O estilo de Alexandre de Moraes

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por LUIS FELIPE MIGUEL*

Precisamos de democracia, de proteção aos direitos, de inclusão e educação política. Não de truculência “do bem”, de vale-tudo “do bem”

Sim, foi horrível o advogado do bolsonarista confundir Maquiavel com Saint-Exupéry. Um vexame daqueles. Quando o sujeito estava na frente da mais alta corte do país, num julgamento de enorme notoriedade. Ele sabia que ia ser visto pelo Brasil todo e nem assim se preparou?

Mas vamos ser francos: essa incultura não é privilégio dele. Vejo em estudantes que se formam nas melhores universidades, em colegas professores. Gente que não sabe se Van Gogh foi músico ou ator.

Alexandre de Moraes também cometeu a sua gafe, quando quis lacrar em cima do advogado. Citou Saint-Exupéry como “Antoniê”.

Ninguém é obrigado a saber francês. Mas custava ter mandado um assessor consultar no forvo.com antes de falar? (Forvo é um site que apresenta a pronúncia de milhões de palavras em várias línguas).

Agora, como é que vamos zoar do Sergio Moro falando da Edith “Piá”?

Pior é o estilo de Alexandre de Moraes. O ministro veste a fantasia de “Xandão” e sai lacrando. Falas milimetricamente pensadas para viralizar como memes.

O “patético e medíocre”, repetido duas vezes, não cabe a um juiz no tribunal. Foi fora do tom. Alexandre de Moraes podia ter descascado o advogado com sutileza e finesse, como se esperaria de um integrante de corte tão alta, investido da tarefa de julgar. Mas sutileza e finesse não viralizam.

Criticamos Sérgio Moro, com razão, por ele não se comportar como quem julgava, mas como uma das partes do processo. Agora vamos aplaudir “Xandão” pelo mesmo motivo? Será que os fins justificam mesmo os meios?

Maquiavel, acho que agora todo mundo sabe, nunca escreveu isso. (Embora a frase tenha sido enfiada numa péssima tradução dos Discorsi, publicada há tempos pela Editora UnB.). Ele enunciou, isso sim, o drama central da atividade política: que o bem muitas vezes é fraco diante do mal. E que, portanto, pode ser necessário praticar o mal para que o bem triunfe.

Mas era bem consciente das dificuldades presentes, da contaminação entre meios e fins: “Raramente acontecerá que um cidadão virtuoso queira apossar-se do poder por meios ilegítimos, mesmo com as melhores intenções; ou que um homem mau, tendo alcançado o poder, queira fazer o bem, dando boa utilização ao poder que conquistou com o mal.”

É necessário punir os golpistas do 8 de janeiro, ninguém tem dúvida. Mas, ao aplaudir “Xandão” de forma tão irrestrita, parte da esquerda parece cair num maquiavelismo primário, contrário às lições do florentino. Se bem que chamar de maquiavelismo é generosidade, é tietagem deslumbrada mesmo.

Vamos esquecer da trajetória de Alexandre de Moraes, de como ele chegou aonde chegou, de tantas demonstrações de desamor à democracia ao longo dos anos? Vamos parar de perguntar por que há tanta bravura contra os bagrinhos, mas a fala sempre afina diante dos mandantes? E, sobretudo: vamos esquecer que há muitas serpentes, que muitos ovos podem ser chocados?

Precisamos de democracia, de proteção aos direitos, de inclusão e educação política. Não de truculência “do bem”, de vale-tudo “do bem”, de heróis justiceiros.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).

Publicado originalmente nas redes sociais do autor.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Saliência fônica
Por RAQUEL MEISTER KO FREITAG: O projeto ‘Competências básicas do português’ foi a primeira pesquisa linguística no Brasil a fazer uso do computador no processamento de dados linguísticos
De Burroso a Barroso
Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: Se o Burroso dos anos 80 era um personagem cômico, o Barroso dos anos 20 é uma tragédia jurídica. Seu 'nonsense' não está mais no rádio, mas nos tribunais – e, dessa vez, a piada não termina com risos, mas com direitos rasgados e trabalhadores desprotegidos. A farsa virou doutrina
Universidade Harvard e fluoretação da água
Por PAULO CAPEL NARVAI: Nem a Universidade Harvard, nem a Universidade de Queensland, nem nenhum “top medical journal”, chancelam as aventuras sanitárias terraplanistas implementadas, sob o comando de Donald Trump, pelo governo dos EUA
O cinema de Petra Costa
Por TALES AB´SÁBER: Petra Costa transforma Brasília em um espelho quebrado do Brasil: reflete tanto o sonho modernista de democracia quanto as rachaduras do autoritarismo evangélico. Seus filmes são um ato de resistência, não apenas contra a destruição do projeto político da esquerda, mas contra o apagamento da própria ideia de um país justo
A Rússia e a sua viragem geopolítica
Por CARLOS EDUARDO MARTINS: A Doutrina Primakov descartou a ideia de superpotências e afirmou que o desenvolvimento e integração da economia mundial tornou o sistema internacional um espaço complexo que só poderá ser gerido de forma multipolar, implicando na reconstrução dos organismos internacionais e regionais
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES