Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Trechos do Posfácio do livro recém-editado de José Agudo
A Michael M. Hall, que me apresentou este romance
Pelos interstícios do cânone
Para melhor apreciar Gente rica impõe-se atentar para o pano de fundo constituído pela tradição a que pertence: a de um nicho satírico muito especial dentro da ficção de costumes urbanos.
Na virada de século, prolongando-se até 1922 ou mesmo mais adiante, a literatura brasileira teve manifestações estimulantes que ficariam meio encobertas pelo fulgor da Semana de Arte Moderna. Entre elas, um forte veio crítico que vincou sobretudo a ficção, embora aparecesse também na crônica, no teatro, na caricatura ou na charge.[i]
O termo abrangente “pré-modernismo”,[ii] como se convencionou chamar, tem limites – não rígidos mas permitindo certo transbordamento – que assinalam o fim de uma era e a aurora de outra. São aproximadamente fixados pela morte de Machado de Assis em 1908 e de Lima Barreto em 1922. Ou então pela publicação de Os sertões, de Euclides da Cunha, em 1902, e pela eclosão da Semana de Arte Moderna em 1922. Ou ainda por 1889, ano da proclamação da República e início da República Velha, até seu fim, marcado pela chegada de Getúlio Vargas ao poder em 1930.
O estopim para essa safra romanesca foi o súbito advento da modernização trazida pela passagem brusca do Império para a República, tendência que se radicalizaria cada vez mais nos tempos a vir, tornando-se escancarada na grande reforma urbana do Rio de Janeiro. A modernização material e institucional acarretaria uma metamorfose dos costumes que não deixaria pedra sobre pedra.
A cavaleiro de dois séculos, parte dessa safra oscila entre a belle époque e o pré-modernismo. Nesse período, vários romancistas produziam: alguns ligados ao passado como Coelho Neto; ou à transição, como Graça Aranha, que aderiria entusiasticamente ao modernismo, pelo menos em atuação; ou ainda ao futuro, como Monteiro Lobato, estreando em 1919 com os contos de Urupês.
É dentro desse período que tem vigência o nicho ao qual pertence Gente rica, constituindo um recorte no romance de costumes, que é satírico e arrasador. Apesar de ter feito muito sucesso em seu tempo, romances como esse se restringiam à crítica das elites, numa visão pouco distante da superficialidade ou da crônica social.[iii]Quanto ao estilo, já tinha passado pelo crivo do naturalismo, cujas marcas carrega. Apesar do êxito, esses romances deslizaram como que por interstícios do sistema literário e cultural, caindo no olvido. Para apreciar melhor as ousadias de Gente rica, o leitor deve preparar-se para percorrer um caminho sinuoso, retraçando sua trajetória.
Entretanto, nesse quadro geral que estamos descrevendo, há uma exceção, digna de nota, desenhando sua antítese: um escritor a contracorrente, que adere aos pobres, ao subúrbio e aos excluídos da grande modernização urbana que, em curso no período, beneficia os ricos e seus apaniguados, enquanto prejudica os já desafortunados – Lima Barreto.
[…]
Romance urbano e crítica de costumes
A poderosa tendência do romance urbano, mais fecunda no foco da modernização constituído pelo Rio de Janeiro que no restante do país, engrossaria até se tornar uma caudal com picos de alta realização, a exemplo de Lima Barreto. Essa tendência costuma ter como padrão inicial uma obra despretensiosa, publicada em forma de livro em 1854 depois de ter saído em folhetins de jornal um ano antes: Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.
Precursor dos romances aqui examinados, é de veia cômica ou humorística, mostrando uma extraordinária acuidade para a crítica social. Sem prejuízo dos de Joaquim Manuel de Macedo, foi um dos primeiros e mais relevantes romances baseados em crônica de costumes urbanos a surgir, destacando-se entre os contemporâneos, mantendo até hoje uma corte de admiradores.[iv] Preito aos encantos do Rio de Janeiro, é incomparável porque recua até priscas eras e revive com vivacidade o que se passava na cidade no tempo de d. João vi. Situado no limiar entre romantismo e realismo, ao adotar uma perspectiva cheia de humor, entre mordaz e benevolente, vai desdobrando um olho crítico que trata de submeter tudo ao rebaixamento cômico. Personagens caricatas se sucedem a eventos quase inverossímeis de esperteza. O protagonista, Leonardo, através de expedientes e muito jogo de cintura consegue tudo o que quer. Apesar disso, o romance revela uma lúcida compreensão do funcionamento da incipiente sociedade brasileira, onde tudo se resolvia na base do favor pessoal, à falta de critérios objetivos para uma vida coletiva civil. Intuitivamente, Leonardo compreende as vantagens que pode tirar desse quadro geral, valendo-se disso para sair-se bem sem trabalhar e sem fazer esforço algum. O romance é uma graça: o narrador trata as malandragens e peraltices de Leonardo com indulgência plena.
Estruturado como uma alternância de quadro/ação, o romance sabiamente instiga o interesse do leitor pelas tramoias do entrecho e pelas travessuras de Leonardo, enquanto insere entre esses episódios cenas folclóricas do Rio Antigo, com tudo aquilo que era tão pitoresco quanto típico. Sintomaticamente, seu jovem autor era cronista de jornal, aliás de um jornal da capital do país, e o romance foi publicado por capítulos em série. Como veremos, essa combinação de escritor com cronista de jornal seria privilegiada nos tempos a seguir.
Mas os ancestrais desse romance satírico que faz a crítica das elites em país escravista remontam ao “tempo do rei”, ou seja, o período que sucedeu ao portentoso desembarque do príncipe regente d. João, futuro rei d. João VI, com toda a sua corte de 15 mil pessoas. Os precursores já anunciam o destino dessas obras: nunca no patamar superior da boa literatura, ou da literatura com ambição de alta arte. Mas sim algo mais ao rés do chão, mais desafetado, mais popularesco talvez, e que certamente ia ao encontro de seus numerosos leitores. Foi assim que Joaquim Manuel de Macedo, longe de ser apenas o autor de romances edulcorados como A Moreninha (1844) e O moço loiro (1845), mostrou depois ter mais de uma corda em sua lira. Escreveria outros de amena denúncia social ou ao menos de crítica de costumes, como os divertidíssimos As mulheres de mantilha (1870) e Memórias do sobrinho de meu tio (1867).[v] E isso, em pleno romantismo, a que, quando convinha, ele fazia sua genuflexão, como foi o caso de A Moreninha e O moço loiro.
Em Memórias do sobrinho de meu tio, a crítica de costumes concentra-se na camada política: corrupção e roubalheira, alianças entre líderes desonestos, troca de favores. O sobrinho quer fazer carreira política, para também se locupletar, e vai aprendendo e ensinando ao leitor os segredos do ofício, numa radiografia da prática político-eleitoral no país. Anárquico e irreverente, retrocede cem anos, ao tempo em que a capital do Brasil transferiu-se da Bahia para o Rio de Janeiro, durante a gestão do primeiro vice-rei, conde da Cunha (1763-67), que é personagem de algum destaque.
Dessa época é possível resgatar romances que caíram no ostracismo e dos quais só alguns poucos eruditos ouviram falar. Contemporâneo a esses é o caso de A família Agulha(1870),[vi] conforme a folha de rosto um “romance humorístico” de Luís Guimarães Jr., retirado da poeira dos arquivos há não muito tempo por Flora Süssekind. Numa narrativa “em zigue-zague” que vai e volta, que refuga e subverte, esse romance corteja sem problemas o absurdo, o grotesco e até o disparate.[vii]
República e modernização
Só quem se postasse do lado de lá da linha demarcatória constituída pelo advento da República seria capaz de aquilatar o que ela significou para o panorama cultural brasileiro. A presença da monarquia e da escravidão havia sido um marco gritante do atraso do Brasil no concerto das nações, e mesmo no quadro da América Latina. Por isso, a proclamação da República foi saudada como um salto na modernidade: uma nação moderna que se prezasse não podia ter rei nem escravos. Trazendo imediatamente em seu bojo um sem-número de modificações e inovações que mudaram a face do país, a República tornou-se especialmente visível na capital, o Rio de Janeiro.[viii] O restante do Brasil só muito lentamente absorveria a modernização, recalcitrando ante suas novidades, permanecendo como bastião do patriarcalismo, da oligarquia e do coronelismo.
Os traços gerais dessa evolução são ressaltados em duas obras literárias que aparecem logo, ainda antes do fim do século, portando o título de A capital federal. A primeira, de 1894, é um romance do copioso escritor de imenso sucesso que é Coelho Neto. A segunda, de 1897, é uma peça de teatro, aliás a mais famosa de outro fecundo autor, Artur Azevedo,[ix] também o dramaturgo de maior êxito na época, criador de abundantes comédias, operetas, burletas, óperas-cômicas, revistas, vaudeviles, entreatos, paródias etc., no âmbito de uma lira nada emproada mas teatralmente eficaz. Essa peça é por ele caracterizada como “comédia opereta de costumes brasileiros”. Romance e peça apresentam um esquema básico similar, e é evidente que tratavam de lidar literariamente com a novidade que era uma república de homens livres. Ambos repousam sobre o contraste entre o interior e o Rio de Janeiro, mostrando no romance a candura de um jovem matuto a passeio e, na peça, a de uma família mineira que vem conhecer a cidade grande. Tanto num caso como em outro, seduzidos pelas maravilhas da metrópole e à mercê de espertalhões, as personagens decidem-se pelo que dizem ser a simplicidade, a pureza e os hábitos mais austeros. Que seriam então os encantos da hinterlândia, após a deliciosa vertigem dos perigos que a capital oferece.
O vetusto tema literário do fugere urbem (= fugir da cidade), que vem desde a Antiguidade greco-romana, é assim reencenado em novas roupagens, e roupagens brasileiras posteriores a seu uso pelas convenções da Arcádia. O tema vai também marcar o regionalismo, que contrapõe cidade e campo, mantendo o contraste entre um pólo como lugar de todos os vícios e o outro pólo como lugar de todas as virtudes. Apenas ficaria imune Lima Barreto, que faria o processo da ilusão bucólica em Triste fim de Policarpo Quaresma. A notar que quem escreve não arreda pé da cidade, apesar de todas as objurgatórias. O tema nos estudos literários já rendeu muito, o que comprovam obras clássicas como as de Curtius e de Raymond Williams.[x]
Tanto o romance como a peça de teatro dedicam-se a esmiuçar a vida pública e privada da metrópole, em seus usos e costumes, e especialmente aquilo que estava em transição. E que, mudança ou novidade, trazia uma fisionomia inédita para o Rio.
Essas transformações logo seriam visíveis, com a força de um abalo sísmico ou outro vasto desastre natural, na face exposta do Rio de Janeiro quando da Reforma Pereira Passos, assim nomeada em função de seu prefeito e mentor, em 1904. Sem dúvida, a capital do mundo era Paris, e pelo planeta afora as intervenções urbanísticas copiavam o modelo da Reforma Haussmann,[xi] que visava prioritariamente a afeiçoar o tecido urbano para controlar insurreições, no rescaldo da Comuna de 1871.
No Brasil, ou no Rio de Janeiro mais do que no Brasil, a modernização finalmente sobreveio. É o que reflete a escrita da época, tanto a dos romances como a das crônicas nos jornais – ainda mais quando se sabe que provinham dos mesmos autores. Esses escritores entregaram-se, pela imprensa, a uma discussão diária a respeito do que fosse a modernização, palpável na caliça que pairava de tanta demolição, nos escombros à vista e no entulho que se acumulava.
Não foi à toa que a verve plebeia cunhou para o fenômeno o apelido de Bota-Abaixo, carimbando essa fase do Rio. Os pobres até então moravam nos bairros do centro (Cidade Nova, Estácio etc.) e, expulsos, a partir de então foram ocupando a periferia bem como, mais salientes, as favelas nas alturas.
Tudo mudava, tudo se transformava: a tecnologia, nessa era de invenções e descobertas, comandava a mudança. O fulgor da luz elétrica fazia, da noite, dia, e escancarava todos os recônditos antes na sombra, substituindo os fracos bicos de gás na iluminação das ruas. O bonde abandonava a tração animal e adotava a tração elétrica. O automóvel fazia sua irrupção, alarmando os transeuntes. Enquanto isso, saias e cabelos encurtavam.
Entra em cena a publicidade, que domina jornais e revistas, mas também se faz presente nos anúncios dos bondes, para alguns dos quais o próprio Olavo Bilac mobilizou sua musa. A publicidade então se chamava em francês e no feminino “a réclame”, que Artur Azevedo utilizou como título de um conto hilário, mostrando o dedo da propaganda até numa aventura galante.
É contemporânea a voga das estações balneárias, que se multiplicam e são como que extensões do Rio e de São Paulo, de onde provém sua freguesia. O poder público colabora, decretando políticas de saúde.
A frequentação de cafés e confeitarias como a Pascoal ou a Colombo é de rigor no Rio de Janeiro, a par com o desenvolvimento da boemia de intelectuais, artistas e jornalistas. Mas sem incluir Lima Barreto, que também era boêmio, porém cliente de freges e botequins de má reputação. Até então o teatro, antes que se instaure a ida às salas de cinema, era o lugar ideal para ver e ser visto. Como Gente rica trata de mostrar, tais hábitos se encontram também em São Paulo: suas personagens frequentam cafés e restaurantes chamados Rotisserie Sportsman ou Castelões, vão ao Teatro Santana assistir à peça A dama das camélias, lotam as matinês do cinema Radium.
O disco e o fonógrafo, anteriores ao rádio e seu longo alcance, ajudam a encurtar as distâncias, corroborados ainda pelo telefone e pelo telégrafo. Não só dão origem a novos hábitos auditivos, como facilitam a sociabilidade da dança de par enlaçado. E, com esta, o temor dos efeitos deletérios do execrado maxixe, com seu agarramento e meneios tachados de lúbricos, acoimado por toda parte como “dança de negros”. Daí a pouco surgiria uma grande criação tríplice do povo brasileiro: o samba, a escola de samba e o Carnaval em versão carioca.
Entre os escritores, Olavo Bilac brilhou como incansável arauto de novos costumes. Seus milhares de crônicas periodísticas mostram como assumiu papel de liderança, patrocinando causas progressistas, evoluindo de defensor da ginástica, dos esportes e do atletismo até desembocar no patriotismo e na campanha pelo serviço militar obrigatório.[xii]
[…]
A safra paulista
Os tempos assistem ao despontar, em São Paulo, de alguns romances de costumes com alçada de crítica ou denúncia social, a exemplo desses que viemos examinando. Como se, vendo o que acontecia na literatura carioca, tão opulenta, os autores se sentissem espicaçados a reivindicar igualmente uma presença nesse nicho do panorama das letras, mesmo fora do Rio de Janeiro.
O mais bem realizado dentre eles é Madame Pommery (1920), de Hilário Tácito.[xiii] A protagonista é a dona do bordel Paraíso Reencontrado, polo de atração da elite paulistana. O título enfatiza o embelezamento de seu verdadeiro nome de “polaca”, como então se dizia, o de Pomerikovsky. Já o nome de guerra deriva do champanha francês que jorra aos borbotões em seu salão. Sátira notável e impagável à hipocrisia e outros maus hábitos dessa classe, é deslavada ao insistir na função civilizatória e modernizadora da instituição bordel. Cabe-lhe a rara distinção de ter sido elogiada por Lima Barreto em crônica.
Outro exemplo é Roupa suja (1923), de Moacyr Piza. Autor de um romance escandaloso, mais um sobre a elite paulistana, Moacyr Piza seria igualmente protagonista de um escândalo na vida real, em torno de uma certa Nenê Romano, estopim de um duelo que não houve. Mas dois anos depois ele a mata com um tiro e se mata também, dentro de um carro na avenida Angélica. O título de seu romance provou-se profético.
Sobre todos esses autores e romances, cariocas, paulistas ou de outras plagas, pairava a sombra descomunal e europeia de Pitigrilli, pseudônimo do italiano Dino Segre. Autor do que na Europa se chamava “romance popular”, era figura pitoresca, jornalista de frases ribombantes e provocadoras, entre outros desempenhos para os fãs. Uma lista de títulos, apenas, já dá ideia de seu parentesco com os escritores que viemos examinando: Mamíferos de luxo (1920), O cinto de castidade (1921), Cocaína (1921), Ultraje ao pudor (1922), A virgem de 18 quilates (1924).Autor prolífico, essa é uma pequena amostra de sua torrencial obra. Que a amostra não desnorteie o leitor: ele já escrevia antes de 1920 e continuaria a escrever após 1924, com reviravoltas de vida e de residência, entre Itália, Paris e Argentina. Era campeão de bilheteria, livro seu seria quase certeiramente um best-seller, pelo menos em sua fase de maior popularidade. Foi, em tempos mais amenos, alcunhado de “romancista pornográfico”. A exemplo dos brasileiros, também desapareceu.
A “gente rica” de São Paulo
Uma sátira à elite da cidade de São Paulo é o que o leitor tem em mãos, cidade que também se modernizava sem o esplendor e a pompa da capital do país. O romance procede sistematicamente ao exame das diferentes encarnações das principais forças sociais que detêm o poder. Encarnações em personagens — todos homens e brancos, é óbvio — constituindo “tipos”, que povoam as páginas deste livro.
Por isso mesmo, por essa ênfase na caracterologia por assim dizer, o livro se baseia mais na descrição que na narração, no estático mais que no dinâmico, no aprofundamento de cada tipo e nos tipos em seu conjunto mais que nas peripécias do entrecho. O subtítulo, portanto, promete o que o texto realiza: Cenas da vida paulistana. Já se vê que a descrição sobreleva a narração, o entrecho sendo ralo, quase inexistente, quadro seguindo-se a quadro.
Esta é uma sátira que se faz não sistematicamente como num romance coeso e coerente em todas as suas partes, mas por fragmentos, falas, intuições súbitas, frases de efeito, anedotas. Em suma, por cacos compondo um mosaico que se chama romance. E que por isso mesmo, porque descompromissado, permite uma relação mais livre e mais lúdica com a forma.
O autor deixou rastros biográficos tão apagados quanto os rastros de sua obra. Aqui, a grande fonte é Elias Thomé Saliba,[xiv] acrescentando esta outra contribuição ao supracitado capítulo sobre o cômico no período, tesouro de preciosas informações e reflexões. Entre os traços que refere, estão os parcos dados profissionais. Assim ficamos cientes de que José Agudo é pseudônimo de José da Costa Sampaio, originário de Portugal. Saliba, que leu todos, cita-lhe uma série de romances, publicados entre 1912 e 1919, prenunciados por Gente rica, o primeiro da série, sendo os demaisGente audaz, O dr. Paradol e seu ajudante, Pobre rico!, Posta restante, Cartas d’Oeste e A pedra que fala. De profissão, o escritor era contabilista e professor de contabilidade. De perfil modesto e obscuro, era entretanto lido e apreciado, embora essa apreciação fosse fugaz. A origem de seu pseudônimo é decifrada como trocadilho pelo próprio romancista ao dedicar o livro a João Grave (1872-1934), escritor português. Ainda mais, João Grave era autor de um romance chamado Gente pobre, mais um trocadilho. Ao que tudo indica, José da Costa Sampaio causou boa impressão em seu ofício, pois era professor na Escola de Comércio Álvares Penteado, tendo fundado e dirigido uma revista de contabilidade de prestígio.
O lance mais notório de sua carreira de romancista, curiosamente, foi uma polêmica com ninguém menos que Oswald de Andrade, assim se inserindo, embora a contragosto, nos futuros fastos modernistas – então ainda pairando no horizonte. Saliba conta que a rixa se desenrolou nas páginas de O Pirralho, primeira incursão de Oswald pela imprensa, jornal que criou e dirigiu aos vinte anos. Como ninguém ignora, Oswald sabia ser virulento. Ao comentar, com o pseudônimo de Joachin da Terra, o recém-lançado Gente rica, enviado pelo autor, resolve acusá-lo de ignorância por presumível erro de gramática já na dedicatória coletiva ao jornal. Houve réplica, José Agudo respondeu e a polêmica pegou fogo, descambando em acusações pessoais e outros impropérios. Por fim, iria perdendo ânimo e interesse, e desapareceria ante questões mais prementes. A notar que rendeu um poema satírico e feroz de Oswald, transcrito por Saliba, encerrando a controvérsia.
A elite paulista
Apesar de toda a heterogeneidade, Gente rica tem um protagonista, que é Juvenal de Faria Leme, mais conhecido como Juvenal Paulista. Sua presença comanda quase todos os capítulos, embora o romance não seja em primeira pessoa, cabendo esta a uma “persona do autor”. Entretanto, é o ponto de vista de Juvenal Paulista que predomina, as ideias dos dois confundindo-se o tempo todo. Não há distanciamento quando se trata de Juvenal Paulista, raramente surgindo um laivo de objeção ou de discordância. Decerto, é um alter ego: na personagem autônoma divisa-se um porta-voz do autor.
Autor e alter ego partilham uma visão fortemente crítica da elite, a quem endereçam farpas de toda ordem. É instigante o duplo ponto de vista, pois, enquanto Juvenal tem por alcunha “Paulista” e é membro da elite, o autor é um imigrante que seria excessivo chamar de marginal ou limítrofe, já que é um cidadão respeitável. Mas certamentese trata de um outsider. As opiniões de ambos, autor e protagonista, mesmo quando zombam da elite e portanto assumem uma crítica progressista, podem vir recheadas de nuances conservadoras no que diz respeito às mulheres, aos negros e aos pobres, que recebem avaliações depreciativas.
Quem é esse protagonista? “Juvenal de Faria Leme era um paulista da gema”: assim começa o capítulo IV. Um de seus antepassados fazia parte da guarda de honra de d. Pedro quando ocorreu o célebre “desarranjo intestinal” às margens do Ipiranga, o lado carnavalizado da saga heroica da Independência. Assinando usualmente Juvenal Paulista, escrevia com assiduidade para jornais e revistas: “Tinha a paixão de escrever”, o que mais uma vez o aproxima do narrador. É crítico das ideias feitas: descendente de bandeirantes, afirma que jactar-se disso é o mesmo que jactar-se de “ser neto ou bisneto de bandidos e ladrões”. Em sua vida aventurosa, foi cozinheiro e descobriu a sustanza, ou caldeirão em que se ferviam os restos, que vai servir de metáfora para designar a espúria elite paulista. Para atiçar melindres, conta aos amigos que na infância comeu içás torrados.
Entretanto, como veremos, as opiniões que Juvenal vai livremente distribuindo a torto e a direito sobre tudo ou quase tudo, e que acredita serem avançadas na medida em que tratam com escárnio os ricos quatrocentões, às vezes tingem-se de nuances mais condizentes com um ancião ranzinza do tipo tradicional e moralista.
Tudo transcorre no centro da cidade de São Paulo, ou, mais exatamente, no Triângulo, como popularmente se chamava o perímetro delimitado por três ruas: Quinze de Novembro, São Bento e Direita – o coração da cidade, seu cerne mais antigo, ao mesmo tempo lugar de memória e foco de irradiação de poder. O livro oferece um inventário sistemático dos signos espaço temporais que o constituem: toponímicos (ruas e logradouros em geral, incluindo nomes de restaurantes, bares, lojas, teatros, cinemas) e topográficos (ladeiras, vales, várzeas, esquinas, passeios públicos). O objetivo é descrever, de modo acurado, o cenário onde se passa o entrecho e os principais pontos — aliás repletos de carga semântica — nos quais decorre a vida das personagens, que se confunde com a vida, ou pelo menos a face pública, da elite na cidade.
Para começar, fala-se várias vezes dos Quatro Cantos, denominação da esquina da rua Direita com São Bento, que formava quatro perfeitos ângulos retos – prodígio num tecido urbano de arruamento ao léu. Consta que era o único cruzamento ortogonal em São Paulo e desapareceria com a abertura da praça do Patriarca.
Sobressaem no Triângulo a Casa Garraux, para aquisição de livros, na rua Quinze, a par do Guarany, café e restaurante, que para Juvenal é um antro de “coprofilia intelectual”, onde fazem ponto os futuros bacharéis, árbitros da elegância masculina. Menciona-se amiúde o relógio do Grumbach, ou melhor, da joalheria e relojoaria de Maurice Grumbach, situada na esquina das ruas Quinze e Boa Vista. Seu relógio de grande quadrante permitia consulta de vários ângulos, graças à colocação estratégica bem na esquina. Ícone urbano, o relógio do Grumbach pode ser visto nas fotos de época que documentam a cidade de São Paulo.
Outros lugares frequentados pelas personagens são a Rotisserie Sportsman, o bar e restaurante Castelões, uma loja de luxo como a Ville de Paris, o cinema Radium, o Cassino, a praça Antônio Prado. O Santana e o Politeama ilustram os dois tipos de teatro que predominavam na época: o Santana lírico, em forma de ferradura, com vários andares de frisas e camarotes sobrepostos; o Politeama para espetáculos variados, como seu nome indica. Avista-se o viaduto Santa Ifigênia em construção e comenta-se a pendente inauguração do Theatro Municipal. O romance menciona mais lugares, e mesmo extramuros, procurados pela elite: o Velódromo, o Hipódromo, o rio Tietê das regatas, o Jardim da Luz, o Bosque da Saúde, o Parque da Cantareira. Para vilegiaturas, desde estações balneárias e praias do Guarujá ou de Santos como José Menino, até temporadas na Europa.
É bom lembrar que São Paulo naqueles anos ainda não era uma cidade importante. Perdia, e de longe, para a capital do país, Rio de Janeiro. A malha urbana era acanhada, sem nenhuma das suntuosidades arquitetônicas que pontilham o Rio Velho e que o distinguem como metrópole com tradição. Assim como é e era ímpar a beleza esplêndida, a majestade de sua implantação à beira-mar, na baía de Guanabara, com relevo pitoresco e recortes de angras ou enseadas, a que se somam praias de alva areia a perder de vista. Se podemos abrir debate sobre beleza natural e arquitetônica, não se podem discutir os números. Nos albores do século XX, época em que se passa a narrativa, o Rio tinha cinco vezes mais habitantes que São Paulo. O arranque de São Paulo para se tornar a “metrópole tentacular” brasileira e americana, uma das maiores do mundo, ainda não era descortinado nas brumas do futuro.
O romance de costumes e seus percalços
A estrutura narrativa de Gente rica procura fazer justiça à cartografia da cidade, que deslanchava rumo a um futuro de parque industrial, mas ignora a formação do proletariado paulistano. Apesar de ausente do romance, a essa altura a classe já possuía uma presença tal que tinha realizado uma greve por melhores condições de trabalho em 1907,[xvi] liderada pelos sindicalistas revolucionários em aliança com anarquistas e socialistas. Um ano antes fora criada a Confederação Operária Brasileira. Mas, afora a elite que ocupa o centro da cidade, este livro, coerente com seu título, não toma conhecimento da existência de outros bairros e de outras camadas sociais em São Paulo, nem mesmo nas fantasmagorias das personagens. E só o início dos anos 1930 assistiria ao surgimento do “romance proletário”, cujo florão viria a ser Parque industrial (1933), de Pagu.[xvii] Se Gente rica ignora o fenômeno novo dos operários na cena social paulista, muita ficção passou incólume pelo modernismo, mesmo se posterior à Semana de Arte Moderna.[xviii]
Por seu lado, Gente rica, buscando soluções literárias, vai se basear no estabelecimento de grandes diferenças entre os capítulos: com algum exagero, quase se pode afirmar que cada um é diferente do outro. Assim, veremos episódios de rua, em que personagens se encontram e conversam, reinando como princípio a noção de passeios citadinos. As personagens são flâneurs que palmilham uma futura metrópole, a qual como que vão circunscrevendo idealmente ou imaginariamente com seus passos. Tudo isso em consonância com a modernização em processo no Ocidente, quando os logradouros da metrópole e seus pontos de confluência (bares, restaurantes, cinemas) se tornam espaços de sociabilidade,[xix] aptos a suscitar encontros, servindo ao desejo de ver e ser visto.
O entrecho gira em torno de um eixo constituído pelo capítulo central, o capítulo v, que ocupa cerca de um quinto do total, sobrando apenas quatro quintos para os dez capítulos restantes – certamente uma desproporção até visual, e que traz consequências para a harmonia do conjunto. Aqui reside o fulcro da narrativa e, como se espera, a importância do que é narrado exige tal extensão. Vamos ver então o que diz esse capítulo tão desmedido.
Tratando da instalação da Mútua Universal, uma associação de investimentos, tem como cenário uma sala de primeiro andar na rua São Bento. Especificamente, o objetivo da reunião era “instituir uma pensão para os mutuários durante vinte anos, e um pecúlio de trinta contos de réis pagável, por morte do instituidor, aos seus beneficiários”. É aí que vigora o que o romance chama de “mutuomania” entre figurões, muito na moda naqueles anos. As pessoas de posses fundavam associações de auxílio mútuo, fazendo investimentos que renderiam lucros e se multiplicariam, atendendo a interesses que atingiriam seu clímax em nosso tempo. Ainda assim, não passam de pálida antecipação, quando comparadas à especulação do capital financeiro que hoje se expressa, por exemplo, nos hedge funds, e ao desequilíbrio econômico em escala planetária a que conduziram o conjunto da sociedade.
No grupo de instauração da Mútua há discussões políticas e ideológicas, predominando o moralismo saudosista. Fala-se de carestia para os pobres, ante o deslanchar da especulação imobiliária, que vai tornar os aluguéis extorsivos. Aplaude-se o progresso, que no entanto traz para os mutuários inconvenientes menores como o surgimento de arrivistas, ou então de pais e mães relapsos.
O amplo espectro coberto por esses associados pertencentes à elite é explicitado numa série de perfis, que, em poucas pinceladas, esboçam caricaturas de pessoas influentes. Apresentamos uma súmula a seguir, com prejuízo das vívidas pequenas anedotas que acompanham cada nome e que merecem ser saboreadas no próprio romance.
O perfil do dr. Gustavo da Luz é dos mais caricaturais em seu exagero e seu rebaixamento: um “cientista louco” especializado em tatus, tamanduás e pulgas, que deles retira ilações para os humanos. O dr. Archanjo Barreto é riquíssimo, apenas. Jeronymo de Magalhães acedeu à prosperidade através do matrimônio com uma prestamista; Adelino Silveira é seu genro e herdeiro. O comendador Julio Marcondes é de origem pobre, mas arranjou um casamento rico e hoje figura na elite. Dedicou-se a ser um casamenteiro científico, elaborando um livro contábil de herdeiras. O dr. Orthépio Gama, representante da camada dos políticos, é deputado e, nem é preciso dizer, rico. O coronel Rogerio Lopes é de sólida fortuna agroindustrial: tem fábrica de tecidos e fazenda de café. Seu filho dr. Zezinho Lopes, bacharel em direito, é um estroina, esbanjador e femeeiro, que frequenta pensões alegres. Apanhado com a boca na botija, o marido enganado obriga-o a lavar o chão da casa, em peripécia que se divulga para que todos se divirtam à socapa; o pai então o casa à força, aos 23 anos. Alexandre Rossi (único com sobrenome de imigrante) criou uma indústria em sociedade com o dr. Claro da Silva, em troca de oferecer-lhe a esposa; foi assim que enriqueceu. O barão de Athayde é escravista e racista, mas também filantropo; vive da renda de casas de aluguel. O dr. Araujo Reis é um mau-caráter: torna-se jornalista, e venal, vendendo-se pelo melhor preço. Em cinco anos estava rico e era o único proprietário do jornal em que trabalhava.
Esse é o elenco dos poderosos que o romance apresenta em clave satírica: não há um sequer com integridade ou decência. Observa-se que representam diferentes setores das camadas dominantes, partilhando do poder em maior ou menor escala. A sátira, que não perdoa a ninguém, preside à caracterização em traços mínimos de cada um deles.
No entanto, a força da imigração que então se processava a todo vapor é ignorada enquanto movimento social que logo mudaria a face do país, e sobretudo de São Paulo — tal, como vimos, ocorre com o proletariado. O único mutuário não “quatrocentão” é Alexandre Rossi, e, mesmo sendo único, carece de desenvolvimento como personagem. Mas, na São Paulo da época, em poucos anos um imigrante será o Rei da Indústria (Matarazzo) e, penetrando no feudo da oligarquia fundiária, outro imigrante será o Rei do Café (Lunardelli). O contingente italiano deixará marcas na Pauliceia, imprimindo seu sinete na economia e na política, no embate das classes, nas artes, na literatura, na música erudita e popular.[xx]Logo suas figuras de proa estarão em condições de trocar dinheiro por pedigree, casando-se com as filhas dos barões do café arruinados.
Curiosamente, essa apresentação dos membros da Mútua será complementada, quase como num apêndice ou nota de rodapé, pela “transcrição” de uma paródia aos seus estatutos, numa interpolação dois capítulos adiante. O panfleto fora previamente distribuído pelo correio. É o que ocorre no capítulo VII, em meio a uma récita de A dama das camélias com a atriz Mina Lanzi no Teatro Santana, a que acorre a elite da cidade.
São quase oito páginas[xxi] de um texto anônimo, propondo a criação do Showing Club, em meio a uma radiografia da sociedade paulistana e a uma tipologia de sócios.
Embora anônimo, o texto faz lembrar os habituais destemperos de Juvenal – sempre preconceituosos e com fortes marcas de classe. Começa por uma censura à falta de casas de aluguel, dizendo que isso implica prosperidade dos donos delas, pois estão todas alugadas. E acrescenta outra admoestação… às cozinheiras, que em vez de manejar o fogão vão estudar na Escola Normal, para deixar de ser cozinheiras, é óbvio. A Escola Normal era instituição recente e modernizadora, que tirava as moças de dentro de casa e abria caminho para uma profissão digna. Por isso, esses acenos de independência feminina despertavam a ira de muita gente, assombrando os homens com vagas miragens de condutas mais permissivas. É só lembrar a frequência com que elas perpassam pelas páginas do modernismo (Pagu era normalista).[xxii] Segue-se mais uma descompostura, esta indiscriminada, estigmatizando aqueles que não querem prestar serviços menos nobres, pois, tanto nacionais como estrangeiros, estão todos contentes. Só discordam “os trapaceiros, os gatunos, os chantagistas e os caftens”.
Em seguida, o panfleto se concentra em seu objetivo, que é propor, na craveira da galhofa é claro, a criação de outra mútua, uma que se chamará Showing Club e que tem por lema uma frase em inglês: “Showing Forever!”. Título e lema escancaram o objetivo de ostentação. Trata-se de uma paródia da mútua que foi criada a sério no capítulo V. Vejamos suas propostas.
Sem sede, sem porteiro, sem visitas de cobradores, sem regimento interno, sem conselho fiscal, sem assembleia geral, sem rateios: essas são as vantagens, todas negativas. No balanço positivo, propõe-se que todos pertençam ao clube por direito de nascimento, que deverá ser ratificado pelo postulante. Se ratificado, será perpétuo. Em seguida vem a classificação dos sócios por categoria, conforme sejam efetivos, honorários, beneméritos e ultrabeneméritos. E é aqui que a sátira alça voo, infringindo todos os limites e partindo para a chanchada mais deslavada.
Para ser sócio efetivo, basta que a data de seu aniversário saia nas colunas sociais ou que tenha automóvel. Incluem-se os funcionários públicos que recebam homenagens, com ou sem busto esculpido. Deputados e senadores, todos os que falam – os calados, não. Os conferencistas, os barbados que raspam a barba, os que têm título de nobreza mesmo que conferido pelo papa, os membros da Guarda Nacional, os bacharéis que não exercem a profissão.
Os honorários incluem aqueles que viajam para o exterior, bem como as pessoas que fazem donativos de caridade a que dão a maior publicidade possível.
Os beneméritos garantem a instituição família: mantêm amantes ostensivas e filhos esbanjadores, são fregueses da jogatina, fazem assinatura de camarotes nos teatros para suas duplas ou múltiplas famílias.
Os ultrabeneméritos são aqueles que conseguem encontrar eco na imprensa estrangeira para sua prática da filantropia.
Têm a entrada proibida todos os literatos. E isso porque estão sujeitos à crítica, de que se exige que seja isento todo sócio do clube.
E assim se encerra o panfleto, depois de ter desancado com sua sátira a promiscuidade da família paulista, a hipocrisia dos políticos e a avidez geral por celebridade.
Terminado o texto, em meio ao que chamavam de brouhaha na porta do Teatro Santana e à magnificência da multidão em trajes de gala, encontram-se Juvenal e o dr. Zezinho. Sempre opinante, Juvenal vai logo dizendo o que pensa. Começa por criticar os arranha-céus, copiados dos americanos. Entretanto, acrescenta, antes um panfleto que uma bomba de dinamite atirada lá do alto sobre a plateia apinhada. O mal é o exibicionismo dos ricos. E o texto é bem escrito, diz ele, coisa rara entre aqueles que só mostram “a ânsia de enriquecer, o gosto de esbanjar e o desprezo pelas belas-letras”.
Nesse ponto, o romance retoma a linha da narrativa, o som da campainha anunciando o levantar do pano. Uma digressão do narrador fulmina a invenção dos “cinematógrafos, aeroplanos, automóveis e telégrafos sem fio”, aliada ao culto à velocidade que transtorna os hábitos de vida, de pensamento e de apreciação da arte. Ressalva-se, ironicamente, é claro, o cinematógrafo, que vai substituindo a soirée dançante, poupando aos pais a apresentação de filhas casadouras aos rapazes disponíveis, em festas domésticas dispendiosas. Uma rápida e barata sessão de cinema permite exibir as filhas cobertas de joias e luxuosas toaletes aos candidatos que enxameiam na saída das salas.
O entrecho avança, com Juvenal Paulista entre amigos, alguns da Mútua, efetuando mais uma digressão no intervalo do penúltimo ato. Desta vez, em forma de carta, dirigida aos vereadores da cidade e comentando a próxima inauguração do Theatro Municipal. Em meio a elucubrações variadas, em geral destinadas a fazer brilhar o engenho do discurso que, por exemplo, compara aquele teatro a um canivete, acaba por ameaçar a futura administração da casa, se malbaratar o dinheiro público ali investido. Logo depois o drama no palco termina e, como era de uso, alguém se levanta e faz um discurso em louvor de Mina Lanzi. O discurso é paródico, um primor de lugares-comuns entremeados de hipérboles nacionalistas e parnasianas. O orador é Leivas Gomes.
Neste ponto, vemos como a elite paulista da época encontra-se representada em Gente rica em suas linhas de força. A velha oligarquia, constituída por “quatrocentões”, é quem manda. Seu poder político é escorado no poder econômico, que vem do chamado Eixo Café com Leite, combinando a riqueza agrária de São Paulo com a riqueza pecuária de Minas Gerais. Foi o Eixo Café com Leite que fez os primeiros presidentes civis da República. E só o advento de Getúlio Vargas em 1930 interromperia essa férrea aliança, levando ao poder as forças gaúchas, vindas do Sul, portanto de fora do território até então demarcado. Getúlio se apoiaria na classe trabalhadora, trazendo sangue novo e problemas novos para a arena social e política. É o período anterior, prévio à fase getulista que nem sequer ainda se delineava no horizonte, que Gente rica apanha e descreve.
[…]
Duas observações paralelas despertam o interesse do leitor. Primeiro, sua ojeriza à nova moda do romance policial ou de detetive, contra o qual invectiva com argumentos que vão da ofensa à Arte, assim com maiúscula, ao baixo nível social dos leitores: esse romance faz “a delícia dos meninos de escola, dos caixeiros de taverna e dos bandidos profissionais”. Segundo, uma reivindicação de originalidade, pois, segundo ele, nunca houve uma obra literária que fizesse o elogio da riqueza.
Sendo os ricos seu assunto, tema de que se diz conhecedor, resolve dedicar a eles sua obra, pois almeja alcançar como leitores esses a quem declara seu grande amor. Uma última ironia, esta involuntária, está expressa nessa apresentação, quando fala com admiração das obras que “conseguem, quando bem escritas, resistir ao esquecimento universal”.
Em suma, divertido e vivaz, Gente rica tem seus atrativos realçados quando consideramos que, fugindo à fonte irradiadora na capital federal, vai buscar na província os traumatismos da modernização republicana. Fazendo a crônica satírica da elite em timbre pré-modernista, esmera-se em criar para o leitor uma obra de ficção em forma de mosaico: testemunho de um pedaço desgarrado da literatura e da história que, por ser de transição, é prenhe de futuro.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac/Ouro sobre azul).
Referência
José Agudo. Gente rica: cenas da vida paulistana. São Paulo, Chão Editora, 2021, 200 págs.
Notas
[i] Elias Thomé Saliba, “A dimensão cômica da vida privada na República”, in: Fernando A. Novais (dir.), História da vida privada no Brasil, v. 3 —República: da belle époque à era do rádio(org. Nicolau Sevcenko). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[ii] Vários Autores, Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988.
[iii] Veio inexplorado, essa ficção esquecida pode render muito. Ao transferir o ângulo analítico da literatura para a música, foi o que demonstrou José Ramos Tinhorão: v. A música popular no romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, 2000, 3 v.
[iv] “Dialética da malandragem”, in: Antonio Candido, O discurso e a cidade. 3.a ed. São Paulo: Duas Cidades; Ouro sobre Azul, 2004.
[v] “O honrado e facundo Joaquim Manuel de Macedo”, in: Antonio Candido, Formação da literatura brasileira. 16.a ed. São Paulo: Fapesp;Ouro sobre Azul, 2017.
[vi] Flora Süssekind, “Prosa em zigue-zague”, in: Luis Guimarães Jr., A família Agulha. Rio de Janeiro: Vieira & Lent; Casa de Rui Barbosa, 2003. Brito Broca, “Humor negro”, in: Teatro das letras. Campinas: Unicamp, 1993.
[vii] Nada humorístico, ao contrário naturalista e “maldito”, mas também romance do Rio de Janeiro é O bom crioulo (1895), cujo protagonista é um marinheiro homossexual e mulato. V. Salete de Almeida Cara, “Apresentação”, in: Adolfo Caminha, O bom crioulo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
[viii] Nicolau Sevcenko, “A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio”, in: História da vida privada na República, op. cit.
[ix] Décio de Almeida Prado, “Evolução da literatura dramática”, in: Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil,v.vi. 3.a ed. Rio de Janeiro: José Olympio; uff, 1986. A peça de Artur Azevedo obteve grande êxito em encenações modernas, a exemplo daquela dirigida por Flávio Rangel em 1972, no Teatro Sesc Anchieta de São Paulo.
[x] E. R. Curtius, Literatura europeia e Idade Média latina. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1996. Raymond Williams, em O campo e a cidade(São Paulo: Companhia das Letras, 1990), examina a evolução do tema na literatura inglesa.
[xi] Walter Benjamin, “Paris, capital do século xix”, in:Passagens. Belo Horizonte; São Paulo: ufmg;Imprensa Oficial, 2006.
[xii] Antonio Dimas, Vossa Insolência: crônicas — Olavo Bilac. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[xiii] (Pseudônimo de José Maria de Toledo Malta) Hilário Tácito, Madame Pommery. Edição preparada por Júlio Castañon Guimarães. 5.a ed. Campinas; Rio de Janeiro: Unicamp; Casa de Rui Barbosa, 1997.Beth Brait, Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Unicamp, 1996.
[xiv] Elias Thomé Saliba, “Aventuras e desventuras de José Agudo, um cronista da Pauliceia na belle époque”.Revista USP, São Paulo, n.o 63, set.-nov. 2004.
[xv] Cantada em prosa e verso pela música popular, a começar pela marchinha do Carnaval de 1935, “Cidade Maravilhosa”, mais tarde oficializada como hino do Rio de Janeiro. Foi e é tema constante do Carnaval carioca. Seria levada às alturas pela Bossa Nova, que, sistematicamente, louvou seu esplendor.
[xvi] Edilene Toledo, Anarquismo e sindicalismo revolucionário: trabalhadores e militantes em São Paulo na Primeira República. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
[xvii] Pagu, ou Patrícia Galvão, assina o livro com o pseudônimo de Mara Lobo. Comunista e feminista, esse romance de costumes urbanos subverte classe e gênero. Encenando, em prosa modernista quase “telegráfica”, a vida de moças trabalhadoras dentro e fora da fábrica, mostra-se transgressor tanto na forma como no entrecho, revelando por contraste o padrão esteticamente mais conservador do romance coevo.
[xviii] Veja-se Mirko(1927), romance de Francisco Bianco Filho, que padece de uma cisão esquizofrênica: divide-se em duas metades que se alternam e se entrelaçam. Uma é regionalista (no interior tudo é puro, autêntico, tradicional, a heroína casta) e a outra é de costumes urbanos (no Rio de Janeiro residem a modernização, a orgia noturna, a devassidão, o maxixe para dançar agarradinho, a atração carnal da outra heroína).
[xix] V. Walter Benjamin, op. cit.
[xx] Nas artes visuais: Portinari, Anita Malfatti, Victor Brecheret. Na literatura: Menotti del Picchia e a ficção de Laranja da Chinae de Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado, que reconstrói o colorido típico dos bairros dos oriundi. Na música erudita: os maestros e compositores Radamés Gnattali e Francisco Mignone; na música popular: Adoniran Barbosa (pseudônimo de João Rubinato).No humor, Juó Bananère (pseudônimo de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado) e Voltolino (João Paulo Lemmo Lemmi). Os imigrantes italianos constituiriam também a força motriz do Teatro Brasileiro de Comédia e da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. A caracterização de um herói caipira no cinema caberia a Amácio Mazzaropi.
[xxi] Na primeira edição.
[xxii] Já rendera um romance naturalista que beirava o sensacionalismo: A normalista(1893), de Adolfo Caminha. Tal como na literatura, a pecha de independentes e transgressoras aplicada a essas jovens aparece no Carnaval, na música popular, no teatro de revista, na charge e na caricatura.