Por TARSO GENRO*
A guerra do fascismo em Benjamin Netanyahu, compaixão de Lula em William Faulkner
Roberto Bolaño publicou um estranho livro (A literatura nazista na América, Companhia das Letras), que não é “sobre” literatura (é “pura” literatura), não versa sobre nazismo (é bem mais complexo que isso), não trata somente de tipos literários – naquele sentido do típico de György Lukács – mas de situações análogas ao conservadorismo e ao nazifascismo, com escritores imaginários e títulos inventados. O livro é, de certa forma, uma metáfora dos nossos tempos de fascismo, manipulação ideológica e de cansaço da democracia liberal, provocado pelo domínio das redes com os monstros que ressurgem no fim das utopias.
Eis alguns de Roberto Bolaño: Luz Mendiluce, que “afundada no desespero tem aventuras com personagens portenhos da pior espécie”, publica um corajoso poema “Com Hitler fui Feliz”; o escritor brasileiro (inventado) Amado Couto, que escrevia contos “que nenhuma editora aceitava, depois foi trabalhar nos esquadrões da morte”; a incrível poetisa Daniela Montecristo, que descreve um IV Reich feminino com sede em Buenos Aires e campos de treinamento na Patagônia, que desfilam inverossímeis, mas críveis, quando desperta na nossa memória.
Quando a realidade é dura demais os sonhos fenecem, as utopias cansam. As paisagens se tornam só molduras de recuperação da história que não se revela. A realidade – dura demais – é um tormento que ora se torna uma reportagem insensata do espírito, ora uma obra de arte pendente de uma cumplicidade do leitor com o autor. Estes às vezes não se conectam, pois compõem um elo idêntico ao que viceja entre um comprador atônito pelos preços e um vendedor desesperado por uma saída na sua vida sem rumo.
Certa vez um amigo aleatório me disse que o fascismo, no plano da pura subjetividade, era o tormento que conjugava bilhões de irritações que paulatinamente corroíam o espírito humano e instalavam uma espécie de antivírus, que imunizava as pessoas, tanto para receberem, como para darem solidariedade e empatia. Javier Milei e Benjamin Netanyahu, propagadores desse antivírus, são neoliberais, populistas e violentos, dotados de um ódio extremo ao humanismo das Luzes.
Basta lembrar – por exemplo – que Javier Milei é contra a educação pública gratuita e que não se importa de, não só semear a pobreza e a ignorância, mas também de matar as pessoas de fome, para salvar o “mercado” e o “ajuste”. Basta lembrar também que Benjamin Netanyahu afirmou, com todas as letras, que “Hitler não pretendia matar os judeus” e também se comprometeu de fazer (e faz) uma chacina em Gaza e que – compromisso cumprido – vai ser lembrada por muitas gerações.
Além disso, Benjamin Netanyahu usou, demagogicamente, o Museu do Holocausto para tentar exercer o monopólio da dor de todo um povo, num gesto especial de provocação extremista, visando encobrir – na atenção da imprensa mundial – os crimes de guerra que vem cometendo contra a comunidade Palestina em Gaza. E mais: o fez querendo dizer que Lula não se importava com a barbárie do Holocausto. Mentiroso, fascista e manipulador.
Alega a chancelaria israelense que as expressões usadas por Lula para se referir ao Holocausto ofenderam a sensibilidade judaica no mundo inteiro, o que pode ser verdade, mas como as palavras podem ser interpretadas por dentro das dores adquiridas na história de quem disse – como Benjamin Netanyhau – que Hitler “não queria matar os judeus”, deveria, ser mais comedido para respeitar o luto coletivo de Gaza e as dores do seu próprio povo.
Os assassinatos da ação terrorista de 7 de outubro contra Israel seriam – para a direita israelense – a motivação dos assassinatos em massa na Faixa de Gaza, mas o que pretende a violência desmedida do Estado de Israel é a legitimação da expansão colonial-imperial, que se sucedeu – processualmente – após os Acordos de Oslo “sob os olhos do ocidente.”
A tese de Enzo Traverso em “Las nuevas caras de la derecha” (Clave Intelectual, Siglo Veinteuno, p. 33) sustenta que classificar alguém como “populista” diz mais a respeito a quem utiliza o conceito do que aquele que é imputado como tal. É que a palavra se tornou uma “casca vazia”, mais propriamente uma gigantesca “máscara” de manipulação política e de exercício de dominação mental.
A categoria política populismo, diz Enzo Traverso, passou a ser uma arma de combate político que é apontada para estigmatizar aversários. Dizer que alguém é populista é o mesmo que dizer que esta pessoa não pode desvendar o conceito que está por trás do massacre social do neoliberalismo. Já foram classificados como populistas, Nicolas Sarkozy, Lula, Bernie Sanders, Hugo Chavez, os Kirchner, Donald Trump, Matteo Salvini, Melanchón, Evo Morales e Jair Bolsonaro, o que no fundo – prossegue Enzo Traverso – indica que, mais além da “elasticidade e ambiguidade”, o conceito que é usado sem nenhum critério deve ser atentado – em especial – para o sentido do seu uso.
Já é muito evidente que quem usa a “ofensa” contida na palavra “populismo” pretende, preliminarmente, dizer o seguinte, independentemente de quem for o adverso: estou longe da social-democracia, acho o Estado Social uma besteira e o humanismo democrático – que pode verter, ou não, por dentro de uma política populista – não pode ser respeitado como “política pública”. O anátema do populismo funciona então como um esconderijo de quem não quer ou não sabe que ele já se tornou uma barreira oportunista da ignorância.
Observemos como os comentaristas neoliberais da grande imprensa fazem este jogo, que requer, ao mesmo, tempo aproximação e distanciamento de figuras de centro como o Lula, e toleram – muitos deles – também Jair Bolsonaro como um ex-chefe de Estado que errou, mas quis o bem do país. Observem que eles não aceitam chamar Benjamin Netanyahu de criminoso de guerra ou de “assassino em série”, ou de populista sanguinário operando na política internacional do globalismo militarizado.
Mas existe uma máscara elementar da razão para o mercado, que está na base deste comportamento atrabiliário dos que usam o populismo por dentro do rastro do ódio do fascismo militante. Aldous Huxley afirmava que “a máscara é a essência” como “casca vazia” como desinformação ou como atestado de preguiça mental que dispensa fundamentação: quem usa a palavra populismo contra outrem – pensam os seus usuários – apenas defende a modernidade e a “liberdade” e quem sofre “acusação”, está excluído de ser ouvido sobre o futuro.
Uso a palavra populismo, neste texto, para emitir juízos sobre quem – para atacar adversários ou inimigos – manipula palavras, recursos e situações históricas, para conquistar de forma irracional as mentes do seu povo, visando exercer o poder pela guerra em nome da falsificação da nação.
O uso das palavras ou a sua supressão, num debate de grande envergadura moral e política, como na recente polêmica sobre as palavras de Lula sobre os crimes de guerra que estão sendo cometidos pelo governo de Israel – em nome de seu Estado – não fez em nenhum momento que Benjamin Netanyahu fosse apontado como um perigoso assassino em série, nem como um chefe de Estado populista que preza a guerra, não a paz.
William Faulkner estava vivendo em Nova Orleans quando conheceu Sherwood Anderson (1876-1871), que foi trabalhador braçal – militar que entrou em guerra – funcionário de editoras e depois de agências de publicidade, que se tornou um dos grandes mestres do conto americano. Romancista e poeta, foi paradigma de toda uma geração de escritores que se projetaram na literatura americana do Século XX.
Nas ruas em longas caminhadas, o escritor “maduro” que era Sherwood Anderson, sem o saber conversava com quem seria uma figura exponencial da literatura mundial e que iria se tornar um escritor mais imponente do que Anderson: este escrevia duramente pela manhã para depois conversar, caminhar e beber, com o então obscuro William Faulkner. As caminhadas um dia cessaram, o que gerou um episódio magno do acaso e da ironia, já contado como paródia do nascimento de um romancista.
Um dia Sherwood passa pela residência de Faulkner – que se ausentara há alguns dias dos passeios conjuntos – para perguntar por que ele, William Faulkner, desaparecera, quando ouviu dele uma resposta inesperada: “Estou escrevendo um livro”. “Meu Deus!“ – disse Sherwood Anderson e foi embora. A Sra. Anderson alguns dias depois encontra Faulkner na rua e lhe dá um recado, sobre o dito livro (Soldier’s Pay) – em produção: “ele disse que se não tiver que ler o manuscrito dirá ao seu editor para aceitá-lo”. “Feito!”, disse o futuro Prêmio Nobel de Literatura, que assim se assumiu como escritor profissional. Vida e imaginação.
“A vida desprovida de imaginação não oferece histórias para contar” (…), sem ela os tempos difíceis não encontram as palavras capazes de despertá-los do passado sonolento”, escreve Maria Rita Kehl, apresentando um belo livro de contos e memórias de Flávio Aguiar (Crônicas do mundo ao revés, Boitempo). Num dos melhores momentos da obra o personagem, como se fosse o autor conversa com um vendedor em Abidjan, na Costa do Marfim, que quer lhe vender algo. Surpresa.
Não se trata, como parecia, de uma ampola de vidro e um caco de espelho, mas do que residia na intimidade destes objetos: uma história de amor e de destino, que acompanhava o “caco” e a “ampola” que se instalariam no canal da memória do escritor, prometendo um pequeno vínculo com a história.
Nestes fragmentos da história não estão os vírus do fascismo, nem o fim da imaginação. Não são fragmentos, como as falas de Benjamin Netanyahu, que geram os ódios às utopias e desatam as tormentas do mal. Estas não estão no livro de Roberto Bolaño ou nas conversas simples entre William Faulkner e Sherwood Anderson. Não estão no fim da história, mas no tecido do seu recomeço permanente, que vai mais além das armas e dos ritos assassinos do poder dos que – viciados em guerras e mentiras – querem normalizar as vidas interrompidas.
Como disse William Faulkner, quando recebeu o Prêmio Nobel em 10 de novembro de 1950: “Considero que o homem não só haverá de resistir, mas também de prevalecer. E é imortal não por ser o único entre os animais que está dotado de uma voz inextinguível, mas pelo fato de possuir uma alma, um espírito capaz de compaixão sacrifício e resistência”. Neste momento é onde está Lula contra a guerra de extermínio e pela compaixão de William Faulkner.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios). [https://amzn.to/3ReRb6I]
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