O ataque terrorista na Rússia

Imagem: Spiridon Varfalameev
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Por ANDREW KORYBKO*

Os EUA teriam sido os primeiros a ficar sabendo do ataque terrorista ao Crocus espionando Kiev?

1.

O jornal The New York Times citou fontes anônimas na quinta-feira passada para informar que “a relação de adversidade entre Washington e Moscou impediu os funcionários americanos de compartilharem qualquer informação sobre a conspiração (do ataque terrorista ao Crocus) além do que era necessário, por receio de que as autoridades russas pudessem descobrir suas fontes ou métodos de informação”. Isto inocenta o presidente Vladimir Putin, que, segundo o Ocidente alegou até agora, tinha desvalorizado as ameaças terroristas nas vésperas de um dos piores ataques da história da Rússia.

Sem informações concretas e cientes apenas do vago aviso dos EUA de que grandes reuniões, como concertos, poderiam em breve ser alvo de ataques, seus serviços de segurança não conseguiram deter os conspiradores, o que significa que Washington é parcialmente responsável pelo que aconteceu ao reter informações específicas sobre o assunto. De forma igualmente escandalosa, essa bomba também suscitou especulações sobre as fontes e os métodos exatos que os Estados Unidos empregaram para serem os primeiros a ficar sabendo deste ataque.

Embora seja possível que os Estados Unidos souberam deste caso espionando o canal radical do Telegram, cujos administradores supostamente recrutaram os responsáveis, como se a CIA tivesse um infiltrado dentro da equipe do pregador, é possível argumentar de forma convincente que ele na verdade poderia ter sido levado a seu conhecimento espionando Kiev. Os vazamentos de informação do Pentágono na primavera passada confirmaram que os Estados Unidos espionavam Volodymyr Zelensky, o que, segundo funcionários ucranianos disseram à CNN, não era “surpreendente”, mas os deixou “profundamente frustrados”.

Estes documentos também confirmaram que os EUA igualmente espionavam o serviço de inteligência militar ucraniano, o GUR, por meio do qual tomaram conhecimento de uma conspiração para atacar o porto russo de Novorossiysk no primeiro aniversário da operação especial, ordenando-lhes que se retirassem para evitar provocar Moscou. Dado que o Washington Post informou, seis meses depois, que a CIA tinha reconstruído o GUR a partir do zero após 2014, é óbvio que, desde o início, inseriram informantes no seio desta instituição.

Eles nem sempre ficam sabendo dos planos terroristas com antecedência, uma vez que sua infiltração no GUR e em outras agências governamentais ucranianas não é total, mas, ainda assim, geralmente conseguem concluir, algum tempo depois, que Kiev foi responsável sempre que acontece um ataque sério na Rússia. Foi o que ocorreu no último mês de maio, quando o New York Times noticiou que Kiev era responsável pelo ataque com drones ao Kremlin, lembrando também a seus leitores que, até aquele momento, Kiev estava por trás de outros ataques.

Entre eles, os assassinatos de Darya Dugina e Vladlen Tatarsky, os ataques terroristas transfronteiriços na região russa de Belgorod e o bombardeio do Nord Stream II. Em relação a este último, a alegação de cumplicidade ucraniana pode muito bem ser uma manobra de distração previamente planejada para desviar a atenção do envolvimento americano, depois que Seymour Hersh serviu como intermediário para que os membros dissidentes da Comunidade de Informação comunicassem ao público que foi seu país que ordenou tal ataque.

No entanto, o que é importante notar nesse contexto narrativo mais amplo é que o Wall Street Journal afirmou, no verão passado, que os EUA souberam dos planos da Ucrânia para explodir o gasoduto através de fontes holandesas, e depois disseram a Kiev para não avançar com o plano. Independentemente da questão de saber se a Ucrânia estava de fato envolvida e apesar da forma como os EUA alegadamente obtiveram a informação, para não mencionar se isso de fato ocorreu, a questão é que a Comunidade de Informação queria que os norte-americanos soubessem que ela tinha dito à Ucrânia para parar.

O Washington Post noticiou então, em novembro passado, que um antigo alto oficial do GUR coordenou o bombardeio do Nord Stream II com outros altos oficiais, que supostamente receberam ordens do ex-comandante-chefe Valery Zaluzhny, e que tudo isto se passou alegadamente por trás das costas de Zelensky. Não importa se tudo isto é verdade, pois o que interessa é o fato de que a conexão Washington Post-Comunidade de Informação introduziu esta narrativa no discurso global de que membros ostensivamente dissidentes da Comunidade de Informação ucraniana estariam planejando ataques tão severos.

2.

Recapitulando tudo o que foi compartilhado até agora pela mídia tradicional: os EUA espionaram Volodymyr Zelensky, o GUR e outras instituições ucranianas; souberam por estes meios que Kiev foi o responsável por ataques terroristas anteriores; algumas vezes ficam sabendo deles antes do tempo e ordenam a seus procuradores que se retirassem; o que foi bem sucedido em fevereiro de 2023, quando a Ucrânia decidiu não atacar Novorossiysk; mas falhou no verão de 2022, depois que membros supostamente dissidentes da Comunidade de Informação ucraniana bombardearam o Nord Stream II.

Tendo isto em mente, as suspeitas de que os EUA ocultaram informações possivelmente acionáveis sobre o então iminente ataque terrorista ao Crocus para não revelarem suas fontes e métodos na Ucrânia fazem muito mais sentido. Os chefes do FSB e do Conselho de Segurança já suspeitavam do envolvimento ucraniano, o presidente Putin informou a nação de que os contatos dos terroristas naquele país tinham preparado uma “janela” para atravessarem a fronteira e os investigadores acabaram de descobrir provas de que Kiev lhes pagou via criptomoeda.

O vice-presidente do partido no poder na Turquia também afirmou recentemente que “é óbvio que é impossível levar a cabo uma ação tão profissional sem o apoio dos serviços secretos de qualquer Estado. Estes eventos têm sempre patrocinadores, lobbies que querem que a guerra (ucraniana) continue”. Visto que seu país é membro da OTAN, arma a Ucrânia, vota contra a Rússia na ONU e não reconhece a reunificação da Crimeia, não há razões para suspeitar que tenha segundas intenções. Logo suas palavras devem ser levadas a sério.

Diante destas alegações, os Estados Unidos insistiram fervorosamente em sua afirmação de que a Ucrânia não era responsável, o que o ministro das relações exteriores russo, Sergey Lavrov, descreveu como “suspeitosamente” “obsessivo”. Sua porta-voz, Maria Zakharova, já tinha descrito o relatório da Bloomberg, segundo o qual as fontes internas do Kremlin duvidavam do envolvimento da Ucrânia, o que era indiscutivelmente um desvio narrativo plantado pela Comunidade de Informação, como “a mãe de todas as mentiras”. A tendência é que os EUA estejam tentando desesperadamente convencer todas as pessoas de que Kiev não foi responsável.

Tudo isto sugere que os EUA sabem que a Ucrânia esteve envolvida, mas temem o que a Rússia possa fazer quando as provas se tornarem indiscutíveis. Por exemplo, estas poderiam ser compartilhadas com o mundo para justificar a transformação legal da operação especial da Rússia numa guerra total, que poderia preceder outra ofensiva. Eventualmente poderá ocorrer uma ruptura nas defesas, com o governo entrando em colapso pouco tempo depois, exatamente como o Comitê de Inteligência Ucraniano avisou, no final de fevereiro, que poderia acontecer neste verão.

Esta perspectiva acrescenta contexto à bomba do New York Times, uma vez que a CIA pode muito bem ter tido conhecimento da conspiração do Crocus espionando seus protegidos do GUR, o que, de acordo com esta análise, explica como eles podem ter orquestrado tudo, mas depois ter dito para cancelarem. Tal como o GUR teria adiado o bombardeio do Nord Stream II, também parece, visto retrospectivamente, que adiou este banho de sangue, para depois levar a cabo ambos, ainda que tenham sido formalmente aprovados ou executados por membros dissidentes da Comunidade de Informação.

Esta versão dos acontecimentos explica por que os EUA apenas transmitiram informações vagas à Rússia, uma vez que assumiram que o GUR não prosseguiria com a conspiração do Crocus, mas Washington ainda queria desacreditar o governo e os serviços de segurança de seu rival, daí o aviso provocativo de sua embaixada na altura. Depois que o ataque terrorista ocorreu e que as provas do envolvimento da Ucrânia se acumularam, os Estados Unidos rapidamente interferiram a favor de seus procuradores, porque temem as consequências de uma possível reação militar da Rússia.

Não se sabe ao certo em que estavam pensando os membros da Comunidade de Informação dos EUA, que falaram com o New York Times, quando disseram a esse jornal que seus serviços ocultaram à Rússia detalhes do então iminente ataque terrorista ao Crocus para não traírem suas fontes e métodos, mas o contexto narrativo mais vasto em que este pormenor fundamental entrou no discurso global lança mais suspeitas sobre a Ucrânia. Parece cada vez mais óbvio que Kiev esteve envolvido, e é provável que seja apenas uma questão de tempo até ser encontrada uma prova irrefutável.

*Andrew Korybko é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Autor do livro Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes (Expressão Popular). [https://amzn.to/46lAD1d]

Tradução: Fernando Lima das Neves.


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