A colonialidade do capitalismo

Imagem: Peter Rock
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Por GABRIEL VEZEIRO*

Considerações sobre o pensamento de John Rawls

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Baseia-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população mundial como pedra angular desse padrão de poder e opera em cada um dos planos, esferas e dimensões, materiais e subjetivas, da existência cotidiana e em escala social. O colonialismo é um modo de opressão que pretende apropriar-se dos recursos naturais, das matérias-primas moderadamente industrializadas e da força de trabalho nos territórios colonizados. O capitalismo mantém e potencializa aquele estado de coisas porque serve a seus propósitos de manter a opressão que lhe é inerente.

Nesse sentido, referindo-se à colonialidade do capitalismo, a um processo que se originou e se globalizou a partir da América, e durante o mesmo processo pelo qual o capitalismo mundial se desenvolveu, em seus diferentes momentos históricos, em que se observaram importantes e significativas mudanças e estratégias de dominação- exploração. Enquadrar o debate num campo teórico-prático da decolonização implica situar-se no complexo contributo, para muitos paradigmáticos, da articulação conceptual, epistêmico e político entre certos tipos de processos descolonizadores, ao redor do planeta, e o trabalho teorico-conceitual. Há muita coisa que é derrubada e jogada fora para dar lugar ao novo. As crises abalam profundamente nossas concepções mentais e nossa posição no mundo. Mas não o suficiente.

A “livre concorrência” acaba submetendo os setores de menor poder econômico, em qualquer parte da geografia do planeta. O aumento da produtividade, que exige a otimização de processos para melhorar as vantagens competitivas e comparativas, enfrenta a tendência monopolista que deriva de uma práxis que garante a concentração de benefícios nas grandes corporações transnacionais e, portanto, ameaça as economias dos pequenos e médios produtores locais independentes e nacionais.

O poder dos Estados Unidos na ordem mundial contemporânea implica a globalização dos princípios e leis constitucionais anglo-americanas e os mecanismos neoliberais de acumulação e disciplina econômica. A globalização dilui assim o caráter “nacional” das relações sociais, dos mercados e da política e coloca em questão o conceito tradicional de soberania para alcançar um intercâmbio assimétrico entre nações e grupos sociais. Impõe padrões de homogeneização cultural como forma de dominação. A força hegemônica do capital, de supremacia global, subjuga todos os países; mesmo aqueles que promovem mudanças estruturais socioprodutivas e estão abertos à participação das pessoas na decisões nacionais e internacionais em defesa da soberania sobre seus recursos e territórios.

Assim, as conquistas democráticas e reformas constitucionais que introduziu direitos bloqueados por décadas pelas elites dominantes, ressurgindo a possibilidade de um horizonte socialista no século XXI, enquanto avançavam nas mudanças constitucionais, por diversos motivos, acentuaram a extrativismo exportador e não conseguiram escapar da “balcanização comercial”. Os governos centro-esquerda foram afetados pelos ensaios neodesenvolvimentistas que não conseguem superar a dependência de grandes corporações econômicas, preservando a mesma estrutura de Estado e institucionalidade que garante o neoliberalismo colonial

Nesse campo de batalha, na filosofia ocidental e na filosofia política em particular, o empreendimento decolonizador ainda tem um longo caminho a percorrer, de fato, em alguns aspectos, deu errado. A tradição por seu eurocentrismo e a centralidade da filosofia política anglo-americana atual contribuíram decisivamente para isso. O escrutínio crítico das origens e evolução da disciplina em causa; o exame de suas narrativas abrangentes, pressupostos-chave, estruturas hegemônicas, textos definidores; a procura das vozes de oposição de outros tradicionalmente excluídos; e a sentida necessidade de revisá-la e reestruturá-la à luz de seu passado problemático até a sua iteração no presente, têm sido uma característica comum de uma ampla gama de disciplinas.

Mas a abrangência não foi uniforme e na filosofia política ocidental em particular, o empreendimento do “desfazer colonial” tem ainda um longo caminho a percorrer, caindo no marasmo no final do século XIX. Com a infelizmente chamada “fim da ideologia” em meados do século XX, o descrédito dos “totalitarismos” da esquerda e da direita, tudo estava tão bem com o mundo ocidental liberal-democrático do pós-guerra que nenhuma grande reconstrução de reivindicações normativas precisavam ser feitas. Seria o encalhamento na concepção tradicional anglosaxona da filosofia como humilde “subalterna” que “deixa tudo como está”, para se tornar uma espécie de faxina ou de raciocínios conceituais que são uma classificação e análise de segunda ordem, descartando quaisquer reivindicações normativas substantivas sobre o reordenamento da sociedade. Não é de admirar, dado esse diagnóstico pouco promissor, que prevaleceu a ideia de que o sujeito está morto ou infelizmente diminuído em relevo.

A filosofia política seria então apenas a aplicação desses princípios aos assuntos políticos, o que significava a transferência para a ciência política de questões factuais/descritivas sociocientíficas e a deportação para o eido degradado da “ideologia” de recomendações prescritivas sobre fins ideais. De outro modo, tornou-se uma questão modesta de análise linguística, por exemplo, como “soberania” ou “autoridade” devem ser analisadas.

Porém, Uma Teoria da Justiça de John Rawls veio por em destaque que a “grande teoria” na filosofia política ainda era possível, que reivindicações morais substantivas poderiam receber uma base racionalista-politicamente construtivista, se não metafisicamente realista e cognitivista moral, e os recursos da economia e da teoria da escolha poderia ser aproveitada em uma síntese da ética e das ciências sociais. Sempre se disse que as ideias de John Rawls têm outra vantagem indubitável porque não são ideias metafísicas: dá prioridade absoluta à justiça e a entende como a primeira virtude das instituições sociais, sendo o foco da justiça social a estrutura básica da sociedade e nela especialmente a forma como as instituições sociais distribuem deveres e direitos dentro da sociedade.

Além de reviver tanto a filosofia política anglo-americana quanto a teoria do contrato social, John Rawls reorientou o campo, de modo que a adjudicação da justiça social, em vez da justificação da obrigação política, tornou-se o ponto principal do assunto. A frente de batalha do debate estava, portanto, competindo com as perspectivas normativas sobre a justiça, se utilitaristas contra-atacando Rawls para defender sua teoria contra suas críticas, libertários defendendo direitos lockeanos e direitos de propriedade que impediam a redistribuição social-democrata rawlsiana, igualitaristas procurando empurrar John Rawls ainda mais para a esquerda, ou comunitaristas tentando exorcizar os indivíduos fantasmagóricos e desencarnados que encontraram no elenco contratualista de John Rawls.

Lembre-se do que, para John Rawls, é a teoria ideal: a determinação dos “princípios de justiça que regulavam uma sociedade bem ordenada”, “como seria uma sociedade perfeitamente justa”. Portanto, a teoria ideal não é apenas uma teoria normativa, que é claro que necessariamente precisa de emitir julgamentos sobre justiça social. A teoria ideal é a teoria da justiça para uma sociedade perfeitamente justa. Questões de “justiça compensatória” então caem sob a teoria não-ideal ao invés da teoria ideal. Mas precisamos começar com a teoria ideal, afirma John Rawls, porque “ela fornece a única base para a compreensão sistemática desses problemas mais prementes [da teoria não ideal]”.

A sociedade idealmente justa deve, então, de alguma forma, fornecer um alvo normativo que servirá para julgar questões de teoria não-ideal. Não encontramos em Rawls como deveria deveria ser feita a transição da teoria ideal para a teoria não-ideal como justiça compensatória. No livro em que ele fala longamente sobre a teoria não-ideal, O direito dos povos, não se trata da justiça compensatória, mas das mencionadas “burdened societies” e “estados fora da lei”.

O seu individualismo ético, que exige tratarmos a todos como pessoas livres e iguais em dignidade moral, merecendo, portanto, igual respeito e cuidado ao perseguir sua noção particular de “boa vida”, é pilar de uma ideia de justiça que é política, não metafísica. A teoria de John Rawls afirma ser, de fato, independente de doutrinas metafísicas, e direcionada a um objetivo prático: coexistência aceitável para todos em sociedades pluralistas onde a priori existem concepções muito diversas e até opostas ou incomensuráveis do bem.

Porém, quando graves violações da justiça estão envolvidas, como genocídio, escravidão e expropriação em massa de indígenas, uma sociedade idealmente justa no sentido rawlsiano será inatingível porque não há como as medidas corretivas mais bem-intencionadas ( museus dos campos de extermínio, acordos financeiros, desculpas…) serem capazes de trazer uma ordem social moralmente equivalente àquela em que tais medidas não são necessárias porque nenhuma injustiça foi cometida em primeiro lugar. Uma recaída na metafísica mostrada através do mito do naturalismo instrumental e sua visão de mundo pragmatista da realidade e dos fatos da grande teoria racionalista-politicamente construtivista mas talvez não levando em conta o suficiente (permita-me o leitor esta licença) o lugar de onde o sujeito fala, para aprendermos a ouvir, ou saber ler os acontecimentos emergentes que podem nos tornar mais livres.

Enquanto a justiça rawlsiana não se aplica aos “valores últimos” ou ideias sobre “o bem”, mas às instituições que formam a “estrutura básica” da sociedade, ou seja, aquelas que distribuem e regulam os bens primários, bens que fornecem as condições necessárias perseguir como pessoas morais suas próprias concepções do bem: riqueza, renda, direitos, cargos, posições, prerrogativas e até autoestima. para construir alguns princípios que orientam sua distribuição e que são, ao mesmo tempo, consistentes com intuições morais solidamente fundamentadas.

Em um de seus argumentos mais controversos, ele faz uso de um experimento mental ou “dispositivo de representação”: a posição original, na qual indivíduos razoáveis e motivações condizentes com o que sabemos da psicologia humana, estão sujeitos a um véu de ignorância, que os impede de saber quais serão suas posições sociais, traços pessoais, circunstâncias culturais ou geracionais, e até mesmo suas concepções do bem ou seus afetos, lealdades e ódios; o véu da ignorância, em uma palavra, exclui o conhecimento de tudo o que deve ser moralmente irrelevante para estabelecer princípios de justiça, de tudo cujo conhecimento daria origem a distinções arbitrárias entre os indivíduos e as categorias sociais.

E ninguém, de acordo com John Rawls, pode ser feito responsável por aquilo que o acaso natural ou social lhe concedeu. Nessa situação, afirma John Rawls, pessoas moralmente capazes, dotadas de certa razoabilidade – embora não necessariamente altruístas – escolheriam dois princípios de justiça: segundo o primeiro, cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema de liberdades básicas que possui. São compatíveis com liberdades semelhantes para todos; para o segundo principio, as desigualdades econômicas e sociais só são admissíveis se, em primeiro lugar, cargos e prerrogativas são acessíveis a todos em condições de igualdade de oportunidades e, em segundo lugar – e aqui reside o famoso princípio da diferença –, se são necessárias para que aqueles que têm menos estejam em melhor situação do que poderiam estar em qualquer outra situação viável.

A dificuldade é que dado o seu ponto de partida normativo, a transição não pode ser feita. Para começar, se levar a sério o uso do “empreendimento cooperativo” como um filtro conceitual para o alcance social de sua teoria da justiça, então as sociedades caracterizadas pela coerção, pela profunda opressão estrutural, são eliminadas antecipadamente. Então, precisamente onde uma teoria da justiça é mais necessária, ela é mais carente. Mas deixando de lado esse problema não trivial, é difícil ver como uma sociedade perfeitamente justa pode constituir um alvo normativo para sociedades profundamente opressivas.

As inter-relações políticas e econômicas que moldaram os dois polos da ordem internacional, relações de exploração que permitem às democracias ocidentais hoje se posicionarem como presumivelmente muito mais próximas do ideal “bem ordenado” do que os chamados estados “fora da lei” , não apenas não são examinados, mas conceitualmente bloqueados por um enquadramento que nega sua atual interconexão.

Racionalistas estritos não reconhecem a possibilidade de interpretação, e isso implica sempre recorrer à metafísica. O fato de que a justiça racial não era central para a filosofia política de um antigo estado colonizador – na anglosfera e na hispanosfera, entre outras –, o fracasso em fazer da justiça racial um elemento central da filosofia política das antigas nações coloniais, por si só atesta seu caráter colonial. Já que o antidogmático liberalismo igualitarista de Rawls (muito esquerdista e radical nos Estados Unidos, mas demasiado moderado e liberal noutras latitudes) não aceita que a “metafísica” não possa ser plenamente superada, talvez devêssemos estar atentos à ontologia da atualidade, ou seja, tentar compreender ontologicamente a atualidade de hoje como Michel Foucault prescreveu. A possibilidade de jogar isso a nosso favor, a ideia de que no espaço que resta devemos tentar abrir possibilidades de emancipação.

Os injustamente mortos não podem ser restaurados à vida, o sofrimento que ocorreu não pode ser historicamente apagado, o legado não pode ser desmaterializado mesmo que a retificação sirva para paliar um pouco o seu infame legado sem sequer imaginar qualquer redenção benjaminiana do passado. Uma sociedade perfeitamente justa teria realmente que ser uma sem história de injustiça profunda, porque para qualquer candidato com tal história, poderíamos sempre imaginar uma sociedade superior em que a injustiça não tinha ocorrido em primeiro lugar.

Em vez disso, dada a história real do mundo real, temos que nos contentar com um alvo normativo abaixo do ideal que corrige as injustiças da melhor maneira possível. Mas tal alvo não pode ser fundamentado na teoria ideal no sentido rawlsiano – talvez porque é metafisicamente distante do mundo real para ser útil. O ideal retificador será necessariamente diferente do ideal Ideal. O deslocamento para as margens da preocupação normativa de John Rawls com a questão da justiça racial compensatória é em si uma das manifestações mais claras da natureza colonial em curso da filosofia política ocidental.

No momento em que o foco da disciplina foi mudando da obrigação política para a justiça social, no momento em que o sistema colonial está formalmente “terminando” e o racismo é sendo rejeitado oficialmente e em sua encarnação biológica, no momento em que as pessoas negras estão emergindo como atores globais e desafiando a ordem existente como atores e pensadores, no mesmo momento em que os filósofos subalternos estão começando a chegar a academia branca, anteriormente excluída é neste exato momento que uma estrutura metanormativa é apresentada para conceituar a justiça que tem o efeito de apagar o passado, marginalizar a raça e tirar a justiça retificadora, incluindo a justiça racial, do patamar.

É o resultado do funcionamento de ideologias e perspectivas de grupo, do que parece “certo” e do que parece “errado” para comunidades epistemológicas específicas, de questões que desejam explorar e questões das quais desejam ficar longe – em suma, o padrões de cognição do grupo majoritário que influenciam alguém como membro de uma comunidade caucásica racialmente privilegiada que mora um mundo de vida social e intelectual branca, e como esse mundo estabelece horizontes epistêmicos e normativos para esse sujeito e faz com que certas linhas da teoria do desenvolvimento sejam mais “naturais” e atraentes do que outras.

Essa falta de discussão, por exemplo, da justiça racial na literatura sobre justiça é ainda mais surpreendente porque não é como se o conceito fosse desconhecido em outros lugares; os assuntos da teoria queer ou gay, eram geralmente tabu, e seus defensores correm o risco não apenas de ostracismo pessoal , mas, em alguns casos, a morte. Em vez disso, a justiça racial foi explicitamente a bandeira sob a qual o movimento negro americano pelos direitos civis agiu e em referência à qual a luta anticolonial foi frequentemente processada. Então esse conceito já estava disponível na esfera pública para ser apropriado. Não precisou de inovação conceitual para ser descoberta ou coragem política para ser articulada publicamente.

Para teóricos políticos de outras tradições igualmente legitimamente designadas de “ocidentais”, é claro, essa narrativa é enviesada. Certamente para a tradição marxista, a rejeição como mera “ideologia” ou talvez como mero trabalho de rotina que não desenvolve criativamente o materialismo histórico de Labriola, Gramsci, Plekhanov, Kautsky, Lênin, Luxemburgo, Trotsky, Bukharin, Escola de Frankfurt e Althusser – teria confirmado a propensão de uma categorização política burguesa mascarada de avaliação neutra e apolítica. A grande teoria ainda estava a ser produzida e dizendo coisas que a teoria liberal da direita dominante não queria ouvir.

Além disso, além da tradição marxista ocidental também seria preciso levar em conta a obra de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beauvoir que desenvolveram uma posição filosófica com implicações políticas, bem como frequentemente intervindo diretamente nos debates do dia, por exemplo nas controvérsias da década de 1950 sobre a natureza do Estado soviético, ou em sua postura militante contra a Guerra da Argélia e seu subsequente ativismo anticolonial. O livro Segundo sexo, de Simone de Beauvoir, publicado pela primeira vez em 1949, é considerado o texto feminista mais importante do século XX e, portanto, um marco na filosofia política feminista.

Nos Estados Unidos, o pragmatismo social e politicamente engajado de John Dewey , tão influente nas décadas de 1920 e 1940, não deveria ser ignorado, nem os escritos do pós-guerra da Hannah Arendt. Assim, a imagem anglo-analítica é enganosa, um testemunho de uma visão estreita particular do campo, em vez de uma avaliação abrangente. A inspiração em grande medida do marxismo está, na obra de Jürgen Habermas, Axel Honneth e outros e prosperando como, é claro, o desafio às concepções ortodoxas da política e do poder político na obra de Michel Foucault e Jacques Derrida. Porém, essa renascimento não foi acompanhado pelo repensar sistemático pós-colonial e anti-colonial do sujeito.

No entanto, no pensamento marxista e teóricos específicos quanto diferentes como Arendt, Sartre e Foucault, ou, anteriores da tradição liberal e do Iluminismo radical de Denis Diderot e os enciclopedistas , não é apenas que recursos para críticas anticoloniais podem ser encontrados, mas que de fato já foram feitos. A existência de longa data de uma corrente oposicionista de teoria política anti-imperial de autoria dos próprios pensadores do Ocidente, que foi baseada e contestado por aqueles incorporados à força no Ocidente, também deve ser reconhecido e trazido de volta à consciência autoconsciente da disciplina.

Muitas dessas contestações subversivas também foram esquecidas, de modo que a tradição parece mais monoliticamente imperial do que realmente é, e essas suposições hegemônicas, incontestáveis, continuam a moldar os debates do presente, especialmente devido ao colapso e as tentativas de encontrar alternativas à incorporação no sistema-mundo capitalista. Para o relato anglo-amerciando nenhum dos textos produzidos nas lutas políticas globais por Martí, Gandhi, Douglass, Sun Yat-Sen, Garvey, Du Bois, Fanon, entre outros, merecem inclusão, seja por serem insuficientemente analíticos, não ocidentais, ou simplesmente indigna da designação de filosofia política.

Não é apenas uma visão estreita da filosofia analítica ou uma concepção injustificadamente restritiva da disciplina porque ainda que estende sobre a Escola de Frankfurt, ética do discurso, existencialismo, Heidegger e Saussure, Foucault, Deleuze e Derrida, Lyotard e o pós-modernismo e o patamar epocal de Sartre e Camus sobre a Guerra da Argélia, o desafio ao marxismo e à teoria crítica do Norte global foi colocado pelos teóricos do Sul global: a problemática anti-imperialista e sua possível reformulação da cartografia do político, as questões de raça e etnia e como elas podem afetar um conceitualização fundamentalmente baseada em classes e luta de classes, a periodização alternativa oferecida ao pós-moderno europeu pela temporalidade do pós-colonial não europea, a noção de um existencialismo distintamente preto, indígena ou originário que tornaria o “absurdo” da dominação branca e o “pavor” e “angústia” que produziu não são discutidas.

Apesar de sua densidade conceitual, a própria teoria pós-colonial de Said, Spivak, Bhabha, Galeano, Dussel e Sousa Santos entre outros postuladores da decolonização epistemológica e política que superam a colonialidade do poder, recebe apenas atenção do ponto de vista anglo-americano e até europeu. Nem a dominação global do euro e a resistência a ela figuram como temas importantes nem mesmo nenhum escrito autocrítico em solidariedade com o mundo não-ocidental.

O que é reivindicado, então, é um repensar da filosofia política ocidental que vai, na conhecida frase de Chakrabarty, “provincializar a Europa”, situando-a como uma parte particular do globo e não como o centro do globo, cujo diálogo com o resto do mundo o mundo tem, no entanto, como resultado da hegemonia imperial (por mais decadente que esteja em sua fase atual), tem sido mais como um monólogo, abafando as vozes dos outros. Uma história revisionista precisa ser empreendida, que não apenas reconheça tradições políticas alternativas não-ocidentais, tanto fora quanto dentro do Ocidente para o seu redesenho , mas torne central como o não reconhecimento da igualdade dos outros tem, desde a modernidade, distorcido o próprio mapeamento descritivo e prescritivo do Ocidente.

Tal história buscaria, inter alia, recuperar e engajar-se conscientemente com a resistência epistemológica e normativa, interna e externa, que o projeto de eurodominação sempre encontrou. O repensar de categorias familiares à luz de sua genealogia imperial, a admissão de novas categorias que iluminam estruturas de dominação não registradas no léxico oficial, a complicação de narrativas padrão, abririam o campo cognitivo da autoconcepção atual da disciplina para para possibilitar um autoconhecimento genuíno que as ortodoxias atuais – dada a necessidade de fugir do passado – impedem. Neste quadro revisto, poderia ter lugar um verdadeiro diálogo de iguais que seria mais capaz de abordar e começar a remediar o legado da europolícia, dando assim o devido respeito e justiça aos Outros “não-políticos” sobre os quais por séculos tem sido historicamente imposta.

Assim, há uma política de amnésia tanto no nível filosófico quanto no nível de política pública oficial e dominante. Além disso, afeta não apenas as representações oficiais, ou não-representações, da subordinação estrutural geral do colonialismo e da escravidão, mas também eventos específicos. O exemplo mais conhecido é a recusa do governo belga em assumir a responsabilidade ou educar seus cidadãos sobre o genocídio de dez milhões de pessoas sob o rei Leopoldo II; o fracasso francês em processar qualquer pessoa pelas atrocidades agora publicamente admitidas da Guerra da Argélia, a negação alemã de reparações aos descendentes dos sobreviventes do genocídio dos hererós e namaquas ocorreu no Sudoeste Africano Alemão (atual Namíbia), a não resposta britânica às revelações das atrocidades e torturas de sua guerra de contra-insurgência no Quênia, os assassinatos em massa das guerras coloniais da Itália na Líbia e na Etiópia, e a contínua recusa americana de pedir desculpas pela escravidão.

O dilacerante abandono da população do Saara e a ousada impostura da Espanha enviando monarcas neo-conquistadores que atuam como representantes “empreendedores” das empresas espanholas em Amèrica e no mundo sem com isso ter contribuído para o desvelamento (Dussel) do que foi feito na colonização das Américas. En suma, a dúvida permanente sobre o envolvimento do Estado francês, Inglaterra e dos Estados Unidos da América, entre outros, na desestabilização dos processos revolução democrática e popular e contra os líderes do movimento não alinhados na África e na América, incluindo Fidel Castro (Cuba), Sankara (Burquina Faso), Samora Machel (Moçambique), Maurice Bishop (Granada) e desde os anos 1990 os projetos emancipatórios (que tem a ver com a defesa dos bens comuns) representados por Chávez, Lula e Morales após séculos de não reconhecimento da sua urgência (desigualdade, injustiça,..). No entanto, em outra escala, os exemplos se multiplicam, incluindo inúmeros casos de “doma e castração”, de colonialismo interno europeu, resolvido com golpes ou exterminando o inimigo ideológico interno.

John Rawls incorpora na tradição individualista a ideia de que as sociedades têm padrões de desigualdade que persistem ao longo do tempo e, ao mesmo tempo, formas sistemáticas pelas quais as pessoas são atribuídas a posições dentro de hierarquias de poder, status e dinheiro. Ele rejeita o utilitarismo e suas medidas subjetivistas de bem-estar, a meritocracia, a autopropriedade, ele também propõe uma medida objetiva para avaliar a igualdade e os bens sociais primários, testa regras de prioridade para evitar ou reduzir a arbitrariedade das intuições na tomada de decisões morais, neste ponto, a prioridade da justiça sobre a eficiência e do justo sobre o bom contraria o senso comum da época atual e o estilo do capitalismo na fase neoliberal.

Por fim, é interessante considerar uma vez que não excluiu a possibilidade de que os dois princípios que definem o que é justiça (em seu aparato conceitual) pudessem ser realizados em uma sociedade onde há propriedade social dos meios de produção. Poderíamos acrescentar que John Rawls torna transparente a interferência que as instituições sociais têm na geração, fortalecimento e promoção das desigualdades sociais. No entanto, à luz da história, a “radical igualdade de oportunidades” que nos obriga a corrigir todas as desigualdades provenientes de viver ou nascer em condições sociais infelizes e não escolhidas mostra que qualquer tentativa de equalizar essas condições sob um modelo econômico capitalista terá como consequências grandes movimentos e saídas de capitais ou oposições de tal magnitude que só deixam sangue no país que o tenta.

A lógica profundamente predatória do capital – em sua fase atual – é incompatível com uma sociedade igualitária de bens primários e geração de capacidades, e a prova disso é dada de tempos em tempos por cada Relatório de Desenvolvimento Humano, que apenas ratifica a impossibilidade de materialização desses princípios. As respostas e soluções apontadas por John Rawls ficam aquém da questão da possibilidade de reconciliação em sociedades em que não apenas a crescente diferenciação dos modos de vida ou a pluralidade de concepções morais e sobre o bem existente, mas também coexistem com inúmeras formas de degradação e regressão humana.

Certamente, a redistribuição de bens sociais e primários proposta por John Rawls, com base nos desfavorecidos, é absolutamente insuficiente para uma sociedade como a nossa. Não rompendo com as estruturas que causam pobreza e desigualdade, a intenção de melhorar o resultado de uma situação injusta estabelecida historicamente não faz mais do que manter sua reprodução.

É sustentável em sociedades onde a pluralidade chega ao ponto de negar a dignidade humana, ou onde aqueles que participam da posição original não são todos aqueles que realmente deveriam ser? Como poderiam participar aqueles que não foram reconhecidos, exceto para serem descartados? A teoria de John Rawls evita tratar da relação entre política e grandes consórcios que indubitavelmente influenciam a concentração do poder econômico.Com extrema frequência aliam-se às esferas política e militar para manter seus interesses. A predominância do mercado sobre o Estado não pode ser ignorada, pois o Estado não possui nenhum meio primário de regulação, mas depende do meio do mercado, ou seja, do dinheiro.

Entretanto, o poder mediado atribuído ao Estado e, teoricamente, na maioria das vezes, identificado com o dinheiro, não possui nenhum grau hierárquico primário, dificilmente um grau secundário, pois todas as medidas estatais precisam ser financiadas, não apenas atividades jurídicas, infra-estrutural, etc. Porém, a justiça exige algo mais do que a construção de uma melhor forma de distribuição, mas uma transformação real das estruturas de produção e distribuição. A fragilidade da teoria da justiça apresentada é a crença de que a justiça pode ser realizada dentro do sistema capitalista, ignorando o papel da exploração na criação e manutenção das estruturas de desigualdade existentes, bem como de todas as diversas formas de regressão humana.

Como diz Callinicos, as contribuições de John Rawls sobre a concepção de uma sociedade justa nos levam a pensar que elas só podem ser alcançadas contra o capitalismo neoliberal colonizador. Neste ponto, a teoria rawlsiana da justiça não dá conta da dimensão das identidades, gênero e reconhecimento. Ao rejeitar que as particularidades da história, da cultura e do pertencimento a um grupo definam a escolha dos princípios de justiça, John Rawls aponta sua construção como universalista e abstrata, que deixa de lado as diferenças, a “alteridade”, materializada nas múltiplas minorias que hoje reivindicam seus direitos de participação nas decisões, nem questiona estruturas e contextos sociais como instituições capitalistas e relações de classe. Decorrente disso, segundo o princípio da diferenciação, a predileção pelo cumprimento de certos direitos (aceitando as “vantagens” relativas oferecidas aos mais desfavorecidos) os transforma em uma estrutura fechada, imutável diante do movimento e das lutas das diferentes formas de vida para alcançar a igualdade socioeconômica e o reconhecimento da identidade.

Mesmo sendo reconhecida sua emergência, não houve governo que mudasse o quadro colonialista neoliberal após a crise. Em nosso presente, as medidas neoliberais se intensificaram tanto que grandes eventos como as revelações de Assange e Snowden, que revelam grandes verdades e os casos de corrupção sistêmica bem distribuídos geograficamente, não conseguiram derrubar nenhum governo. Como pode ser que nada mudou? Da mesma forma, com a crise financeira os bancos foram salvos e também não caíram.

O importante é ter em mente a ideia de que as democracias liberais são moldadas. A ausência de ferramentas hermenêuticas em um discurso específico é em si um tipo distinto de injustiça, deixando os subordinados sem os materiais para conceituar e teorizar sobre sua situação. Com certeça, a diferença aqui é que já existe uma tradição anticolonial e antirracista, então não é começar do zero. Mas a recusa em entrar no âmbito legitimado da filosofia política desse corpo de pensamento é, não obstante, uma desvantagem cognitiva, pelo menos para fins de desafiar as estruturas dominantes.

A não nomeação deste sistema político no atual discurso político-filosófico ocidental, em certo sentido, apaga-o da existência, priva-nos dos recursos cognitivos para analisá-lo, ou mesmo falar sobre ele, dada a forma como o campo está atualmente estruturado e enquadrado. Sente-se fora do campo, fora dos limites, transgredindo as regras da disciplina.

*Gabriel Vezeiro é bacharel em filosofia.

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