio Gilberto Maringoni João Lanari Bo Luiz Carlos Bresser-Pereira Jorge Branco Marcelo Guimarães Lima Airton Paschoa Denilson Cordeiro Slavoj Žižek Mário Maestri José Raimundo Trindade Andrés del Río Bruno Fabricio Alcebino da Silva Vladimir Safatle Luciano Nascimento Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Capel Narvai Celso Frederico Alexandre Aragão de Albuquerque Lincoln Secco Heraldo Campos Francisco Fernandes Ladeira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ricardo Musse Claudio Katz Ari Marcelo Solon Chico Alencar Ricardo Fabbrini Paulo Martins Luiz Eduardo Soares Michel Goulart da Silva Yuri Martins-Fontes Gilberto Lopes Flávio Aguiar Ronald León Núñez Alysson Leandro Mascaro José Micaelson Lacerda Morais José Costa Júnior Boaventura de Sousa Santos Bento Prado Jr. Eleutério F. S. Prado Henry Burnett Sandra Bitencourt Igor Felippe Santos Juarez Guimarães Manchetômetro Bernardo Ricupero André Singer Bruno Machado José Geraldo Couto Michael Löwy Thomas Piketty Berenice Bento Marcelo Módolo Fábio Konder Comparato Alexandre de Lima Castro Tranjan Valerio Arcary Matheus Silveira de Souza Luiz Bernardo Pericás Andrew Korybko Luiz Renato Martins Jean Pierre Chauvin José Luís Fiori Paulo Nogueira Batista Jr Tarso Genro Leonardo Boff José Dirceu Marcos Silva André Márcio Neves Soares Ronaldo Tadeu de Souza Atilio A. Boron Eduardo Borges Afrânio Catani Manuel Domingos Neto Julian Rodrigues Lorenzo Vitral João Sette Whitaker Ferreira Milton Pinheiro Chico Whitaker João Adolfo Hansen Otaviano Helene Érico Andrade Benicio Viero Schmidt Daniel Costa Ladislau Dowbor Dênis de Moraes Annateresa Fabris Luis Felipe Miguel João Carlos Salles Luiz Roberto Alves Vanderlei Tenório Daniel Afonso da Silva Rodrigo de Faria Marcos Aurélio da Silva Ronald Rocha Gabriel Cohn Lucas Fiaschetti Estevez Celso Favaretto Daniel Brazil Fernão Pessoa Ramos João Paulo Ayub Fonseca Luiz Werneck Vianna Marjorie C. Marona Leonardo Sacramento Paulo Fernandes Silveira Marcus Ianoni Carlos Tautz Carla Teixeira Fernando Nogueira da Costa Everaldo de Oliveira Andrade Leda Maria Paulani Valerio Arcary Antonio Martins Anselm Jappe Priscila Figueiredo Antônio Sales Rios Neto Armando Boito Gerson Almeida Flávio R. Kothe Vinício Carrilho Martinez Mariarosaria Fabris Osvaldo Coggiola Renato Dagnino Maria Rita Kehl Eliziário Andrade Leonardo Avritzer Dennis Oliveira Ricardo Abramovay Eugênio Bucci Remy José Fontana Antonino Infranca Eugênio Trivinho Tales Ab'Sáber Marilena Chauí Samuel Kilsztajn Jean Marc Von Der Weid Ricardo Antunes Francisco de Oliveira Barros Júnior Eleonora Albano Rafael R. Ioris Michael Roberts Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Feres Júnior Sergio Amadeu da Silveira Henri Acselrad João Carlos Loebens José Machado Moita Neto Elias Jabbour Liszt Vieira Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Marques Walnice Nogueira Galvão Caio Bugiato Paulo Sérgio Pinheiro Luís Fernando Vitagliano

NOVAS PUBLICAÇÕES