Racismo nas universidades públicas

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Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

As dinâmicas diárias das universidades públicas no Brasil são conformadas pelo racismo em toda linha: intencional mesmo, velado, cínico, psicológico, cultural, pedagógico, empregatício etc. (Sem esquecermos das políticas estruturais de permanência, que, na ausência, atingem, fundamentalmente, os discentes negros e negras.)

1.

Invariavelmente, não costumo escrever sobre questões raciais do cotidiano ao qual eu esteja implicado de modo imanente.[1] Tem sido uma opção pessoal desde quando passei a viver no mundo campi. Contudo, relendo Frantz Fanon e Jean-Paul Sartre, decorrente do centenário do martinicano em 2025, convém neste momento seguir suas postulações existencialistas-marxistas – intelectuais intervêm nas situações contingentes de exploração, opressão e discriminação dos desvalidos.

O caso da professora Érica Bispo no recente concurso para docente na Universidade de São Paulo, a USP, não é estarrecedor, pelo fato de que o ocorrido é parte constitutiva – intrínseca, orgânica, comum, natural, corriqueira e tutti quanti – do ambiente das Instituições Públicas de Ensino Superior no Brasil.

“Nossas” universidades públicas (dirigidas, administradas e gestionadas por docentes brancos e brancas) são: espaços, absolutamente, racistas. Com efeito, elas só não são mais racistas se comparadas a outras duas organizações públicas, a saber, a polícia militar e o sistema judiciário.

Se esses são os instrumentos de sustentação do Estado burguês em geral – a expressão prática do monopólio legítimo do uso da violência física (Max Weber); “corpos especiais de homens armados […] separados da sociedade e superiores a ela” (Lênin); “os economistas burgueses […] [se] esquecem que o direito do mais forte sobrevive ainda sob outra forma em seu Estado de Direito” (Marx) –, no Brasil, elas não somente exercem sua função histórico-política e histórico-social usual.

A instituição pública da polícia militar atua com o intuito “declarado” de exterminar, fisicamente, os negros; e o faz com a anuência, concordância e auxílio dos órgãos de justiça. Bem entendidas as coisas, são nossos juízes, procuradores, desembargadores, tribunais de justiça e supremas cortes que legitimam a ação das forças de segurança – ora absolvendo os soldados assassinos de negros (os casos são incontáveis), ora mandando e mantendo em presídios, que não são dignos nem de animais viverem, os corpos não-brancos por infrações mínimas, tolas, e em casos corriqueiros, injustamente.

A justiça no Brasil tem cor – e não é preta. Polícia e judiciário no Brasil são indiscutíveis e verdadeiros sicários e guardiões legais da elite branca dominante – exércitos e advogados do katechon. Neste aspecto, e somente neste, as universidades públicas estão abaixo.

2.

As dinâmicas diárias das universidades públicas no Brasil são conformadas pelo racismo em toda linha: intencional mesmo, velado, cínico, psicológico, cultural, pedagógico, empregatício etc. (Sem esquecermos das políticas estruturais de permanência, que, na ausência, atingem, fundamentalmente, os discentes negros e negras.)

São sistemáticos processos de judicialização acerca de ações afirmativas perpetrados do concorrentes brancos/as e aceitos com euforia e regalo por tribunais; concursos para cargos docentes, culturalmente, enviesados, tendenciosos, com cartas marcadas e que não precisamos aqui descrever seu “caráter” preconceituoso, discriminatório “mesmo” (com bancas compostas por professores e professoras 100% brancos, “dinamarqueses” desterrados); são departamentos, os de humanas inclusive, sem ao menos um único docente negro, quando muito um ou dois.

Os Estados Unidos da América é o país do racismo segregado, portanto, é o país da Ku Klux Klan, é ou foi o país das lei de Jim Crow, é o país dos linchamentos – “de linchadores” disse Franz Fanon – , é o país da pena de morte contra negros, é o país dos straussianos e voegelinianos, é o país de William Buckley, é o país dos neoconservadores, de George W. Bush e sua família, é o país de Trump, Peter Thiel, Marco Rubio e Vance – todavia, em um único departamento da área de humanas, o Departamento de História da UCLA-Universidade da California-Los Angeles – que é bem verdade possui um número robusto de professores contando com mais de 60[2] –, onde lecionam Carlo Ginzburg, Lynn Hunt, Russell Jacobi, Perry Anderson e Robert Brenner, há sete docentes negros, para não falar do já lendário Robin Kelley, sendo três mulheres.

Na charmosa nova-iorquina The New School for Social Research onde lecionaram Hannah Arendt e Eric Hobsbawm e onde leciona a sempre citada Nancy Fraser, o Departamento de Sociologia – com reduzido quadro pessoal comparado ao de história da UCLA – possui quatro docentes negros, sendo duas mulheres;[3] são docentes que têm o prazer atávico e sádico – de um elitismo amaneirado “violento” que Marcel Proust jamais imaginou narrar na figura dos esnobes do salão dos Guermantes[4] – de humilhar alunos e alunas não-brancos por simples questionamentos e posturas inusuais.

São programas de disciplinas que se quer se permitem discussões francas dos autores, como se fossem mais canônicos do que o texto bíblico com seus guardiões (apóstolos) prontos a defendê-los, ridiculamente (ver sobre isso Pierre Vesperini, Qué Hacer Con el Pasado?, New Left Review, nº 146, Mayo-Junio, 2024); são técnicas, dispositivos, sutis de dizer para negros qual é seu lugar natural (e imutável) que tornaria perplexo até o Platão da República, e seu principal herdeiro no século XX o teórico político conservador Leo Strauss, ao qual sustentava que justiça é o que está de acordo, hierarquicamente, com a natureza.

É a desfaçatez (Machado de Assis) de acadêmicos e acadêmicas brancos que leem, apresentam, desfilam e “defendem” o corpus literário, sociológico, filosófico, historiográfico e teórico político negro (sempre para higienizar sua consciência moral branca racista como certa vez sugeriu Cornell West) e nas estruturas de decisões racializadas, as grandes e pequenas, fazem ouvidos moucos e pronto se servem dos regulamentos, normas e estatutos caso haja questionamentos de suas evasivas. (E aqui, não se pode deixar incólume a esquerda (e os progressistas…) universitária de todos os matizes.)

3.

Quando a esquerda uspiana e seus variados e inúmeros departamentos de ultramar irão se posicionar como de uma feita o fez Antonio Candido – que observava a “cumplicidade interesseira” com o racismo presente em setores da sociedade brasileira, particularmente, no caso das universidades públicas – em carta[5] para a professora Gislene Aparecida dos Santos?[6] Quando pesquisadores marxistas terão o mínimo de coerência moral?

Quando teóricas e teóricos críticos da sociedade que se dizem contrários às formas predominantes de crítica e epistemologia – e que hoje se “apropriam” do pensamento de Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento, bell hooks, Audre Lord etc.) descerão ao mundo cruel do preconceito de cor? Quando os/as que se dizem acadêmicos críticos das modalidades de subjetivação normativa da produção de corpos serão com efetividade sinceros? Quando os inumeráveis estudiosos e estudiosas das teorias e concepções pós ou decoloniais terão se quer senso de proporção?

Nas universidades públicas brasileiras: o racismo é a flor-da-pele. A nós negros e negras – cabe nos mantermos vivos e saudáveis física e mentalmente para as lutas (cruéis) do dia-a-dia…

*Ronaldo Tadeu de Souza é professor de Teoria Política na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Notas


[1] Agradeço as sugestões de conteúdo, forma e estilo feitas por Érico Andrade (UFPE), Jean Tible (USP) e Lincoln Secco (USP). As responsabilidades intelectuais do texto são, inteiramente, minhas.

[2] É evidente que o argumento não se restringe à questão numérica; interessa aqui a dimensão simbólica em sentido forte.

[3] Em ambas as universidades não se está considerando as várias designações por cargos dos professores e professoras. O que seria na nossa terminologia: emérito, titular, associado, adjunto, assistente, aposentado etc.

[4] Comentando o Em Busca do Tempo Perdido, Walter Benjamin afirmava que na “luta final é que se revelará os traços fisionômicos mais fortes [e agressivos] da classe aristocrático-burguesa dos Guermantes” – em nosso caso, os traços racistas e de ódio desabrido aos negros, seus representantes e intelectuais mais aguerridos da elite branca dominante e de seu aríete, a classe média (acadêmica) branca.

[5] Em sentido hegeliano, toda carta é um dispositivo de reconhecimento (público), pois depende do desejo das autoconsciências plenas de determinações sociohistóricas que as escrevam, enviem, recebam e leiam; por outras palavras, são formas de expressão da subjetividade (que se exterioriza) no mundo para se ser-quem-se-é na outridade. 

[6] Ver e consultar página da professora Gislene Aparecida dos Santos da EACH-USP, no Instagram. No contexto de divulgação da carta, a intelectual negra uspiana, organizou a campanha que, eventualmente, se “estendia” para outras universidades públicas no Brasil, “a USP tem que mudar”.

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