Por ANSELMO PESSOA NETO*
A vitória da centro-esquerda nas recentes eleições administrativas
Segue aqui um rápido comentário sobre as eleições administrativas italianas que ocorreram em primeiro turno em 03/04 e em segundo turno em 17/18 de outubro de 2021. Assim como é verdade que os italianos são grandes conversadores, também é verdade que falar qualquer coisa, sobre qualquer questão italiana, demanda grandes conversações (para lembrar o clássico Conversação na Sicília, de Elio Vittorini, um livro silencioso, que deu em um belíssimo filme silencioso também).
Um dado irrefutável foi a grande abstenção: somente 54,6% dos eleitores aptos ao voto foram às urnas. A bem da verdade, a afluência às urnas vem caindo na Itália há muito tempo e parece que ainda não chegou ao fundo do poço. Um primeiro rápido parêntese: antes de chegar ao fundo do poço, inventarão um poço mais fundo. Outro dado – mas esse sujeito a interpretações – foi a vitória da assim chamada centro-esquerda italiana aglutinada no PD (Partido Democrático).
A história do PD é uma história à parte, mas pincelar aqui é fundamental. O PD é a última metamorfose do antigo PCI (Partido Comunista Italiano) que de involução em involução chegou ao atual formato, algo como um balaio de gatos, dada a variedade de cores de felinos que sobrevivem daquela manjedoura. Dois passos atrás: na antiga organização partidária italiana (estourada pela Lava-jato deles, as “mani pulite“, não por acaso guiada por um juiz de direita que, também não por acaso, se tornou político e que, também não por acaso, hoje é uma alma penada) em que o chamado “Pentapartito” governava, a grande disputa se dava mesmo era entre o PCI e a DC (Democracia Cristã).
Indo rápido: a mágica, ou melhor, a magia (não vou falar a cor), das reviravoltas da política italiana deu em um partido em que os antigos adversários estão juntos, sim, o PD é a casa comum da maioria dos comunistas e dos “democristianos”. Outro parêntese: o projeto Aldo Moro, assassinado pelas Brigate Rosse, que ficou para a história como uma tentativa de “compromesso storico”, era mais honesto e transparente, creio eu ingenuamente. Pois bem, esse partido, o PD, um dos herdeiros do antigo PCI, é o herdeiro de fato dos bens materiais do Partido Comunista Italiano. Outro parêntese: talvez para algum comunista bens materiais ainda faça sentido e explique alguma coisa, mas, sei não… talvez o que importa mesmo seja a cor da pele e o gênero, não é mesmo, nova esquerda?
Ainda mais rápido: o PD, também chamado de centro-esquerda, venceu as eleições com um programa que estaria mais para o programa da antiga DC, isto, claro, se fosse possível saber que a antiga DC também se “modernizaria”, assim como o PD (essa última frase não tem sentido: se o PD é PCI mais DC, foram esses dois partidos que se “modernizaram”). E mais: praticamente todos os dirigentes do PD são oriundos ou de matriz ideológica da antiga DC, a começar pelo jovem Enrico Letta, seu atual presidente. A conclusão lógica, mas sem lógica nenhuma, é que a Democracia Cristã, que dominou a Itália praticamente durante todo o período do segundo pós grande guerra, a continua dominando, mas agora com as roupas do seu antigo grande adversário: os comunistas.
Difícil de entender, não é? Para os velhos italianos também, e talvez isso explique, mas só um pouco, a baixa afluência às urnas, aquele nosso porto seguro inicial. Não é possível resumir aqui, mas, ó leitor curioso, pesquise sobre quem é, o que defende, de que coalizão participou e quem eram os adversários do prefeito reeleito de Milão, Giuseppe Sala; do prefeito eleito de Roma, Roberto Gualtieri; do prefeito eleito de Nápoles, Gaetano Manfredi; do prefeito eleito de Turim, Stefano Lo Russo e do prefeito eleito de Bolonha, Matteo Lepore. Mais um parêntese: os algoritmos não vão ajudá-lo na pesquisa.
Primeira tentativa de acabar: tinha jeito de ser diferente? Difícil dizer, a não ser que daquela antiga árvore, a árvore dos comunistas, nada vingou, pelo menos até agora, de todas as tentativas à esquerda que fugiram do tronco principal, isto é, do PD. Grosseiramente, eu diria que o que predomina na Europa é um programa derrotado, o programa de Tony Blair e a metamorfose do trabalhismo inglês em partido da ordem, da ordem do sistema financeiro! O que se opõe a isso? O fascismo.
Ia deixando passar batido: essas eleições também selam uma grande derrota para o último grande partido italiano, que nem nome de partido tem, o M5S. O Movimento 5 Estrelas foi grande partido por apenas uma eleição, as eleições políticas de 2018, que determinou as forças que estão no parlamento italiano atual. Falei de balaio de gatos para o PD, pois bem, para não me repetir, vou chamar o M5S de saco de gatos. Um saco sacolejado por brigas internas e em processo avançado de depuração. Como sói em organizações em que o princípio primeiro é pura indignação e ressentimentos, de anti-sistema o M5S está se adequando ao sistema com uma rapidez invejável. Os defensores do sistema agradecem.
E tem a Lega (Liga), antiga Lega Nord, ex-separatista, para quem o sul pobre italiano nem Itália era e Roma era a Roma Ladrona. Ela atualmente se apresenta somente como Lega e tem como um dos seus lemas “Primeiro os italianos” em clara alusão aos movimentos imigratórios que perturbam o sono dos racistas, os quais estão sempre de plantão. A Lega é inspiradora de muitos dos movimentos xenófobos mundo afora, seu líder atual, Matteo Salvini, inspira e admira o nosso Bolsonaro. Bem, a Lega, que era a grande ameaça de extrema-direita, foi derrotada, mas o seu ideário ainda vige com força na Itália e na Europa. A realidade é múltipla em todo lugar, mas tenho sempre a impressão de que na Itália ela é ainda mais. Aqui só vimos uma fresta dela. O que fazer?
*Anselmo Pessoa Neto é professor de literatura italiana na UFG. Autor, entre outros livros, de Italo Calvino: as passagens obrigatórias (UFG).