Vocações para castas

Imagem: Marco Kaufmann
image_pdf

Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A mão invisível que guia as vocações não é biológica, mas social: ela talha as disposições humanas para preencher os papéis que a estrutura produtiva e moral de uma época define como naturais

1.

Há características individuais e/ou psicológicas condutoras de aptidões profissionais? Sujeitos violentos se dirigem para a casta dos policiais ou militares, senão do crime organizado? Sujeitos inteligentes estudam para serem da casta dos intelectuais? Sujeitos místicos acabam por servir à casta dos sacerdotes? Sujeitos líderes são eleitos para a casta dos governantes? Sujeitos empáticos negociam para a casta dos comerciantes ou financistas?

Essa questão-chave – se a natureza humana tende a coincidir com a natureza ocupacional – atravessa campos distintos porque vai da filosofia política à psicologia evolutiva e à sociologia das profissões. Podemos abordá-la em três níveis articulados: antropológico (natureza humana e diferenciação), psicológico (disposições e traços) e histórico-social (formação das castas e especialização funcional).

A hipótese essencialista vê a natureza humana como tivesse uma predisposição ocupacional.

Essa hipótese remonta à Antiguidade – de Platão, em A República, à tradição hindu das castas. Platão propunha a cidade justa exigir a divisão funcional entre: os filósofos, dotados de razão e sabedoria (ouro), os guerreiros, guiados pela coragem (prata), e os trabalhadores, movidos pelos apetites (bronze).

A “natureza” de cada grupo não seria apenas social, mas ontológica: cada tipo humano teria uma alma dominante: racional, irascível ou concupiscente. Esta significa uma pessoa demonstrar um desejo intenso e descontrolado, seja ele por prazeres sensuais (como luxúria) ou por bens materiais (como ganância).

Esse modelo hierárquico naturaliza funções sociais – a inteligência para governar, a força para guerrear, a obediência para trabalhar.

Nas tradições religiosas, o mesmo princípio aparece como dharma: cada um cumpre o papel o qual lhe é próprio ou predestinado. Essa visão legitima a ordem social por uma correspondência “natural” entre o indivíduo e sua função.

2.

Em contraponto, a crítica moderna enxerga uma construção social da vocação. Com o Iluminismo e o surgimento da noção de indivíduo autônomo, a ideia de predisposições fixas perde legitimidade. A ênfase passa à educação, socialização e contexto histórico.

Para Karl Marx, as castas ou funções “naturais” são formas históricas de divisão social do trabalho, não expressões de essência humana. Aquilo aparecido como fosse aptidão inata é, em geral, resultado da adaptação do sujeito às condições materiais. O trabalhador “manual” ou o intelectual “reflexivo” não o são por natureza, mas por posição na estrutura produtiva.

No mesmo sentido, a sociologia de Pierre Bourdieu fala em habitus: disposições duráveis, interiorizadas, mas socialmente formadas – não biológicas. O habitus molda aquilo aparentemente “natural” em nós: o gosto, a linguagem, o corpo, a forma de reagir, o senso prático. Assim, a coincidência entre “natureza” e “ocupação” é produto de uma sedimentação histórica de experiências sociais, não de uma determinação psicológica originária.

A psicologia diferencial e evolutiva, porém, não descarta por completo o papel das predisposições individuais. Estudos sugerem certos traços de personalidade (segundo o modelo dos Big Five) influenciarem preferências ocupacionais. A leitura psicológica contemporânea descobre a diversidade e os nichos funcionais.

TraçoTendência ocupacional associada
Abertura à experiênciaArtes, Pesquisa, Filosofia
ConscienciosidadeAdministração, Contabilidade, Engenharia
ExtroversãoLiderança, Vendas, Política
AmabilidadeDocência, Saúde, Mediação Social
Neuroticismo (baixo desajustamento emocional)Controle Emocional, Defesa, Risco Calculado

Essas correlações não determinam, mas predispõem. O sujeito “corajoso e disciplinado” pode se adaptar melhor à função militar, assim como o “curioso e introspectivo” à vida intelectual.

Contudo, a cultura e a estrutura social definem quais aptidões são valorizadas e como são canalizadas. Isto, em uma sociedade capitalista, assume forma mercantil e hierárquica.

3.

Podemos, então, propor uma leitura sistêmica entre natureza, disposição e estrutura: há potenciais humanos diferenciados (base biológica e psíquica); há processos sociais de canalização e repressão desses potenciais (educação, ideologia, mercado de trabalho, Estado); e há resultados históricos contingentes, nos quais certos tipos de sujeitos são empurrados a ocupar certas funções.

A “coincidência” entre natureza humana e natureza ocupacional é parcial, mediada e retroalimentada: o sistema social seleciona, reforça e reproduz perfis funcionais aparentemente naturais. O policial e o criminoso, por exemplo, podem compartilhar traços (impulsividade, busca de poder, coragem), mas são diferenciados pelo enquadramento institucional e moral.

A natureza humana não tende, por si só, a coincidir com a natureza ocupacional. Ocorre um ajuste recíproco entre predisposições individuais e estruturas sociais capazes de definirem os papéis possíveis – uma espécie de coevolução social e psíquica.

Em termos marxistas, poderíamos dizer: as forças produtivas psíquicas (habilidades, afetos, impulsos) são moldadas pelas relações de produção, e estas, por sua vez, se sustentam na aparência de uma “vocação natural”.

A “casta” de natureza ocupacional é o modo como o sistema traduz, hierarquiza e cristaliza a plasticidade humana.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES