Por GUSTAVO FALCON*
Comentário sobre o livro de Emiliano José
O terror instalado
A década de 1970 foi, com certeza, a mais difícil e violenta do regime de exceção implantado no país pelo Golpe Militar de 1964. Sob a Presidência do truculento general Emílio Garrastazu Médici, a ditadura se excedeu. Prendeu milhares de pessoas que se opunham ao arbítrio, processou milhares de pessoas por subversão e assassinou centenas de militantes políticos de esquerda ou simpatizantes a eles ligados.
Horror. Essa é a palavra apropriada para definir essa quadra. Para a cultura, para as artes, para a educação, para o livre exercício da política, para quaisquer instâncias institucionais que resolvessem violar os limitados espaços de liberdade impostos pelos famigerados atos institucionais. Conjunto de artifícios jurídicos que buscavam legitimar a ordem de exceção.
Censura e intimidação emparedaram a intelectualidade, músicos, cineastas, pessoal de teatro e da cultura dificultando a vida e a obra de todos que trabalhavam nessas áreas. E não só aí. Templos religiosos, clubes de futebol, associações classistas, órgãos públicos e empresas eram cooptados e fiscalizados permanentemente.
Esses tristes anos atingiram brutalmente a liberdade de expressão e causaram duro estrago à Imprensa livre tornando empresários e jornalistas vassalos dos censores e militares. A ampla propaganda institucional e a espionagem se somavam para intimidar e acovardar os que se opusessem ao regime. Terror, foi o que se implantou no país e o que se atribuiu aos seus opositores.
Todos pagamos uma conta bem cara por essa década de opressão e medo. Mas não deixamos de viver as nossas vidas, comprimidas, abafadas, restritas, mas ansiosos por mudanças e liberdade.
É nesse cenário difícil do Brasil da última quadra do século passado que Emiliano José, uma dessas pessoas atingidas em cheio pela máquina repressiva, vai (se) contextualizar a vida de 18 profissionais da imprensa baiana que mantendo alguma espécie de ligação com a esquerda viveram na pele essa dura experiência da época da ditadura, sofrendo perseguições, lutando pela sobrevivência e fazendo o possível para transformar as suas atividades em instrumento pela redemocratização do país.
Ao resgatar a trajetória desses profissionais, o autor – amplamente conhecido pelas suas publicações que já somam mais de 20 livros, alguns de sucesso, traça um amplo painel do jornalismo baiano e do imenso esforço dos seus protagonistas para se mover num espaço minado, restrito e vigiado que, vez por outra, era invadido e violado pela repressão, bastasse para isso desconfiar de alguma intenção escusa ou destoante nas matérias noticiosas ou editoriais julgados suspeitos.
Emiliano José traz de volta a memória dos personagens da época, introduz suas observações e reconstitui a vida nas redações dos principais veículos da Imprensa escrita da Bahia (A Tarde, Jornal da Bahia, Tribuna da Bahia e Bahia Hoje), usando como pretexto para a reconstituição um grotesco relatório de um araponga que informava aos órgãos de segurança o dia-a-dia dos colegas. Hilário e repugnante. Graças aos céus, apócrifo.
Despido da roupagem acadêmica e com forte tom pessoal, o jornalista trabalha com seus pares a dura conjuntura numa agradável narrativa que por suas características se aproxima da linguagem coloquial fixando a atenção do leitor. Acentuando sempre suas impressões marcadas pela dupla posição de jornalista e militante. Um a zelar pelo apuro e outro pela opinião explícita, desavergonhada. Franca e convincente.
O fetiche baiano
Resultou do estado de horror implantado, uma legislação fascista que permitia à ditadura a nomeação de governadores e prefeitos, ao invés da eleição pelo voto direto. Concedeu-se às assembleias estaduais a ratificação dos nomes indicados pelos militares. Assim foram eleitos os governadores do período autoritário que eram prepostos de confiança da ditadura.
O engessamento autoritário contrastava contudo com amplo processo de modernização conservadora que sucedeu os planos nacionais de desenvolvimento do período militar, a cargo de economistas liberais como Roberto Campos e Delfim Neto. Programas que, em suma, resultaram no “milagre brasileiro”.
No caso da Bahia, desde os anos 1950 a ação persistente de homens como Rômulo Almeida que propugnaram pelo planejamento estatal como instrumento de mudança social, já havia colocado na ordem do dia a semente da modernização como meio de superação do marasmo da economia agro-exportadora.
O fetiche que bloqueava o salto da Bahia do agrarismo para uma sociedade moderna começou a ruir quando sob o influxo do golpe militar e dos incentivos da Sudene, o estado adentrou o ciclo industrial com o Centro Industrial de Aratu. Ciclo aprofundado com o polo petroquímico que traz além de investimentos bilionários novidades no horizonte social com o surgimento de um expressivo contingente operário local.
O crescimento dos investimentos, da renda, a mudança da estrutura produtiva e simultaneamente a modernização do aparelho do Estado com a reforma administrativa, bem como a urbanização acelerada da área metropolitana, inovam em muito a pacata cidade de Salvador.
Essa modernização conservadora e seus maciços investimentos introduzem enorme mudança de valores no ethos local. A província se renova e a imprensa nacional se volta para esse novo polo de crescimento e seus novíssimos atores. Chegam ou se reforçam as sucursais dos grandes veículos nacionais.
Resumindo o assunto, resulta de todo esse processo de transformação, de urbanização e mudança de mentalidade, uma sociedade nova que, saída da velha, com ela dialoga e convive.
A implantação empresarial e os valores modernos surgidos com o mundo do trabalho assalariado como forma dominante e as trocas intensas no mercado de trabalho colocam em cena novos atores. De um lado, empresários interessados em explorar cada vez mais novas oportunidades. De outro, um contingente cada vez maior e organizado de trabalhadores. Nos mais variados setores. Inclusive na imprensa. Na base e no centro, um Estado que apesar do entulho autoritário é obrigado a se modernizar para acompanhar a dinâmica social.
Bem no centro desse processo, estavam os personagens de Emiliano Jose, testemunhando, noticiando, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos. Premidos pela falta de liberdade. Livres por sua autonomia intelectual e comprometidos com a liberdade de expressão que, cerceada não era, no entanto, totalmente bloqueada. Lutando pelo pão de cada dia e, ao mesmo tempo, de olho no processo de modernização, este sim, dificultado pelo paradoxal entulho que teimava em existir, mas cujo final estava visivelmente na linha do horizonte. E como esse sol demorou a raiar…
Não resta dúvida, a modernização conservadora no Brasil e na Bahia produziu perversões de toda ordem. É fato. Mas assegurou coisas inimagináveis naqueles anos. Quem seria capaz de prever que um líder operário dos anos 1980 viraria Presidente eleito nos anos 2000? E que um operário do pólo nos anos 1970 se tornaria governador da Bahia em 2007?
Nenhum de nós, por mais bem informados que fossemos ou mais eruditos que pudéssemos ser. Tudo isso vamos colocar na conta do fetiche baiano.
A notícia, uma mercadoria. O jornalista, um trabalhador.
Somos, como o presidente e o governador da Bahia, frutos dessa vívida e paradoxal conjuntura da década de 1970. De um lado, modernização econômica. De outro, autoritarismo político. É o que dizem os depoimentos de todos os personagens de Emiliano. Produtores de notícias, trabalhadores da imprensa. Mas somos a um só tempo criadores e cidadãos.
Os declaradamente comunistas trabalhando essa ambígua situação com a destreza que o método permitiu. Prezando a informação, valorizando a veracidade, buscando explicar o fato com acuro e honestidade. Mas qual de nós poderia esconder no fundo de nossa subjetividade tão ultrajada nossas preferências? Quem sabe, como deixa entrever o autor desse Os comunistas estão chegando, tenhamos achado na dita imprensa alternativa não apenas um espaço maior de liberdade como também o direito de escrever nossos textos na primeira pessoa. Recurso que se opunha a impessoalidade do texto industrial.
O impressionante desse novo livro de Emiliano José é o fato de que um venal araponga tenha colaborado ainda que involuntariamente para trazer de volta tão significativas figuras da sociedade baiana. Tão vivas. Tão inteiras. Tão respeitáveis. Compartilhando com o leitor a rica experiência que resulta da falta de liberdade de expressão e da repressão mais rasteira à livre informação.
Livros como esse servem para mostrar como é possível vencer dificuldades extremas e confiar sempre na liberdade ainda que a democracia que nós desejamos esteja muito mais no campo da utopia do que da realidade possível. Desfeita a estrutura repressiva, restituída a liberdade de escolha ao cidadão, trazida de volta, a democracia mostrou como os comunistas, de fato, não representavam perigo real. No clima de liberdade da democracia as organizações e partidos políticos comunistas perderam a funcionalidade, se esvaíram. Clara demonstração de que a liberdade, mais que a força, é o melhor meio de aferir a opinião da população.
Com esse livro originalmente escrito para sua página na rede social, Emiliano José enriquece em muito a história do jornalismo baiano. E, com sua sempre presente generosidade, permite aos que sempre estiveram nos bastidores da notícia, revelarem um pouco de suas vidas, dificuldades e esforços de superação. O autor é o mais regular e produtivo autor de escritos sobre a esquerda baiana.
Passados quase meio século dos fatos resgatados, eis que ressurgem límpidos como se tivessem ocorrido ontem. Muito embora, um bom número dos mencionados já não se encontrem nós. Aqui onde estamos ou seja lá aonde estiverem os que já partiram, certamente, muitos dos retratados por Emiliano nesse adorável livro poderão dizer sem medo de errar, parafraseando Zélia Gattai: Comunistas, como não podia deixar de ser na Terra de Todos os Santos, graças a Deus. E graças à pena do autor, sempre presentes, jamais esquecidos.
*Gustavo Falcon, jornalista, é doutor em história pela UFBA. Autor, entre outros livros, de Do reformismo à luta armada: trajetória política de Mário Alves, 1923-1970 (Versal). [https://amzn.to/4qj3xsF]
Referência

Emiliano José. Os comunistas estão chegando: memórias do jornalismo. Salvador, EDUFBA, 2024, 642 pág. [https://amzn.to/44BOySw]
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