Por LUIS BONILLA-MOLINA & OSVALDO COGGIOLA*
Toda análise sobre a grave conjuntura venezuelana que ignore a condição histórica do país está condenada à superficialidade e à repetição vulgar, especialmente hipócrita quando feita em nome da democracia
1.
Toda análise da grave conjuntura venezuelana que ignore a condição histórica do país nos sistemas coloniais e semicoloniais está condenada, na melhor das hipóteses, à superficialidade e, na pior, à repetição vulgar, especialmente hipócrita quando feita em nome da democracia, dos clichês surrados do imperialismo, a realidade fundamental de nossa era. Vejamos as grandes linhas históricas dessa condição.
Na era colonial ibérica, o vice-reinado venezuelano conheceu um forte desenvolvimento de suas exportações (na segunda metade do século XVIII já era o maior exportador mundial de cacau) e uma prosperidade econômica que beneficiava só uma parte pequena de sua população de aproximadamente um milhão de habitantes, a grande maioria composta por negros escravos, zambos, mulatos e índios sendo mantida na pobreza extrema. A rebelião negra de Coro, em 1796, projetou perigosamente, para as classes dominantes da colônia, a sombra da revolução dos escravos da vizinha Haiti.
Quando Simón Bolivar começou a elaborar o projeto de uma confederação americana para substituir a dominação colonial espanhola, chegou à conclusão de que, para alcançar a independência, os espanhóis deviam ser totalmente derrotados (para impedir suas tentativas de reconquista), unificando os esforços dispersos dos caudilhos regionais e criando uma república para poder enfrentar qualquer potência imperial. E simultaneamente agitou, contra os espanhóis, o fantasma da “revolução das cores”, a “anarquia bárbara” que provocaria uma revolução com direção e em benefício das classes despossuídas da sociedade.
Em um famoso e polêmico verbete para um dicionário, Karl Marx criticou o caudilho da Venezuela pelas suas limitações na luta pela independência nacional (“separatista sim, democrata não”), mas jamais se colocou em posição neutra ou duvidosa acerca da progressividade e legitimidade dessa luta. Ressaltou a liberdade dos negros escravos como um dos motores da ascensão das forças independentistas, embora reconhecendo no presidente do Haiti, Alexandre Pétion (1770-1818), não em Simón Bolívar, a paternidade da iniciativa.[i]
Na Grã Colômbia, as classes dominantes não aceitaram a decisão de Simón Bolívar de manter a região unificada num único país, promovendo um golpe para tirá-lo do poder. Após a vitória militar contra Espanha, exilaram o militar e concluíram por dividir o território do antigo vice-reinado de Nova Granada em três países: Venezuela, Colômbia e Equador. Na América Latina, de um modo geral, do ponto de vista econômico, houve continuidade entre o período colonial ibérico e a fase independente.
Da extração de metais, seguiu-se à exploração agrícola e pecuária por meio da qual cada país, articulando-se com o sistema econômico internacional, se identificou com um produto na escala comercial. A América Central se especializou no fornecimento de frutas tropicais; o Equador, bananas; Brasil e Colômbia, açúcar e café; Cuba e Caribe, açúcar; Venezuela, cacau; Argentina e Uruguai, carne e lã; Bolívia tornou-se país fornecedor de estanho e Peru de peixe.
Na segunda metade do século XIX, o Congresso norte-americano declarou sua oposição às demandas territoriais britânicas na Venezuela: por um tratado celebrado com os Países Baixos em 1814, Grã-Bretanha havia adquirido o território da Guiana, e durante meio século manteve uma disputa com Venezuela sobre sua fronteira ocidental, aspirando a uma porção cada vez maior de seu território. Venezuela tinha apelado várias vezes aos Estados Unidos, que em 1887 ofereceram seus ofícios à Grã-Bretanha, propondo submeter a diferencia a uma arbitragem. Os britânicos rejeitaram a proposta.
Entre as aspirações territoriais de Grã-Bretanha, a que mais preocupava era o controle da desembocadura do rio Orinoco. Os venezuelanos alimentaram os temores sublinhando em nota oficial que não só a “Doutrina Monroe” (“América para os americanos”) estava em jogo, mas que “o controle inglês sobre a desembocadura de nossa grande artéria fluvial, e sobre alguns dos seus tributários, será a causa de permanente perigo para a indústria e o comércio de uma grande porção do Novo Mundo”.
Um tratado foi assinado, concedendo aos britânicos grande parte do território reclamado. Em troca, Grã-Bretanha reconheceu a Doutrina Monroe e a hegemonia dos EUA no Hemisfério Sul. Venezuela conheceu o conteúdo do acordo apenas quando foi publicado. O governo de Caracas ratificou o acordo depois de impedir manifestações de rua na cidade. No Brasil, o parlamento aprovou resoluções de apoio à atitude norte-americana. A animosidade despertada entre os venezuelanos, como consequência do tratamento humilhante que receberam, levou-os a se posicionar contra os EUA na guerra hispano-americana.
Nos EUA, a plataforma eleitoral republicana em 1896 propunha um “monroísmo” agressivo, explorando o orgulho nacionalista já agitado na crise venezuelana, propondo o controle norte-americano das ilhas do Havaí e do projetado canal interoceânico em Panamá.[ii] Em 1899 (fevereiro-outubro) ocorreu a revolução restauradora, que combinou a crise do liberalismo amarelo, a agitação devido ao mau governo de Andrade com as demandas de protagonismo dos ricos do interior da área montanhosa (Andes venezuelanos) do estado de fronteira de Táchira. A revolução inaugurou uma longa hegemonia de presidentes andinos que expressariam a transição do modelo agrário de acumulação para o modelo rentista do petróleo.
Logo depois, Venezuela foi objeto de uma investida militar das potências europeias. Por ocasião da entrada da frota anglo-alemã no porto de La Guayra, impondo um bloqueio marítimo para cobrar pela força a dívida do país, os EUA foram previamente consultados e deram seu consentimento, que significava “a transição do intervencionismo europeu para a tutela norte-americana… A nota do ministro argentino [Luis Maria] Drago ao Departamento de Estado, afirmando que a dívida pública não poderia ser cobrada com intervenção militar armada, foi a única manifestação oficial na América Latina a favor da Venezuela”.[iii] As relações geopolíticas mundiais mudavam com a emergência de uma nova potência, os EUA, com costas para os oceanos Atlântico e Pacífico, e com interesses econômicos crescentemente mundiais.
Na crise venezuelana de 1902-1903 o bloqueio naval foi imposto contra a Venezuela pela Grã-Bretanha, Alemanha e Itália, depois que o presidente Cipriano Castro se recusara a pagar dívidas externas e danos sofridos por cidadãos europeus nas guerras civis do país. Castro presumiu que a Doutrina Monroe obrigaria Washington a intervir para evitar a intervenção militar europeia. No entanto, o presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, e o Departamento de Estado, consideraram que a doutrina se aplicava apenas à tomada de território.
Os EUA foram oficialmente neutros no conflito e permitiram que a ação militar europeia prosseguisse sem objeções. O bloqueio viu a pequena marinha da Venezuela ser rapidamente derrotada; ainda assim, Castro recusou-se a ceder, mas concordou em submeter algumas das reivindicações à arbitragem internacional, que tinha anteriormente rejeitado. As nações bloqueadoras concordaram com um compromisso, mas mantiveram o bloqueio naval durante as negociações. Pelo acordo, Venezuela comprometeu 30% dos seus direitos aduaneiros para a resolução de reclamações externas. O Tribunal de Arbitragem concedeu tratamento preferencial às potências bloqueadoras contra as reivindicações de outras nações. O papel dos Estados Unidos, como aparente mediador, fazia parte da estratégia para consolidar uma relação neocolonial com a Venezuela.
O episódio contribuiu para a formulação do “Corolário Roosevelt” da Doutrina Monroe, afirmando o direito dos EUA de intervir nos assuntos dos pequenos Estados do Caribe e da América Central caso estes não conseguissem pagar suas dívidas internacionais. Assim, Venezuela e o complexo Caribe-América Central estiveram no centro da configuração do “quintal” do imperialismo norte-americano. A vitória dos EUA sobre o enfraquecido Império Espanhol na guerra hispano-cubano-americana (1898) lhes deu novas possessões no Caribe (Porto Rico) e no Pacífico (Filipinas, Guam e Havaí), sobre as quais puderam projetar seu poder no Sudeste Asiático e na América Central.
Ao mesmo tempo, inaugurou uma nova forma de imperialismo em que a anexação política de territórios não era necessária: embora Cuba tenha alcançado a independência política em 1901, os EUA restringiram sua soberania política por meio da Emenda Platt incorporada à constituição da ilha caribenha, que permitia a intervenção em seus assuntos internos, o estabelecimento de bases militares em seu território e sua capacidade de fazer tratados políticos.[iv] O novo imperialismo ianque foi baseado em um intervencionismo sistemático na América Latina:
1901 – 1914 – Panamá – Marinha dos EUA apoia a secessão do território da Colômbia; tropas americanas ocupam a zona do canal desde 1901, quando teve início sua construção.
1903 – Honduras – Fuzileiros navais dos EUA desembarcam e intervêm na guerra civil.
1903 – 1904 – República Dominicana – Tropas dos EUA invadem o país para “proteger interesses americanos”.
1904 – 1905 – Coreia – Fuzileiros navais desembarcam durante a guerra russo-japonesa.
1906 – 1909 – Cuba -Tropas dos EUA desembarcam durante período de eleições.
1907 – Nicarágua – Tropas norte-americanas invadem o país e impõem um protetorado de fato.
1907 – Honduras – Fuzileiros navais desembarcam durante a guerra de Honduras contra a Nicarágua.
1908 – Panamá – Fuzileiros navais são enviados durante o período de eleições.
1910 – Nicarágua – Fuzileiros navais norte-americanos desembarcam novamente em Bluefields e Corinto.
1911 – Honduras – Tropas enviadas para “proteger interesses americanos” durante a guerra civil.
1912 – Cuba – Tropas dos EUA enviadas para “proteger interesses americanos” em Havana.
1912 – Panamá – Fuzileiros navais ocupam o país durante as eleições.
1912 – Honduras – Tropas enviadas ao país para “proteger interesses americanos”.
1912 – 1933 – Nicarágua – Tropas dos EUA ocupam o país para combater os insurgentes de Sandino durante os vinte anos de guerra civil.
2.
Os EUA aproveitaram a “Guerra dos Mil Dias”, que devastou a República da Colômbia (incluído o Panamá, que era um departamento/província da Colômbia), entre 1899 e 1902. Em 1903, os EUA impuseram, através de subornos a parlamentares colombianos e intervenção militar direta, o Tratado Hay-Bunau Varilla pelo qual tiraram do país a província de Panamá, que proclamou sua independência. Os EUA conquistaram, assim, a zona sobre a qual se iniciara já a construção do Canal do Panamá. Através da secessão do Panamá foi definido um novo marco de expansão imperial. O canal interoceânico desenhava a perspectiva de hegemonia naval norte-americana no Atlântico e no Pacífico. Os EUA se aproveitaram da falência da antiga companhia francesa do canal, cuja construção já tinha consumido US$ 250 milhões, e compraram suas ações por US$ 40 milhões.
A independência do país foi proclamada em 1903, com o apoio dos EUA. Em 1904, durante o governo de “Teddy” Roosevelt foi retomada a reconstrução do canal, inaugurado em 1914, após um gasto de US$ 360 milhões, através de uma empresa estatal montada para esta finalidade. Pelo direito à propriedade do Canal do Panamá, os EUA pagaram 10 milhões de dólares e concordaram em pagar 25.000 dólares por ano, valor que foi aumentado para 430.000 em 1933 e para 1.930.000 em 1955.
A ingerência imperialista, portanto, teve papel central no desenvolvimento político e geopolítico da Venezuela no século XX. Leon Trótski notou, exilado no México, que os governos latino-americanos tendiam para um autoritarismo bonapartista em virtude da fraqueza da burguesia nacional, “um anão entre dois gigantes”, diante do peso do capital externo (imperialista) e do movimento dos explorados (operários e camponeses).[v]
Na primeira metade do século XX, Juan Vicente Gómez (1857-1935), militar de alta patente, governou Venezuela em regime de ditadura repressiva de 1908 até sua morte em 1935. Em seus 27 anos de governo, houve o fim das crônicas guerras civis, a modernização do Estado e a transformação da Venezuela em uma nação petroleira. Sua ditadura tentou manter uma fachada constitucional e democrática, empregando presidentes como Victorino Márquez e Juan Bautista Pérez, subordinados a Gómez, que exercia o cargo de comandante em chefe das Forças Armadas. Gómez ajudou a consolidar o Estado venezuelano e a modernizar o país, ao permitir que investidores, nacionais e estrangeiros, explorassem as recém-descobertas jazidas de petróleo.
Venezuela viveu um substancial crescimento econômico e se transformou em um dos países mais prósperos da América Latina já na década de 1950, uma prosperidade reservada às classes dominantes, com as maiorias populares reduzidas à pobreza, inclusive extrema, contrastando com a riqueza cada vez maior das oligarquias e da alta burocracia estatal.
O início da exploração do petróleo também significou a formação do modo “rentista” de acumulação burguesa. A importação — com a substituição progressiva da produção nacional — tornou-se o mecanismo de captura burguesa dos lucros derivados da exploração petrolífera. Incentivos económicos às importações, isenção de impostos e outros direitos de importação, créditos de importação com dólares preferenciais (calculados a um preço inferior ao do mercado cambial), incentivos à indústria de montagem de peças importadas, perdão de dívidas contraídas pela burguesia por créditos públicos, estavam configurando uma forma “parasitária” de formação da burguesia como classe social na Venezuela.
Esta forma de constituição da burguesia venezuelana é fundamental para compreender, décadas depois, o fenômeno da “boliburguesia”. Em 1928, a juventude venezuelana liderou uma série de protestos que tiveram como eixo central a democratização do país. Os líderes desta revolta seriam aqueles que organizariam anos depois a criação dos partidos venezuelanos modernos, especialmente a Ação Democrática (AD), socialdemocrata liderada por Rómulo Betancourt e outros membros dessa geração, o Partido Social Cristão (COPEI) liderado por Rafael Caldera, o liberal Partido da União Democrática Republicana (URD) à frente do qual sempre esteve Jóvito Villalba e o Partido Comunista da Venezuela, de orientação marxista. Muitos dos membros dessa geração participaram na fracassada tentativa de golpe de Estado de 7 de abril de 1928, que enviou para a prisão uma parte importante da chamada “geração de 28”.
Anos depois, após a morte de Gómez e sob o governo de López Contreras (que havia derrotado a tentativa de golpe de estado de 1928), em 27 de fevereiro de 1936, foi criado o primeiro sindicato da indústria petrolífera no estado de Zulia, que lideraria entre dezembro daquele ano e janeiro do ano seguinte, a primeira greve petrolífera na Venezuela, com a qual a classe trabalhadora organizada irrompeu no cenário nacional.
Nesta greve, o Partido Comunista da Venezuela (PCV) teve um papel especial na sua liderança. Manuel Taborda, Rodolfo Quintero, Jesús Faría, Olga Luzardo, entre outros comunistas, estiveram envolvidos na organização e desenvolvimento desse protesto, que combinou reivindicações salariais e laborais com reclamações sobre as condições de trabalho a que as transnacionais os submetiam, bem como exigências políticas como a liberdade de protesto, a cessação da perseguição política e a liberdade total dos presos políticos do regime de Gomez.
No quadro de uma cadeia de experiências democráticas interrompidas por regimes ditatoriais, os partidos políticos venezuelanos construíram a sua verdadeira identidade política entre 1936 e 1958. No período da ditadura de Marcos Pérez Jiménez (1953-1958), Rómulo Betancourt, líder histórico da socialdemocracia venezuelana, escreveu Política e Petróleo na Venezuela (1956), livro em que justifica sua posição na Junta do Governo Revolucionário (1945-1948), e considera o petróleo como o articulador económico da economia venezuelana — eixo do modelo de acumulação burguês, numa relação neocolonial de dependência baseada no comércio dessa matéria prima.
Durante a ditadura de Pérez Jiménez a tríade AD, COPEI e URD consolidaram a sua relação com os Estados Unidos e as diferenças com o bloco soviético, construindo relações de confiança com os Estados Unidos para iniciar o período democrático que começou em 1958 e não foi interrompido até o presente. O petróleo se transformou na espinha dorsal do regime político nacional e o fator determinante na relação com os Estados Unidos.
Em 1958, o “Pacto de Punto Fijo” foi celebrado entre os três principais partidos políticos: a Ação Democrática (AD), socialdemocrata, o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI), democrata cristão de centro-direita, e a União Republicana Democrática (URD), “social-liberal” e pró-imperialista. O acordo buscava a estabilidade política do país após a derrocada do governo ditatorial do general Marcos Pérez Jiménez antes das eleições, marcadas para dezembro daquele ano. Seus efeitos se fizeram sentir até o início dos anos 1990.
O pacto obrigava os partidos signatários a respeitar os resultados das eleições e a respeitar a alternância de poder — excluído o Partido Comunista da Venezuela (PCV), que foi proscrito; era evidente que para a burguesia e para o modelo de acumulação desenvolvido no país, o PCV era um incômodo. Em 1962, a URD abandonou o pacto, por discordar da política adotada com relação à revolução cubana. A prosperidade econômica permitiu neutralizar e derrotar as tentativas de organização de núcleos guerrilheiros no esteio da Revolução Cubana, o principal dos quais foi encabeçado pelo lendário Douglas Bravo, sem alterar o regime político, num período em que América do Sul conheceu uma onda de golpes militares (Brasil, Argentina, Bolívia) que tomaram como pretexto “o perigo do comunismo”, e os EUA como principal ponto de apoio.
Em 1965, os marines dos EUA invadiram a República Dominicana para impedir a posse de Juan Bosch, democraticamente eleito após a longa ditadura de Rafael Trujillo, carimbado como comunista.
3.
No último quartel do século XX, a onda expansiva da crise econômica mundial chegou em Venezuela, na recessão de 1974/1975. A diminuição da produção do petróleo foi controlada de perto pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Sua criação, em 1960, com um papel central da Venezuela com Perez Alfonzo, iniciara um confronto por uma nova repartição mundial da renda da terra. Criada pelos governos dos países exportadores, a OPEP elevou o preço do petróleo bruto, impondo limites à concorrência entre os países produtores, que mantiveram uma renda alta, empregada principalmente em importações.
Os exploradores diretos das minas de petróleo, no entanto, na maioria dos casos, não eram os Estados proprietários, e sim as grandes companhias multinacionais que tinham sua tecnologia contratada pelos Estados, ou a eles pagavam pela exploração das jazidas. Não eram os países produtores os que mais ganhavam. O preço fixado no Golfo Pérsico oscilava, entre 1953 e 1973, entre $ 1,60 e $ 2,75 o barril; com os impostos, porém, ia para $ 10,00 no mercado. A crise de 1973 quadruplicou os preços. A mudança na relação do capital com a propriedade agrária esteve no centro da crise do petróleo.
A disputa em torno dos preços do óleo cru foi uma luta pela apropriação da “renda diferencial” (originada nas diferenças naturais de fertilidade, ou riqueza, do meio natural). Comportou também uma disputa monopolista, pois a “fatura petroleira” devia ser paga, em primeiro lugar, pelos países e empresas consumidoras de energia que dependiam das importações (a maioria dos países europeus e o Japão), o que fortalecia a burguesia norte-americana e, dentro dos EUA, pelo setor empresarial que se encontrava na mesma situação. O “choque do petróleo” inscreveu-se, portanto, no acirramento das disputas entre monopólios e países imperialistas. As grandes refinadoras e comercializadoras de petróleo (as “sete irmãs”) foram, em graus diversos, as máximas beneficiadas pelo aumento da fatura petroleira.
Com o aumento dos preços do petróleo, entre 1974 e 1983, Venezuela viveu a mais importante onda de prosperidade econômica e expansão da classe média, o que criou a ilusão de que era possível construir um Estado de bem-estar forte no país. Esta bolha rebentou com a nova queda dos preços do petróleo no início da década de 1980, a crise da dívida externa e a chegada da globalização neoliberal, que exigiu uma maior e nova integração do capital transnacional com o local. Em 18 de fevereiro de 1983 (data conhecida como Sexta Feira Negra), o presidente social cristão Luis Herrera Campins interrompeu a venda do dólar norte-americano por dez dias, o que levaria ao estabelecimento de um mecanismo rígido de controle cambial (e, portanto, de disputa da renda do petróleo).
A Sexta Feira Negra é o início do longo ciclo de crise económica, política, social, cultural e tecnológica que a Venezuela atravessa. A crise que começou em 1983 teve picos (Caracazo de 1989, rebeliões militares bolivarianas 1992, Agenda Venezuela 1994-1999, triunfo de Chávez 1999, processo constituinte 1999, golpe de Estado 2002, apelo ao socialismo do século XXI em 2005, formação da “boliburguesia” 2002-2024, morte de Chávez 2013, início do processo de restauração e acordo burguês 2013-2024) mas não conseguiu ser fechada, porque na realidade é um rearranjo das burguesias em torno do rentismo petrolífero numa fase de financeirização da economia mundial.
Na Venezuela, o aumento da renda petroleira favoreceu a concentração de capital e de renda, propiciando o acirramento da luta de classes e levando a um aumento da mobilização popular contra o regime político vigente, que atingiu seu ponto crítico em 1989 (Caracazo). Meio século depois do início da crise econômica mundial, Venezuela passou a viver uma crise estrutural que começou com a “Sexta-Feira Negra” de 1983 e ainda permanece aberta. Esta crise é típica dos limites do modelo de acumulação burguesa em torno da indústria petrolífera e da hegemonia do regime político instalado em 1958.
A emergência da crise “interna” coincidiu com a chegada do neoliberalismo, a turbulência da dívida externa e a financeirização da economia mundial, que impulsionaram uma nova dinâmica económica local, aberta ao capital transnacional. Na Sexta-Feira Negra de 18 de fevereiro de 1983, o país sofreu uma suspensão abrupta da venda do dólar norte-americano por dez dias, que deflagrou o estabelecimento de controle cambial, impondo uma restrição à saída de moeda estrangeira, medida severamente contestada pelo presidente do Banco Central da Venezuela.
A Sexta-Feira Negra foi precedida por diversos acontecimentos, como a saída da Venezuela do padrão ouro, a nacionalização do petróleo, bem como o início de um período de descompasso entre os gastos públicos e as receitas do Estado. Esta situação agravou-se e tornou-se evidente com a queda dos preços do petróleo, que levou as exportações de petróleo de 19,3 bilhões de dólares em 1981 para apenas 13,5 bilhões de dólares em 1983 (uma queda de 30%), no momento do início da crise da dívida na América Latina.
Estes acontecimentos produziram uma fuga de capitais de quase oito bilhões de dólares e a correspondente diminuição das reservas internacionais, fatores que tornaram iminente uma desvalorização monetária. Até a Sexta-Feira Negra mantinha-se a estabilidade da moeda e a confiabilidade que caracterizavam um mercado de livre conversibilidade; o episódio originou a perda de confiança na economia do país. Se observou uma forte queda nas reservas internacionais e a adoção de um regime cambial diferencial de três tipos, que sobreviveu até fevereiro de 1989, no meio de graves casos de corrupção estatal, empobrecimento popular e fim da estabilidade da moeda venezuelana.
4.
A maioria das análises da situação na Venezuela tende a focar prazos curtos, o que impede uma compreensão abrangente do que está acontecendo na situação atual. Os picos de tensão no período de crise de 1983-2024 são frequentemente confundidos como fases separadas. Na realidade, a rebelião popular e estudantil de 1987, o Caracazo de 1989, os levantamentos militares de 1992, a destituição e processamento de Carlos Andrés Pérez, a candidatura e vitória eleitoral de Chávez, o processo constituinte, o golpe de Estado fracassado de 2002 , o apelo ao “socialismo do século XXI”, as contradições entre a nova burguesia e o poder popular, a doença e morte de Hugo Chávez, a candidatura e triunfo de Nicolás Maduro, o início do bloqueio norte-americano e das nações imperialistas, as rebeliões de rua da direita nos anos 2014 até 2017 com a morte de uma centena de jovens, a segunda assembleia constituinte, o decreto 2792, a viragem autoritária de Nicolás Maduro, a perda das liberdades democráticas, a judicialização dos partidos políticos, a negociação com os Estados Unidos e outros acontecimentos, são apenas picos de tensão no quadro da longa crise burguesa na Venezuela do período 1983-2024.
As tentativas de superar esta crise têm sido infrutíferas, tanto da parte da direita (construção de um novo modelo de acumulação, Agenda Venezuela, involução na agenda social, redução do quadro das liberdades democráticas) como da esquerda institucional (o chavismo e o seu projeto de recuperação da agenda social, com destruição da velha burguesia e de suas representações, criação de uma nova burguesia e destruição do sistema liberal de liberdades democráticas para impor um regime bonapartista de consenso entre as classes dominantes).
A esquerda anticapitalista e socialista, contrariamente ao projeto de conciliação de classes, não conseguiu ao longo desse longo período construir um polo alternativo para a superação estrutural da crise de hegemonia e acumulação capitalista na Venezuela. A emergência de Hugo Chávez e dos militares bolivarianos (em 1992) como atores políticos permitiu construir no período 1995-1998 um centro político precário – com apoiadores de esquerda, centro e direita — que tentou resolver esta crise a partir de um “novo consenso”, a abertura deu lugar a iniciativas que buscavam uma nova hegemonia (processo constituinte, novo marco legal e institucional, novo paradigma democrático) e um novo modelo de acumulação (a Agenda Alternativa Bolivariana — AAB).
O Chiripero de Rafael Caldera (nome dado a uma coligação política que levantou a candidatura de Caldera à presidência nas eleições de 1993: oficialmente apresentou o nome de Convergência) tinha aberto o caminho para essa tática de disputa hegemônica. Esse “centro político”, no qual participaram setores empresariais que se sentiam marginalizados pelo setor maioritário da burguesia e temiam os efeitos da emergência do capital transnacional, viu na proposta da AAB uma oportunidade para construir uma nova arquitetura no país.
Nesse período, Hugo Chávez falou de “terceira via” e do “capitalismo humano”. A esquerda valorizou este agrupamento como uma tábua de salvação em meio ao desastre que o pensamento socialista vivia nos anos noventa, enquanto setores da esquerda radical viam nas tentativas de destruição do antigo modelo a oportunidade de abrir caminho para novas correlações de forças que permitiriam apoiar a mudança estrutural no país.
O capital transnacional e os Estados Unidos eram favoráveis a qualquer tentativa de superação do modelo de acumulação de capital que desse lugar ao processo de internacionalização e financeirização, razão pela qual ofereceram resistência precária à ideia de mudança que se lançava. Desde a chegada de Hugo Chávez ao governo (1999), surgiram três faces da política chavista, que expressavam as contradições internas do instável “centro político”. A primeira, coerente com o programa acordado, lançou o processo constituinte e um novo quadro jurídico — leis facilitadoras, leis setoriais — para a emergência de um novo Estado burguês, que exigia a construção de hegemonia para o setor burguês que o acompanhava.
A segunda foi fruto da identidade nacional popular inacabada de Chávez e do chavismo, que buscava conectar-se com as narrativas e imaginários da corrente histórico-social de mudança. O terceiro se expressou no caminho tateante em direção a um discurso político ideológico radical, no qual se aproximou de experiências como a de Gaddafi na Líbia, o cooperativismo iugoslavo, o socialismo utópico comunal, os “marxismos malditos”, até chegar ao “socialismo do século XXI” (2004-2005), que em sua fase final se tornou mais assimilado ao antigo socialismo do século XX. Estas três faces foram progressivamente integradas e constituíram a razão social e ideológica da liderança de Hugo Chávez no período 2002-2013.
O golpe de Estado de 2002 quebrou os laços do chavismo com os setores burgueses “nacionalistas” ou “progressistas” que tinham se agrupado em torno do chavismo no período 1994-2001. Num país com um modelo de acumulação rentista, baseado em grande parte nas importações, nas sobretaxas, nas isenções fiscais e tarifárias, no acesso a moedas preferenciais e nos diferentes mecanismos de corrupção exigidos por uma classe burguesa comercial (em torno das importações), financeira (legitimação do capital e expansão da usura) e da montagem (importação de peças e insumos), esta ruptura com setores da “burguesia tradicional” deixou um vazio que teve que ser preenchido rapidamente.
Isto gerou a necessidade de constituir uma nova burguesia que estivesse estruturalmente ligada ao projeto político da Quinta República, assumindo para si o modelo de acumulação da velha burguesia. Este foi o início do declínio do radicalismo do projeto bolivariano. Este processo, conhecido como projeto econômico da revolução, gerou, entre 2002 e 2013 uma nova burguesia, a “boliburguesia”, confrontada com a velha classe dominante.
Em 2004, Hugo Chávez e o chavismo já tinham consolidado a sua identidade política, um novo policlassismo que renovava elementos de uma revolução popular nacional e a ligava ao discurso socialista. Ao mesmo tempo que criava as condições materiais, políticas e institucionais para o surgimento de uma nova burguesia, o processo bolivariano construiu as condições para o surgimento de formas de poder popular e comunal, que supostamente construiriam uma base social para a disputa hegemónica com a velha burguesia. As iniciativas para construir uma base social enraizada no novo projeto hegemónico foram apresentadas como “socialismo do século XXI”.
A aparente dualidade estratégica não era uma esquizofrenia política, mas na realidade continha um novo projeto político “multiclasses” emergente, que exigia a ruptura com o antigo tecido institucional e social, com narrativas, imaginários e correlações de força diferenciadas do que tinha sido o a democracia burguesa clássica. A democracia representativa tornou-se democracia participativa, a Constituição continha um novo pacto social multiclassista.
Uma parte importante da esquerda concentrou-se em questionar que o programa de Chávez não era autenticamente revolucionário, quando nas suas origens era muito mais reformista e agora se inclinava para o radicalismo controlado. Isto equivalia a pedir a Chávez o que tinham sido incapazes de fazer e construir numa situação de ascensão do movimento de massas. Chávez certamente navegou na dualidade estratégica, entre um novo projeto burguês e as contradições geradas pela possibilidade do “socialismo do século XXI”, porque foi o caminho para construir uma nova hegemonia que não transcendeu — e talvez nunca pretendeu transcender — os limites da ordem burguesa.
Embora haja quem defenda que a sua aposta final seria no poder popular, o seu desaparecimento físico impediu que essa hipótese se verificasse. O concreto é que a revolução bolivariana se tornou um projeto de conciliação de classes. Chávez cumpriu um papel bonapartista sui generis ao arbitrar o equilíbrio da transição para uma nova institucionalidade e novos mecanismos de relações de poder.
5.
A morte de Hugo Chávez, cuja liderança foi fundamental na construção e manutenção desses equilíbrios – que por sua vez se tornou a única possibilidade para políticas de reforma ou revolução — deu lugar a um processo de perda de força transformadora e de restauração progressiva, de capitulação e abandono da parte popular e radical do novo projeto hegemônico. Esta capitulação foi gerada mais pelo espírito conservador da nova burguesia face à ideia de poder popular, do que pela ruptura com a ideia policlassista do projeto bolivariano.
O abandono precoce da radicalidade do poder popular enfraqueceu o próprio projeto de uma nova hegemonia burguesa, portanto, não é descabido pensar que Maduro e os herdeiros do chavismo não compreenderam plenamente o projeto de disputa hegemônica que Chávez liderou. Isto significou, a partir de 2013, a destruição sustentada do tecido social e institucional não alinhado com a lógica do capital, que havia optado ingenuamente pela vigência de um horizonte socialista.
A orientação política dos governos Nicolás Maduro teve dois momentos: 2013-2017 e 2017-2024. No primeiro, o seu compromisso centrou-se no fortalecimento da nova classe burguesa, na subalternização definitiva dos germes precários do poder popular e comunal aos interesses da nova burguesia, e no confronto e tentativa de aniquilação da velha burguesia. A caracterização da Venezuela como um perigo para os interesses estratégicos dos Estados Unidos e o início das Medidas Coercitivas Unilaterais dos EUA fortaleceram o confronto entre a velha burguesia (fora do aparelho governamental) e a nova burguesia (que era parte constitutiva do governo).
Os confrontos entre 2014 e 2017 podem ser entendidos como a tensão das contradições interburguesas. O governo e a nova burguesia “bolivariana” conseguiram o esmagamento policial-militar das revoltas de 2017, impondo assim uma derrota sem precedentes na lógica insurrecional da velha burguesia, um acontecimento do qual esse setor ainda não conseguiu se recuperar. Esta derrota da velha burguesia e das suas representações políticas abre uma nova etapa no governo Nicolás Maduro e no horizonte estratégico de governabilidade da nova burguesia.
No segundo momento (2017-2024), o governo Nicolás Maduro fortaleceu e ampliou os processos de diálogo com a direita política e a velha burguesia, mas também, como se sabe agora, abre-se uma linha de negociação com os Estados Unidos, ao mesmo tempo que gera um conjunto de medidas que restringem as possibilidades de influência da classe trabalhadora e das classes subalternas nas correlações de força.
O Decreto 2792, de 2018, que elimina a contratação coletiva e o direito à greve, as instruções da ONAPRE que ignoram os direitos adquiridos de uma parte importante dos funcionários públicos, trabalhadores da educação, saúde e outros setores, fazem parte de medidas naturais de contenção do movimento operário e de manifestação de coincidências entre a nova e a velha burguesia, para promover acordos com amplos setores do capital nacional e suas representações políticas. Maria Corina Machado e o setor burguês que ela representa pareceram ser o elétron livre, o setor da velha ordem que não conseguiu se enquadrar nas negociações 2018-2024.
2024 é o ano da eleição presidencial mais disputada da história recente. Falou e fala-se muito em transição, mudança de governo ou manutenção da atual equipe governamental liderada por Nicolás Maduro. Os mais ingênuos falam em garantir as condições para uma transição, eliminando as recompensas norte-americanas para eliminar Nicolás Maduro, assinando um pacto nacional de não agressão ou perseguição. Outros falam em estabelecer um quadro de garantias para que a nova burguesia possa usar a sua riqueza acumulada sem qualquer perseguição ou limite.
A verdade é que as eleições ocorrem no quadro de uma negociação interna à burguesa e com os americanos, cujos avanços, estagnações ou retrocessos serão cruciais para as consequências práticas dos resultados eleitorais. A opacidade com que é conduzida a negociação com os gringos impede maior precisão sobre as reais possibilidades de transição ou avanço na nova hegemonia. O acordo interburguês surge no horizonte como uma possibilidade, que terá de decidir entre as opções de um governo de coligação nacional, um governo de emergência ou um regresso à alternância. Os Estados Unidos, numa perspectiva neocolonial, são favorecidos pelo confronto de baixa intensidade entre os setores burgueses nacionais e entendem um acordo entre eles no quadro do aprofundamento da dependência venezuelana e da tutela imperial sobre ela.
6.
Os candidatos que se apresentaram com o rótulo de oposição foram Daniel Ceballos (Arepa Digital) envolvido na insurreição de 2014 e perdoado por Maduro em 2018, Claudio Fermín (Soluções para a Venezuela), antigo ativista da Ação Democrática, que atuou nos últimos tempos com uma linha política associada aos interesses do governo, Benjamín Rauseo Rodríguez (Confederação Nacional Democrática — CONDE), comediante, que levanta um programa de liberdade de mercado, Luis Eduardo Martínez Hidalgo (AD, Bandera Roja — ex-maoístas —, Movimento Republicano e União Eleitoral Nacional), Enrique Octavio Márquez Pérez (Centrados en la Gente, REDES, PCV) é um conhecido opositor do chavismo, ligado à MUD, Javier Bertucci (El Cambio) pastor evangélico que expressa as novas relações de Maduro com os cristãos protestantes, Antonio Ecarri (Alianza del Lápiz) que propôs um programa de ajuste e reconciliação nacional e manteve reuniões em Miraflores com Maduro, José Brito (Primeiro Venezuela, Primeiro Justiça — posto sob intervenção —, Unidad Visión Venezuela e Venezuela Unidad) que aparece como um opositor funcional ao governo, Edmundo González Urrutia (PUD — sem cartão eleitoral —, MUD e Nuevo Tiempo) é o candidato que Maria Corina Machado apoiou expressamente.
O candidato oficial do governo foi Nicolás Maduro Moros (PSUV, PPT — posto sob intervenção, MEP — posto sob intervenção, PCV — posto sob intervenção, Tupamaros, entre outros), que aspira a um terceiro mandato que prolongaria sua estadia no palácio de Miraflores de 12 para 18 anos.
Oito dos dez candidatos expressaram o progresso das negociações de Maduro com a oposição ocorridas entre 2017 e 2024; estão por uma transição pacífica, pela procura de um novo modelo de alternância democrática e muitos deles questionam o bloqueio norte-americano contra a Venezuela. A nona candidatura foi a de Edmundo González Urrutia (apoiado por MCM) que expressa o setor que não conseguiu um entendimento mínimo com o governo e é por uma mudança radical numa lógica de encontro da velha burguesia com o capital transnacional. Os resultados proclamados foram: Nicolás Maduro, 6.408.834 (51,95%); Edmundo González, 5.326.104 (43,18%); Luis Eduardo Martínez, 116.021 (0,94%); Benjamim Rauseo, 92.903 (0,75%); José Brito, 84.231 (0,68%); Javier Bertuchi, 64.452 (0,52%); Claudio Fermín, 40.902 (0,33%), Enrique Márquez, 29.611 (0,24%); Daniel Ceballos, 20.056 (0,16%). Um total de quase doze milhões de votos.
Quanto ao número de migrantes venezuelanos, que pouco votaram e foram em sua grande maioria impedidos de fazê-lo: a oposição insiste em que são mais de sete milhões, enquanto o governo fala em 1.700.000; pesquisadores como Víctor Álvarez estimam seu número em pouco mais de quatro milhões. Dos supostos oito milhões de eleitores fora do país, apenas 65 mil conseguiram se registrar.
Os resultados projetados pela oposição MCM-Eduardo González são radicalmente diferentes, falam de uma enorme diferença de votos a seu favor. Todas as expressões da esquerda na Venezuela, desde o autonomismo, passando pelo trotskismo, o PCV (autêntico), os Tupamaros (autênticos), o PPT (autêntico), mesmo as expressões mais de centro-esquerda, têm indicado que não defendem um resultado ou outro, mas defendem o direito democrático do povo venezuelano de conhecer os resultados detalhados, os somatórios locais dos votos que sustentam a totalização nacional, e poder contar com as atas de escrutínio para a auditoria cidadã.
O governo de Nicolás Maduro decidiu interpor um Recurso Contencioso Eleitoral perante o Supremo Tribunal de Justiça que retire do poder judicial a possibilidade de revisão e recursos hierárquicos, limitando o acesso público ao estado de escrutínio, o que aumentou a crise de legitimidade internacional e nacional do governo Maduro. Tudo indica que no curto e médio prazo haverá dificuldade de acesso aos registros de eleitores, o que inaugura uma nova fase de crise política na Venezuela.
Qual é a situação social atual da Venezuela? O salário mínimo é inferior a cinco dólares mensais e o salário médio com bônus mal ultrapassa os 100 dólares por mês; nenhum candidato propôs um plano de ajustamento salarial que pelo menos o levasse à média regional. Alguns refugiam-se na necessidade de garantir a produtividade empresarial (o que implica continuar o assalto burguês às receitas petrolíferas) para iniciar um processo de recuperação salarial, enquanto outros, para não permitir o processo de ajustamento salarial, escondem-se atrás dos efeitos do bloqueio externo.
Por outro lado, nos últimos oito anos houve uma redução progressiva, sistemática e contundente até chegar à eliminação, das liberdades democráticas mínimas que, embora cada vez mais diminuídas nas últimas décadas, foram consideradas uma conquista da sociedade (direito à greve, liberdade de organização de sindicatos e partidos de esquerda, liberdade de opinião e crítica). Nenhum candidato propôs a recuperação das liberdades democráticas para as classes subalternas e exploradas, mas sim das “liberdades do mercado”.
Todas as candidaturas, do governo e da oposição, com nuances diferentes, representaram um projeto para acabar com a crise política que ignora os interesses da classe trabalhadora e do povo. Nenhum propôs um programa para recuperar o direito à greve, os contratos coletivos, os salários suficientes, mas apelaram ao sacrifício da classe trabalhadora para recuperar o país, ao mesmo tempo em que defendiam a eliminação dos impostos sobre o grande capital e falavam na libertação das forças de mercado, do empreendedorismo e da produtividade.
A candidatura de Edmundo González representa o programa de ajuste estrutural, privatizações e destruição da agenda social que libertários como Javier Milei e companhia encarnam hoje; enquanto os programas dos restantes candidatos da oposição expressaram nuances de programas governamentais que colocam os interesses do capital acima dos interesses do trabalho.
Nicolás Maduro representa a continuidade do programa de ajuste estrutural aplicado entre 2017-2024, num contexto de bloqueio dos Estados Unidos e das nações imperialistas europeias à Venezuela, que colocou o peso da crise econômica sobre a classe trabalhadora, enquanto a burguesia (antiga e nova) tornou-se mais rica. Todos os candidatos procuram melhorar a relação com os Estados Unidos, enquanto Nicolás Maduro desenvolve simultaneamente uma estratégia de aproximação com a China, a Rússia e a Turquia (países onde as liberdades democráticas são restringidas e onde a orientação é o capitalismo competitivo).
O setor liderado por MCM-Edmundo González abandonou o discurso ideologizado para sintonizar e se apropriar dos desejos mais básicos da população venezuelana hoje: (a) o retorno dos migrantes, porque cada família tem pelo menos um dos seus membros nessa condição (pais, avós, filhos, netos, sobrinhos, irmãos), (b) reagrupamento familiar baseado na melhoria das condições econômicas, sobretudo no aumento da produtividade (tendo o cuidado de não esclarecer como melhorar a questão salarial), (c) a privatização dos assuntos públicos como caminho para a prosperidade, algo que a história nacional e a experiência regional negam. A mudança na estratégia da oposição funcionou para a candidatura MCM-González, a tal ponto que o governo Nicolás Maduro tentou lançar planos para o regresso dos migrantes e enfatiza a diminuição da inflação como um sinal da reativação econômica para o futuro.
O governo de Nicolás Maduro concentrou seu discurso na sua sobrevivência no poder como uma garantia de bem-estar social, que desapareceu progressivamente nos últimos dez anos. O discurso das sanções norte-americanas, reais e objetivas, perdeu eficácia política diante da ostentação material de um setor da liderança e do caso de mega corrupção conhecido como cripto-PDVSA (empresa estatal de petróleo). No entanto, a candidatura oficial manteve uma importante base social, em grande parte como um patrimônio herdado do período Chávez e devido à rede de apoio material (programa de cestas básicas, bônus, ajudas) que estaria ameaçada pela chegada ao poder de um candidato de direita ou de extrema-direita, que propõe que tudo seja privatizado.
A lógica da sobrevivência e o medo dos efeitos da mudança permitiram-lhe reunir uma importante base social de apoio à sua candidatura, mas a partir da resignação e não da esperança. A candidatura da oposição central cresceu exponencialmente em apoio no ano passado. O governo, no seu desespero face a este fenômeno, tem tentado recuperar o vínculo com as maiorias através de diferentes meios: (a) destacar o efeito do bloqueio norte-americano e das nações imperialistas europeias na economia e no mundo de trabalho, (b) apelar para o legado das conquistas do período Chávez, (c) mostrar as candidaturas da oposição como parte da onda neofascista e ultraconservadora que varre o mundo, (d) aprofundar o autoritarismo, através da perseguição seletiva de pessoas de classe média e lideranças populares das candidaturas da oposição e do campo trabalhista, (e) utilizar a desqualificação pessoal para tentar levar o debate eleitoral para o terreno mais favorável.
7.
As eleições presidenciais de 2024 foram precedidas pelo desaparecimento de alguns partidos de esquerda, que não alcançaram o voto mínimo para a sua permanência legal, e pela judicialização dos restantes. Atualmente não existe nenhum partido de esquerda legalizado na Venezuela que possa levantar autonomamente uma candidatura presidencial e o apoio que aparece no cartão eleitoral de Nicolás Maduro é o resultado desta situação de intervenção de instrumentos políticos que pertenciam à esquerda.
O PSUV nunca foi um partido em termos clássicos, deliberativo e autónomo do governo, mas sim um instrumento político para construir a viabilidade social dos planos governamentais. Os setores que responderam exclusivamente à liderança de Hugo Chávez foram separados da estrutura partidária após a morte do líder histórico do processo bolivariano e muitos deles estão em diferentes formas de oposição ao governo Nicolás Maduro.
O PSUV é hoje um partido poli classista monolítico, sem fissuras significativas; no entanto, o aprofundamento da crise salarial e económica desgastaram suas bases. O PSUV está ameaçado pelo mesmo fenómeno que afetou a Ação Democrática (AD) na década de 1990, a possibilidade de colapso devido à perda de eficácia política. Maduro está limpando o PSUV de quadros políticos independentes que apostavam na radicalização do processo bolivariano.
A esquerda não conseguiu chegar a um acordo sobre as tácticas eleitorais nesta conjuntura. Pelo contrário, houve pelo menos cinco opções visíveis. A primeira, talvez a maioria, decidiu votar no candidato que tivesse mais opções contra Maduro. Para este setor, o mais relevante é sair do regime de Maduro e depois propor uma recomposição das relações de poder que permita a recuperação das liberdades democráticas, como o direito à greve, a contratação coletiva, salários justos e a possibilidade de organização autónoma. Deixemos a extrema direita governar para recuperar a democracia!
Outra opção tem chamado ao voto nulo ou a abstenção, alternativa da qual fazem parte os dirigentes históricos do PPT, Marea Socialista, PSL e LTS, entre outros. Outro setor, crítico de algumas políticas governamentais, considera que devemos continuar a apoiar Maduro. Entre outras, as expressões de Bruno Sanarde e da revista Bolívar Vive representam esta opção. Por fim, a opção agrupada em torno de Outra Campanha define que seu candidato são as lutas sociais, que nenhum candidato representa os interesses da classe trabalhadora e que o que precisa ser feito é uma campanha que denuncie a perda das liberdades democráticas e que abra a possibilidade de um reagrupamento classista.
Deste último setor participam o CMI, Esquerda Revolucionária, Comitê de Familiares e Amigos pela Liberdade dos Trabalhadores Presos, Bloco Histórico Popular, LUCHAS, entre outros.
Todos os candidatos presidenciais nas eleições do 28J se esforçaram para mostrar que eram a melhor opção para os Estados Unidos. Enquanto a dupla Machado-González renovou os votos de fidelidade construídos no passado, especialmente durante a administração Bush, o governo Maduro acelerou as negociações com os Estados Unidos e até mostrou suas simpatias pelo presidente Joe Biden, ao mesmo tempo em que garantiu o fluxo de petróleo para o Norte sob condições de negociação neocoloniais.
Um acordo interburguês local não serve de nada se a aprovação de Washington e do Departamento de Estado não for alcançada. Todas as especulações sobre um acordo estratégico entre o governo Maduro e a China ou a Rússia não passam de alarde, porque quando o comércio petrolífero dos EUA com a Venezuela regressou, a China decidiu distanciar-se para permitir um acordo norte-americano-venezuelano, especialmente porque cada vez mais acordos estão acontecendo no quadro do comércio estratégico entre o gigante asiático e os EUA.
A Rússia, por seu lado, está mais interessada em consolidar os seus interesses em África do que em aventuras latino-americanas. Os EUA são o árbitro de uma situação neocolonial na Venezuela, jogando as suas cartas com a calma de quem tenta garantir que o fim do jogo os favoreça tanto quanto possível. Cabe lembrar que as recentes eleições foram fruto de um pacto entre Nicolás Maduro e Joe Biden — o acordo de Barbados —, e não uma conquista da luta das massas.
Outro fato relevante são as mudanças nos discursos e posições do progressismo e da esquerda. Embora Pepe Mujica tenha se distanciado do governo Nicolás Maduro há algum tempo, vozes qualificadas como Lula e Gustavo Petro marcaram suas diferenças em relação à deterioração progressiva das liberdades democráticas na Venezuela e mostraram preocupação com a tendência autoritária no discurso de Nicolás Maduro.
Intelectuais como Atilio Borón e Emir Sader, outrora muito ativos na defesa da Venezuela, têm sido muito discretos, deixando a liderança da sua defesa internacional a Monedero, um dos líderes históricos do enfraquecido Podemos de Espanha. É claro que Cuba e suas organizações aliadas mantiveram uma linha de apoio a Nicolás Maduro, mas com cada vez menos ímpeto e contundência. Esta decantação do progressismo é também evidência de divergências entre muitos dos seus componentes, que passaram despercebidas no quadro da onda crescente, mas que agora se revelam em toda a sua magnitude.
A crise interna aumentou o isolamento do governo venezuelano. Por esta razão, o governo Maduro optou por salientar que sua saída do poder poderia gerar um banho de sangue no país, como um gesto desesperado para que os EUA pensassem na estabilidade dos seus interesses estratégicos. Se a direita e a esquerda políticas que se opõem a Nicolás Maduro coincidem em algo, é na subestimação da sua capacidade política. Certamente, Nicolás Maduro não só não é um homem culto, como também sente um profundo desprezo por aqueles com formação acadêmica e produção intelectual.
Nicolás Maduro herdou de Hugo Chávez o encanto de se rodear de algumas estrelas da política crítica internacional, ao mesmo tempo em que despreza o pensamento crítico nacional. Mas Maduro compensa esta fraqueza com uma enorme habilidade política para permanecer no poder, fazendo do pragmatismo a sua autêntica ideologia. Nicolás Maduro pensa e age como um burocrata sindical que vê em todos os discursos fatores políticos, sociais e econômicos, desejos de poder e realização pessoal, que identifica como necessidades a cobrir, a partir das quais negocia com os seus adversários. Promotor do grupo de Boston, criou desde muito cedo — nos primeiros anos do processo bolivariano e com a aprovação de Hugo Chávez — um lobby norte-americano que lhe serviria de interlocutor. Hoje esses esforços são atribuídos à sua política de diálogo com a nação mais poderosa do planeta.
Quando surgiram contradições nos projetos imersos no processo bolivariano (nova burguesia versus poder popular), Nicolás Maduro viu nos esforços de construção de uma central sindical autônoma (a UNETE), entre 2004 e 2008, um perigo estratégico para os novos equilíbrios de poder. Foi o arquiteto das derrotas que impediram a construção de uma central operária autónoma e o forjador da Central Bolivariana Socialista dos Trabalhadores (CBST), que em nenhum momento cogitou presidir, pondo à sua frente um dirigente de pouca importância, membro da antiga Central dos Trabalhadores da Venezuela (CTV), liderada pela socialdemocracia.
Desta forma garantiu um aparelho de cooptação e dispersão das lutas da classe trabalhadora. A partir da sua posição de chanceler, consolidou a relação com Cuba, China, Rússia, Turquia, Irã e os governos contrários aos Estados Unidos, com a uma parte importante dos partidos comunistas de tradição soviética e chinesa, rejeitando qualquer iniciativa para atrair para o processo bolivariano os setores mais críticos da esquerda mundial, pois sabia que em algum momento iriam criticar a deriva autoritária e o rumo que o processo tomaria.
Nicolás Maduro deixou de ser um militante radical maoísta, com uma cultura política antirreligiosa, para passar a ser um admirador de Sai Baba. No poder, ele não apenas se casou segundo rituais católicos, mas cultivou uma relação estável e crescente com grupos cristãos e seitas religiosas, especialmente com setores pentecostais, ligados aos Estados Unidos e à extrema direita latino-americana.
Os simpatizantes de esquerda perdidos por Nicolás Maduro devido à sua política de conciliação de classes, recuperou-os em termos numéricos e até aumentou, por interesses da fé. Ele avançou numa linha de trabalho na qual Hugo Chávez tinha sido tímido, acordos e pactos com a direita. Fortaleceu a divisão da direita e criou portas de diálogo com cada setor dela, ao mesmo tempo em que promoveu a devolução aos seus antigos proprietários das terras confiscadas por Chávez, suspendeu políticas de promoção de fábricas recuperadas e criou garantias para o capital financeiro, como forma de garantir a segurança do capital, como prelúdio para uma tentativa unificar as diferentes facções burguesas em disputa.
Nicolás Maduro privilegiou o diálogo com a direita, levando progressivamente a esquerda eleitoral à sua expressão mínima, despojando-a dos seus instrumentos políticos e reduzindo sua capacidade de influência. Congelou e anulou os preceitos progressistas da Lei Orgânica do Trabalho aprovada por Chávez, como forma de mostrar à burguesia e aos Estados Unidos que poderia conseguir, em termos de política trabalhista, o que a direita clássica não poderia garantir.
8.
O fato é que a oposição de direita recuperou uma parte importante da sua capacidade de convocação, que tinha perdido em 2017 e que Guaidó nunca obteve. Serão agora seis meses de negociações para chegar a um consenso entre a velha e a nova burguesia com a intenção de criar uma governabilidade e a aprovação de um pacote contra a classe trabalhadora com o mínimo de protestos possível. Do ponto de vista da classe trabalhadora, enfrentamos o pior cenário desde 1983 até ao presente.
A esquerda classista anticapitalista venezuelana tem que se preparar para uma luta pelas liberdades democráticas e de organização dos trabalhadores, pela conquista de condições elementares de sobrevivência, levada adiante com os métodos da frente única, que seja a base para uma estruturação política independente do chavismo das classes exploradas, para intervir com seu próprio programa e perspectiva no processo político.
A situação venezuelana desencadeou uma crise internacional, que envolve todos os atores políticos mundiais. Os defensores da oposição de direita e de sua alegada vitória eleitoral elencam a direita mundial, encabeçada por Donald Trump, com o apoio dos regimes direitistas latino-americanos, em primeiro lugar do governo argentino de Javier Milei.
Bolívia, Nicarágua, Cuba e Honduras, na América Latina, com o apoio da Rússia, China e Irã, defendem a vitória de Nicolás Maduro. A novidade consiste em que alguns regimes “progressistas”, mais ou menos aliados da Venezuela chavista em um passado recente (Brasil, Colômbia, México), se distanciaram de Maduro, exigiram a publicização das atas eleitorais (como se qualquer exigência desse tipo tivesse sido alguma vez feita nas vitórias eleitorais de partidos conservadores ou direitistas), aliando-se aos regimes que, com os EUA de Joe Biden na cabeça, se movimentam em prol de uma saída “institucional e pacífica” (não golpista) de Nicolás Maduro e o chavismo.
A frente imperialista está dividida entre os partidários dessa solução (Biden) e os golpistas (Trump, Milei e consortes). As clivagens internacionais afetam igualmente os dois lados em disputa na Venezuela. O progressismo internacional e a direita reacionária concordam em omitir o processo de intervenção e judicialização dos partidos de esquerda que Maduro promoveu; como na criação do Pacto de Punto Fijo, as duas frações burguesas em disputa na Venezuela (velha burguesia versus boliburguesia) concordam que o perigo para o acordo interburguês é a esquerda que reivindica o programa social progressista de Chávez e, com base na experiência chavista, levanta um programa socialista para o país. A nível ideológico, as duas facções burguesas coincidem, mas não conseguem chegar a um acordo sobre a forma de distribuir o saque às receitas do petróleo.
A crise da Venezuela, país com as maiores reservas petroleiras do mundo, um dos centros das disputas empresariais e geopolíticas, é uma crise internacional, como o demonstra a comoção mundial a respeito das eleições. Contudo, vemos uma mudança na posição dos Estados Unidos após a publicação dos resultados das eleições de 28 de julho. Ao contrário de outras oportunidades, a administração Joe Biden concedeu a Nicolás Maduro “três dias de graça” para tentar resolver os problemas de legitimidade do processo eleitoral.
Esta “pausa” deve-se aos acordos alcançados desde a guerra na Ucrânia para fornecer petróleo em condições neocoloniais (sem royalties nem pagamento de impostos), situação que tende a reconstruir a relação energética entre os Estados Unidos e a Venezuela. Só três dias depois das eleições é que o Departamento de Estado intervém, reconhecendo o triunfo de González Urrutia, mas sem a beligerância de situações eleitorais anteriores. O apoio dos Estados Unidos à mediação “progressista” de Lula, Gustavo Petro e López Obrador (em grande parte também de Gabriel Boric) faz parte do esforço para promover um acordo entre as facções burguesas em disputa, baseado na situação eleitoral de 28J.
As reservas venezuelanas, de 300 bilhões de barris, já estão sendo exploradas por empresas de França, Itália, Espanha, além de Rússia, China, Índia e Estados Unidos (Chevron). As Forças Armadas venezuelanas tentam ser postas em estado de deliberação política, ignorando que desempenharam um papel central nos equilíbrios do período Chávez- Nicolás Maduro para a emergência e consolidação de uma nova burguesia.
A ofensiva imperialista contra Venezuela é uma peça central da busca por amarrar todo o continente, em especial suas riquezas naturais (no caso da Venezuela, com acordo interburguês ou não), às cadeias de produção e ao capital financeiro internacional, no quadro de uma crise mundial que já entrou em fase bélica (Ucrânia, Oriente Médio e Ásia Central, ameaças militares no Mar da China), que não nos poupa (vide reativação da 4ta Frota da Marinha dos EUA no Atlântico Sul, sem falar na transformação das Ilhas Malvinas em uma importante plataforma militar da OTAN).
Como bem escreveu Roberto Amaral, “Washington atribuiu-se poderes de junta eleitoral no país que abriga a maior reserva de petróleo do mundo, projeta-se sobre o Atlântico e o Pacífico e é porta de entrada para a Amazônia”. Uma frente única anti-imperialista latino-americana contra a ingerência imperialista na Venezuela pode e deve ser colocada na agenda política da esquerda e do movimento de todas as classes trabalhadoras da América Latina.
A questão venezuelana é o primeiro ponto de debate da pauta política da esquerda brasileira e latino-americana. Uma parte importante da esquerda latino-americana, no entanto, está prisioneira do discurso da “geopolítica do poder”, segundo o qual se “a Venezuela cair” isso afetará as possibilidades de progresso dos governos progressistas ou de esquerda na região. Os defensores da abordagem geopolítica não partem da situação material da classe trabalhadora venezuelana e do quadro de liberdades políticas limitadas no período de Nicolás Maduro.
Longe de centrar as suas análises na defesa da classe trabalhadora venezuelana, pedem o seu sacrifício para que possam manter ou avançar nos seus países, mantendo um silêncio constrangedor sobre o congelamento do direito à greve, a perda das liberdades sindicais e a impossibilidade de a classe trabalhadora legalizar instrumentos políticos autônomos que a representem.
Os resultados eleitorais de 28 de Julho, anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que deram a vitória a Maduro, geraram uma crise escancarada porque não foram acompanhados pelos registros de escrutínio por local de voto, nem da totalização por centro eleitoral, cidade e estado. Os resultados foram anunciados com 80% dos votos totalizados; faltava ainda contabilizar 2.500.000 votos, quando a diferença entre Maduro e González Urrutia era inferior a 800.000. Isto gerou um forte descontentamento e mobilizações espontâneas nos primeiros dois dias após as eleições.
A resposta do governo de Nicolás Maduro foi aumentar o controle e repressão dos protestos, o que levou a mais de duas mil detenções, mais de uma dezena de mortes e criação de duas prisões para abrigar os detidos, promovendo ainda mais o clima de protesto. A exigência da esquerda venezuelana pelos resultados eleitorais não é um “fetichismo democrático”, mas um esforço para restaurar as liberdades democráticas perdidas na última década. Se não for garantido um quadro político transparente, será muito mais difícil reabrir caminhos para as questões próprias da classe trabalhadora.
A luta pelas liberdades democráticas é a luta pela liberdade de ação da classe trabalhadora, especialmente o direito à greve, a contratação coletiva com autonomia, tabelas salariais ajustadas aos níveis de inflação, organização e funcionamento dos partidos políticos de esquerda, porque estes foram todos processados e judicializados na última etapa política pelo regime de Nicolás Maduro.
*Luis Bonilla-Molina é professor de pedagogia na Universidad Nacional Experimental de la Gran Caracas (UNEXCA).
Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Teoria econômica marxista: uma introdução (Boitempo). [https://amzn.to/3tkGFRo]
Notas
[i] Christian Rath. Marx sobre Bolívar. En Defensa del Marxismo n° 39, Buenos Aires, agosto-setembro 2010.
[ii] Edgardo Loguercio. Panamericanismo versus Latinoamericanismo. Um debate na virada do século XIX para o século XX. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Prolam-USP, 2007.
[iii] Clodoaldo Bueno. Política Externa da Primeira República. São Paulo, Paz e Terra, 2003.
[iv] Philip S. Foner. La Guerra Hispano-Cubano-Americana y el Surgimiento del Imperialismo Norteamericano. Madri, Akal, 1975.
[v] “Nos países atrasados quem joga o papel principal é o capitalismo estrangeiro e não o nacional; a burguesia nacional ocupa, quanto à sua situação social, uma posição muito inferior à que deveria ocupar em relação ao desenvolvimento da indústria. Como o capital estrangeiro não importa operários, mas proletariza a população nativa, o proletariado nacional começa muito rapidamente a desempenhar o papel mais importante na vida nacional. Sob tais condições, na medida em que o governo nacional tenta oferecer alguma resistência ao capital estrangeiro, vê-se obrigado, em maior ou menor grau, a se apoiar no proletariado. Por outro lado, os governos dos países atrasados, que consideram inevitável ou mais proveitoso marcharem lado a lado com o capital estrangeiro, destroem as organizações operárias e implantam um regime mais ou menos totalitário. De modo que a debilidade da burguesia nacional, a ausência de uma tradição de governo próprio, a pressão do capital estrangeiro e o crescimento relativamente rápido do proletariado cortam pela raiz toda possibilidade de um regime democrático estável. O governo dos países atrasados, ou seja, coloniais ou semicoloniais, assume, no seu conjunto, um caráter bonapartista ou semibonapartista. Diferem entre si porque enquanto alguns tratam de se orientar para a democracia, buscando o apoio de operários e camponeses, outros implantam uma rígida ditadura policial-militar”. (Leon Trotsky. Os Sindicatos na Época da Decadência Imperialista. https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1940/mes/sindicato.htm [1940]).
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