Teoria do valor financeiro

Imagem: Marcos Felipe
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

É necessário elaborar uma teoria do valor financeiro para uma boa interpretação analítica do capitalismo contemporâneo, distante da falácia do espantalho dos denunciantes da “financeirização”

Karl Marx, em O capital: crítica da economia política, faz uma crítica construtiva da economia política clássica de Adam Smith e David Ricardo, entre outros, apresentando uma alternativa em seu lugar. Sua compreensão se completa com a leitura de três livros.

O Livro I, O processo de produção do capital, foi o único da série publicado por Marx em vida, em 1867. O Livro II, O processo de circulação do capital (1885), e o Livro III, O processo global da produção capitalista (1894) foram publicados postumamente por seu fiel companheiro Friedrich Engels a partir de manuscritos e anotações de Karl Marx.

Em geral, apenas o primeiro volume é lido pela maioria dos marxistas. Com a preguiça de enfrentar 1700 páginas de prosa do século XIX, desconhecem toda a estrutura do abstrato ao concreto e a metodologia do capital em geral para a competição/cooperação dos capitais em particular dos três volumes de O capital.

Marx, no Livro I, parte da teoria do valor trabalho para no fim chegar ao início do capitalismo, apresentando as pré-condições para sua existência na acumulação primitiva de capital-dinheiro e na libertação da força de trabalho da escravidão ou da servidão. O encontro de ambos, em uma contratação de trabalho assalariado, principalmente após a Revolução Industrial, definiria sua relação de produção, típica em dada base técnica.

No Livro I, Marx inicia com a mercadoria, analisando a relação entre valor de uso e valor de troca. Em seguida, explora a forma do valor e a fetichização da mercadoria. Depois, desenvolve a teoria do valor-trabalho, a mais-valia e a exploração do trabalho no sistema capitalista. Passa então a abordar a acumulação de capital, as crises e o ciclo econômico. Examina a história das teorias do valor e a transição da mercadoria ao dinheiro e conclui com a transformação do dinheiro em capital e a transformação da mais-valia em lucro.

Marx utiliza o método dialético, analisando as contradições e transformações internas do sistema capitalista como um todo – e não só produtivas. Emprega uma análise histórica e crítica das categorias econômicas para revelar as relações sociais subjacentes.

No Livro II, inicia com a transformação do dinheiro em capital variável e a circulação do capital. Examina, em seguida, a reprodução simples e a reprodução ampliada do capital. Explora a metamorfose do capital e o circuito global do capital. Conclui com as formas específicas de capital e suas leis.

Este volume é frequentemente considerado mais técnico, focando nas categorias econômicas introduzidas no primeiro volume. Marx aprofunda a análise do ciclo de reprodução do capital, conectando a produção ao consumo. Os marxistas o saltam…

O Livro III inicia-se com a transformação mais-valia em taxa de lucro. Aborda a lei da média da taxa de lucro, a renda da terra, o capital comercial e a renda do capital. Explora a divisão do lucro em juros e lucro do empresário. Conclui com o processo global de acumulação de capital, de maneira mais realista, embora tenha sido escrito em meados do século XIX, quando o sistema bancário ainda não tinha se espraiado em redes de agências – e poucos Bancos Centrais existiam. Raros marxistas o leem…

Para entender o capitalismo contemporâneo sem pré-conceitos contra os rentistas e/ou os usurários, como tinham os cristãos medievais, os marxistas deveriam ler com a maior atenção o Livro III. Marx expõe o papel do crédito na produção capitalista e a divisão do lucro em juro e ganho empresarial. Destaca as partes constitutivas do capital bancário. Distingue renda em trabalho, produtos, dinheiro e arrendamento, distinguindo entre relações de produção e relações de distribuição. Engels acrescenta um tópico sobre bolsa de valores. O “capital fictício” (sic) não se contrapõe à economia real…

A teoria do valor-trabalho de Karl Marx busca explicar a origem do valor econômico em uma sociedade capitalista. O valor de uma mercadoria seria determinado pelo tempo médio necessário para produzi-la, utilizando o nível de habilidade e produtividade socialmente predominante. É conhecido como trabalho socialmente necessário.

Marx distingue entre valor de uso e valor de troca de uma mercadoria. O primeiro refere-se à utilidade prática de uma mercadoria, enquanto o segundo representa a relação de troca dessa mercadoria com outras mercadorias no mercado.

Na esfera do valor de troca, o trabalho humano se torna trabalho abstrato. Isso significa que, na determinação do valor, o tipo específico de trabalho realizado é irrelevante. O importante é a quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário.

Marx relaciona a teoria do valor-trabalho à exploração capitalista. Os trabalhadores venderiam sua força de trabalho por um salário equivalente ao valor necessário para reproduzir essa força de trabalho (comida, moradia etc.). No entanto, durante o processo de produção, os trabalhadores criam mais valor (mais-valia) diante o valor de sua força de trabalho. Essa mais-valia é a fonte dos lucros para os capitalistas.

Destaca as contradições inerentes à produção capitalista, incluindo a tendência à queda na taxa de lucro, devido à pressão para aumentar a produtividade com tecnologia e a maior exploração dos trabalhadores. Para Marx, essas contradições levariam eventualmente a crises e à necessidade de transformação social.

Essa teoria do valor-trabalho de Marx foi sujeita a críticas e interpretações diversas. Economistas ortodoxos discordam dela por conta do individualismo metodológico predominante na economia neoclássica: o valor seria subjetivo, atribuído pelo valor de uso pelos consumidores em negociação com os ofertantes no mercado.

A teoria do valor subjetivo destaca o valor de uma mercadoria ser determinado pela utilidade subjetiva, atribuído pelos indivíduos a ela, com base em suas preferências, necessidades e circunstâncias individuais. Portanto, o valor de uma mercadoria seria derivado da utilidade marginal, isto é, a satisfação ou utilidade adicional obtida por um indivíduo ao consumir uma unidade adicional dessa mercadoria. Se o consumo vai aumentando, a utilidade marginal se torna decrescente.

No contexto de um mercado de trocas voluntárias, os preços seriam determinados pela interação entre a oferta e a demanda. Refletiriam as preferências subjetivas dos consumidores e as precificações dos produtores. As trocas voluntárias ocorrem quando ambas as partes percebem estarem obtendo um benefício (utilidade) com a transação.

Os defensores da teoria do valor subjetivo argumentam ela fornecer uma base mais sólida para explicar a alocação eficiente de recursos em uma economia de mercado. Os preços, derivados da utilidade subjetiva, transmitiriam informações importantes sobre escassez e demanda, orientando as decisões dos agentes econômicos.

Hoje, é necessário elaborar uma teoria do valor financeiro para uma boa interpretação analítica do capitalismo contemporâneo, distante da falácia do espantalho dos denunciantes da “financeirização”. Apresentam de forma caricata o argumento de especialistas em economia bancária, com o objetivo de atacar essa falsa ideia em vez do argumento em si de quem explica o sistema econômico-financeiro como um todo.

A teoria do valor financeiro não é ainda uma teoria econômica consolidada com o mesmo status das teorias do valor clássicas ou neoclássicas. No entanto, é possível abordar o conceito explorando como o valor é percebido, avaliado e acumulado no contexto financeiro.

O valor financeiro é expresso em termos monetários como o capital-dinheiro. No contexto econômico, o dinheiro serve como uma unidade comum de medida ao facilitar a comparação e troca de diferentes bens e ativos, ou seja, funciona como unidade de conta, meio de pagamentos e reserva de valor.

Na teoria de portfólio, o valor de um ativo está relacionado à busca de equilíbrio entre risco e retorno. Investidores avaliam ativos com base na expectativa de retornos futuros e na tolerância ao risco de correlacionar os movimentos de seus valores.

O valor financeiro de um ativo (forma de manutenção de riqueza) está ligado aos seus fluxos de caixa futuros. Seja em investimentos, títulos de dívida ou ações, os investidores avaliam o valor presente dos benefícios esperados ao longo do tempo futuro.

Essa percepção subjetiva e incerta desempenha um papel crucial na teoria do valor financeiro. A valoração de ativos é influenciada pelas somas conflitivas das preferências individuais, expectativas e circunstâncias específicas de todos os investidores.

O valor financeiro de títulos e ações é estabelecido nos mercados financeiros, onde os preços são determinados pela oferta e demanda em mercados secundários como na bolsa de valores. Esses preços refletem as avaliações coletivas dos participantes do mercado sobre o valor dos diversos ativos.

A teoria do valor financeiro enfoca também a alocação eficiente de capital. Os recursos financeiros devem ser alocados de maneira a maximizar o valor global para a economia.

O segredo do negócio capitalista é a alavancagem financeira com recursos de terceiros. Somar capital de terceiros ao capital próprio propicia aumento da economia de escala e maior lucro operacional, mesmo considerando as despesas financeiras com os empréstimos. Aumenta a rentabilidade patrimonial do capital em empreendimentos.

A criação de novos instrumentos e produtos financeiros influencia a percepção e o valor financeiro. Inovações financeiras, como derivativos, oferecem novas maneiras de gerenciar riscos, acessar investimentos ou otimizar estratégias financeiras.

A regulação e a governança também desempenham um papel na determinação do valor financeiro. A confiança nas instituições financeiras, a transparência e a conformidade regulatória impactam a percepção do valor de uma entidade ou ativo financeiro.

Essa teoria aqui esboçada é uma tentativa de explorar o conceito de valor no contexto financeiro do capitalismo contemporâneo. A complexidade e a dinâmica do sistema financeiro, onde todos os agentes econômicos são clientes e/ou participantes, fazem o valor financeiro ser variável, multifacetado e sujeito a uma variedade de influências interativas.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]


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