O fracasso dos EUA no Afeganistão

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Por JOSÉ LUÍS FIORI*

As estranhas derrotas de uma potência que não para de se expandir e acumular poder

“O poder político é fluxo, mais do que estoque. Para existir precisa ser exercido; precisa se reproduzir e ser acumulado permanentemente. E o ato de conquista é a força originária que instaura e acumula poder”. (J. L. Fiori, O poder global e a nova geopolítica das nações).

Na madrugada do dia 2 de julho de 2021, as tropas norte-americanas se retiraram de forma sorrateira de sua base militar de Bragam, a última e mais importante base dos EUA no Afeganistão, depois de uma guerra que durou exatamente 20 anos e acabou de forma absolutamente desastrosa. No conflito morreram 240 mil afegãos e cerca de 2.500 militares americanos; os americanos ganharam muitas batalhas, mas finalmente perderam a guerra, e seu exército deixa para trás um país destruído e dividido, às portas de uma nova e violenta guerra civil entre as forças do Talibã e do atual governo afegão.

Neste momento, as forças talibãs vêm avançando por todos os lados e a
perspectiva é que assumam o governo central do país muito mais cedo que tarde.
Ainda mais surpreendente ou chocante é acompanhar as conversações de paz entre os dois lados do atual conflito afegão, que negociam as possibilidades de um pacto de convivência em Teerã, sob o patrocínio do governo iraniano arqui-inimigo dos EUA. Ao mesmo tempo, os países membros da Organização para Cooperação de Shangai, sob a liderança da China e da Rússia, também se mobilizam para encontrar uma fórmula que pacifique o país, e sobretudo impeça que o fundamentalismo talibã se expanda além das fronteiras do Afeganistão ameaçando seus vizinhos, incluindo a própria China.

Ou seja, depois dos atentados de 11 de setembro e de 20 anos de guerra, os EUA conseguiram promover uma cambalhota entregando o Afeganistão de volta aos seus principais inimigos militares desde o primeiro minuto dos bombardeios americanos no território afegão, então controlado pelas forças talibãs. O surpreendente em tudo isso, entretanto, é que não se trata de uma situação excepcional, ou de uma derrota imprevista. Pelo contrário, esta parece ter sido a regra nas guerras americanas depois da Segunda Guerra Mundial.

Os EUA lideraram as forças da ONU na Guerra da Coreia, entre 1950 e 1953, e depois de três anos de avanços e recuos foram obrigados a assinar uma trégua que já dura 67 anos, com as tropas do Exército Popular da Coreia e com os representantes do Exército de Voluntário do Povo Chinês, em 27 de agosto de 1953. Depois, os norte-americanos foram derrotados na Guerra do Vietnã, de onde tiveram que se retirar de forma quase tão ou mais vergonhosa do que agora no Afeganistão, culminando com a famosa cena da evacuação da embaixada americana em Saigon e a retirada apressada, por helicópteros, do pessoal civil e militar que ainda estava na capital sul-vietnamita, às vésperas de sua ocupação pelas tropas comandadas pelo general Van Tien Dung, do Vietnã do Norte, no dia 30 de abril de 1975.

Algum tempo depois dessa humilhação histórica, os EUA lideraram uma nova coalisão das Nações Unidas e venceram a Guerra do Golfo de 1991, mas após matar cerca de 150 mil iraquianos, desistiram de tomar Bagdá e depor e substituir o presidente Saddam Hussein. Este havia sido protegido e aliado militar dos americanos durante a guerra Irã-Iraque, na década de 80, e depois foi transformado no seu grande inimigo nas duas guerras dos EUA contra o Iraque. Da mesma forma, em 2003, as tropas americanas, apoiadas por soldados ingleses, voltaram a derrotar os iraquianos e desta vez mataram seu presidente, mas em seguida “perderam o fio da meada” e acabaram entregando o Iraque aos seus principais inimigos, os xiitas iranianos.

Depois disto, os americanos se envolveram na guerra civil da Líbia, ajudaram a matar seu presidente e antigo aliado, Muammar al-Gaddafi, e acabaram abandonando o país à sua própria sorte, destruído e dividido em estado de guerra civil crônica até hoje. E algo análogo teria ocorrido na Síria, se não tivesse havido a intervenção militar russa que sustentou o presidente Bashar al-Assad, deu uma contribuição decisiva para derrotar as tropas do chamado Estado Islâmico, e agora vem liderando o esforço de juntar os pedaços de um país inteiramente destruído, dividido e na mais absoluta miséria. E tudo indica que o mesmo voltará a acontecer em alguns meses mais, depois dos Estados Unidos retirarem seu apoio militar à intervenção da Arábia Saudita no Iêmen.

Deve-se agregar a esse quadro de derrotas e fracassos sucessivos da diplomacia e das tropas norte-americanas, o distanciamento de seus antigos aliados, Paquistão e Turquia, cada vez mais próximos da zona de influência russa e chinesa. Uma perda de influência que se reflete na ausência americana das negociações que estão em pleno curso em vários pontos do Oriente Médio e da Ásia Central visando pacificar o “Grande Médio Oriente”, inventado pelo governo Bush e destruído pelas sucessivas administrações democratas e republicanas destes últimos 30 anos.

Pode-se lembrar aqui, como um verdadeiro ponto de inflexão nesta história, a irrelevância dos EUA no conflito recente entre o Azerbaijão e a Armênia, em torno ao território disputado de Nagorno-Karabakh, e sua completa irrelevância nas negociações da trégua que foi lograda com a mediação e tutela da Rússia e da Turquia.

No entanto, realmente difícil de entender e explicar é como os EUA atravessaram todas essas derrotas ou fracassos no logro de seus objetivos imediatos, sem perder seu poder global. Mais do que isso, como conseguiram aumentar seu poder a cada nova derrota? Uma pergunta muito importante para entender o passado do sistema mundial em que vivemos, mas muito mais importante ainda para pensar sobre o seu futuro.

Mas, ao mesmo tempo, uma pergunta que não tem uma resposta imediata e conjuntural, e só pode encontrar ou explicação recorrendo-se à história de longo prazo do sistema de Estados nacionais que nasceu na Europa entre os séculos XVII e XVIII, e que depois se universalizou nos séculos XIX e XX, através da expansão e das conquistas das grandes potências coloniais europeias. Durante toda a história deste sistema de Estados nacionais, houve sempre Estados ganhadores e Estados perdedores, e o sistema como um todo foi sempre competitivo, bélico e expansivo. E todos os seus “membros” foram obrigados a competir e fazer guerra para sobreviver nesta verdadeira corrida pelo poder e pela conquista de uma riqueza maior do que a de seus competidores, até porque a acumulação da riqueza se transformou numa peça fundamental da luta pelo poder.

Como disse uma vez o grande historiador e psicanalista alemão Norbert Elias, a regra básica do sistema de Estados nacionais inventado pelos europeus é: “quem não sobe, cai” –uma regra válida mesmo para as grandes potências que já se encontram na frente desta corrida sem fim. Ou seja, mesmo as chamadas “grandes potências” desse sistema estão obrigadas a se expandir permanentemente, aumentando seu poder e sua riqueza, para seguir ocupando as posições que já ocupam e necessitam preservar através de suas novas conquistas e guerras que apontam na direção da criação de um império universal que conseguisse monopolizar o poder dentro do sistema internacional. Só que esse “império universal” é uma impossibilidade lógica dentro do próprio sistema, porque se ele se realizasse, o sistema se desintegraria ou entraria em estado de entropia, por causa do desaparecimento da própria competição, que é de onde vem a energia que move todo o sistema que funciona em conjunto como se fosse uma verdadeira máquina de criação de mais poder e de mais riqueza.

Por isso mesmo, a preparação para a guerra e as próprias guerras não impedem a convivência, a complementaridade e até alianças e fusões entre os Estados envolvidos nos conflitos. Às vezes predomina o conflito, às vezes a complementaridade, mas é esta “dialética” que permite a existência de períodos mais ou menos prolongados de paz dentro do sistema mundial, sem que se interrompam a concorrência e o conflito latente entre seus Estados mais poderosos. A própria “potência líder” ou “hegemônica” precisa seguir expandindo seu poder de forma contínua, para manter sua posição relativa, como já dissemos, mas também para manter vivo o seu poder. O poder dentro deste sistema é fluxo, é conquista, e ele só existe enquanto é exercido, não importa se afinal os vencedores conseguem impor ou não os objetivos imediatos em cada uma de suas guerras.

Por mais absurdo que possa parecer, nesse sistema é mais importante que seus Estados líderes façam guerras sucessivas e demonstrem seu poder militar, do que consigam realizar os seus objetivos que são declarados e utilizados para justificar seu exercício sem fim de novas guerras. O passado confirma que a potência líder do sistema, fosse ela a Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX, ou os EUA, no século XX, foram os Estados que fizeram mais guerras durante toda a história do sistema interestatal que foi inventado pelos europeus, e o número destes conflitos iniciados por estas duas potências líderes aumentou com o tempo e na medida em vez de diminuir na medida em que foi aumentando o poder destas duas grandes duas potências anglo-saxônicas que lideraram o sistema internacional nos últimos 300 anos.

É por isto mesmo, aliás, que as grandes potências acabam por ser também as principais “desestabilizadoras” da ordem mundial, sendo que a sua “potência hegemônica” é invariavelmente quem destrói com mais frequência as regras e instituições que ela mesma construiu e tutelou num momento anterior da história. Exemplo disso é quando, em 1973, os EUA se desfizeram do “padrão monetário dólar-ouro” que eles próprios haviam criado em Bretton Woods em 1944. E agora mais recentemente, quando o governo de Donald Trump passou a atacar e destruir todas as regras e instituições criadas e tuteladas pelos EUA desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em particular após o fim da Guerra Fria.

Por fim, resumindo e voltando à discussão sobre as sucessivas derrotas americanas no período em que os Estados Unidos estiveram no epicentro do sistema mundial e do seu movimento permanente de expansão: do nosso ponto de vista, o sistema mundial é um “universo em expansão”, onde todos os Estados que lutam pelo “poder global” – em particular, a potência líder ou hegemônica – estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. Por essa razão, crises, guerras e derrotas não são, necessariamente, o anúncio do “fim” ou do “colapso” da potência derrotada. Pelo contrário, podem ser uma parte essencial e necessária da acumulação de seu poder e riqueza, e anúncio de novas inciativas, guerras e conquistas. O que passou já ficou para trás, como se fosse uma perda de estoque que não altera necessariamente o fluxo do seu poder dirigido para frente e para novas competições e conquistas.

E é isto exatamente que está acontecendo, agora, do nosso ponto de vista, quando os Estados Unidos estão realinhando suas forças, suas velhas alianças, e preparando todos os seus estados vassalos, para a disputa de poder e riqueza que já em curso dentro do novo eixo asiático do sistema mundial. E, em particular, para enfrentar o seu novo grande desafio e motor do seu próprio poder: a China. E deste ponto de vista, aliás, a própria retirada americana do Oriente Médio e da Ásia Central pode ser vista como parte desta nova disputa, e como uma forma de fragilizar seu novo adversário, desencadeando uma explosão fundamentalista e uma grande guerra religiosa e civil no território que os Estados Unidos estão abandonando, situado exatamente na retaguarda continental da China.

*José Luís Fiori é professor do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).

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