Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo

Imagem: Robert Rauschenberg
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Por MARCOS SILVA*

Comentário sobre o livro de Mario Magalhães

O livro do jornalista Mario Magalhães sobre Marighella tem 736 páginas, subdivididas em 43 curtos capítulos, um epílogo e mais agradecimentos, notas, bibliografia, índice onomástico – e cadernos de imagens sem paginação. Ele foi lançado originalmente em 2012 e ganhou nova repercussão após ser transformado em filme, de 2019, sob a direção de Wagner Moura.[1]

Nenhum filme baseado em livro apenas reproduz sua origem textual, tanto pelas diferenças de linguagem (predomínio da palavra, no livro, e da imagem, no filme) quanto pelo momento em que cada obra foi realizada.  O Marighella de Magalhães surgiu no primeiro governo da presidenta Dilma Roussef (2011/2014), quando a ditadura de 1964/1985 ainda era predominantemente tratada como ditadura. O filme de Moura apareceu durante o desgoverno Jair Bolsonaro (2018/2022), que recuperou em larga escala procedimentos brutais daquela ditadura anterior para fazer de conta que ela não o foi.

Vale a pena comentar o livro e entender essas diferenças, o alcance da primeira obra e as reafirmações metamorfoseadas, mais ou menos garantidas pelo que veio depois.

O livro, em linguagem de crônica jornalística um pouco romanesca, é marcado por minúcias informativas, mescladas a generalizações (personagem central simpático e guloso, por exemplo), com fontes documentais nem sempre claramente identificadas e homens e mulheres adequados à visão que seu autor possui daquele universo. Ele inclui supostas falas ou pensamentos íntimos do personagem central, sem indicar com precisão de onde vieram tais dados – correspondência, entrevistas, depoimentos de terceiros? Algumas menções a documentos, no corpo do texto, são incompletas ou indiretas. Notas no final do volume (sem numeração!), agradecimentos e indicações bibliográficas diminuem um pouco, mas nem tanto, esses problemas.

Embora baseado no livro de Magalhães, o filme de Moura se concentra no período posterior a 1964, com Marighella na luta armada e enfrentando a terrível repressão daquela ditadura. Nesse sentido, a narrativa cinematográfica adotou um tom mais crepuscular, rumo à morte, mas ainda cheio de vida, com algumas falas de esperança, sem renunciar a licenças poéticas e abordando pouco os trabalhadores brasileiros daquele período.[2]

Já o livro começa com uma tentativa de fuga e luta contra policiais, no princípio da ditadura de 1964-1985, pontos de partida narrativos, caracterização de Carlos enquanto militante de esquerda e crítico interno do PCB e do governo João Goulart, clima épico de resistência e coragem – Marighella baleado, transitando entre locais de aprisionamento, dor e persistência. Depois dessa abertura, o volume assume teor mais cronológico, com infância e adolescência em família e escola, começo de vida adulta, ingresso no PCB, trajeto político subsequente, inclusive duas ditaduras, luta armada contra a última delas…

O levante comunista no Brasil de 1935 foi caracterizado como quase exclusivamente militar e partidário, em quartéis ou espaços similares. Magalhães confinou Marighella no PCB, com poucas indicações sobre os trabalhadores pelos quais ele e seus companheiros lutavam. E descreveu seguidamente torturas e mais violências sofridas pelos comunistas na prisão, martírio desses homens (quase não há menções a mulheres em tal espaço), sadismos de agentes governamentais.

Apesar desses horrores, o encarceramento em Fernando de Noronha, depois de 1935, teve registradas a beleza natural do lugar e até certa dignidade profissional (na medida do possível numa sangrenta ditadura) do coronel Nestor Veríssimo da Fonseca, diretor dessa cadeia, capaz de estabelecer acordos com seus prisioneiros. Havia separação entre os presos comunistas e os integralistas. A Ilha Grande, para onde foram transferidos depois, seria pior, mas ainda assim abrigaria resquícios de sociabilidade entre os condenados, inclusive o convívio com suas mulheres.

A vida de Carlos, depois que saiu da prisão, em 1945, parece reequilibrada, com algumas disputas internas no PCB, admiração incondicional por Jossif Stálin e Luiz Carlos Prestes e a retomada de relações amorosas, a lhe realçar a virilidade e caracterizar apenas brevemente as parceiras, inclusive Elza Sento Sé, mãe de seu filho, e mesmo Clara Charf, companheira com quem, de acordo com o filme de Moura, viveu até morrer – o livro menciona uma relação final com Zilda Paula Xavier Pereira. Há referências a outros amores dele (ausentes no filme de Moura) e à tranquilidade de Clara sobre essa faceta poliamorosa de Carlos – não se mencionam experiências semelhantes dela. Certamente, a vida afetiva de Marighella não é chave para o entendimento de sua presença na cena pública, mas o livro e o filme a trouxeram em suas narrativas, de formas diferentes, caracterizando o personagem, no caso da biografia impressa, como um guerreiro de muitos amores.

Após o Estado Novo e o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu uma diretriz antigreve entre os comunistas, parte da política internacional da URSS nesse período, que não foi rigidamente seguida pelos trabalhadores brasileiros – o biógrafo menciona centenas de movimentos dessa natureza no estado de São Paulo.

Paralelamente à vida de Carlos, o livro de Mario discute o PCB, com ênfase na figura de Prestes. 1935, 1945 e 1964 são grandes referenciais para a narração, a destacar Carlos, Luiz Carlos, PCB e, em menor escala, sindicatos e, depois, outros grupos de oposição à ditadura. A oposição política distante da luta armada (Congresso, Imprensa alternativa, Artes) também é pouco referida no livro, assim como a vida dos trabalhadores mais pobres.

Mário evidencia especial talento como narrador ao abordar 1964, passagem melancolicamente difícil pelo conteúdo e, também, na forma textual. O biógrafo tende a admirar mais as propostas e ações de Leonel Brizola (Rede da Legalidade, Grupos dos 11) e Francisco Julião (defesa da Reforma Agrária, Ligas Camponesas) no universo anterior ao golpe, contrapondo-lhes erros de avaliação, hesitações e limites de João Goulart e Luiz Carlos Prestes, em especial, a esperança numa burguesia nacional reformista.

É nesse período inicial da ditadura que as diferenças entre Marighella e a direção partidária se acentuam, com a defesa por ele de alternativas às orientações do PCB, inclusive luta armada. Desdobramentos disso foram sua suspensão e subsequente expulsão do PCB, além de duras críticas de Prestes e outros dirigentes comunistas àquela opção. Marighella ganhou notoriedade internacional, mereceu elogios e apoios de Fidel Castro, Jean Paul Sartre e Luchino Visconti, dentre outros, mas não logrou respaldo em mais países do bloco soviético (com exceção da Coreia do Norte, perto do fim da luta armada no Brasil), enquanto sofria crescente atenção de órgãos repressivos brasileiros e norte-americanos.

Junto com o teórico e dirigente dessa luta, Carlos fazia crescer em si o homem de ação, que participava de expropriações em bancos, quando já era mais que cinquentão, o avesso do parisiense lema de 1968 “Não confie em ninguém com mais de 30 anos”, citado no quase desfecho do filme estadunidense O planeta dos macacos, de 1968, dirigido por Franklin Schaffner.

A biografia escrita enfatiza o papel de planejamento e articulação que Marighella desempenhou em relação à luta armada posterior a 1964, mapeando o território brasileiro, arregimentando guerrilheiros, escrevendo sobre a questão. Designado pelo Ministro da Justiça ditatorial Luís da Gama Filho como “Inimigo público número um”, em novembro de 1968, Carlos declarou-se honrado com essa qualificação: afinal, era inimigo número um de uma ditadura criminosa! O livro o destaca como planejador dessa luta armada brasileira em escala nacional, sem desconhecer outros grupos e líderes que, inclusive, disputavam com ele e a Aliança Libertadora Nacional propostas naquele campo, ou se aliavam a Carlos e à ALN em algumas iniciativas.

Há muitas informações sobre finanças, armamentos, projetos de continuar tais combates em 1968 e 1969, logística da guerrilha. O universo brasileiro do trabalho, com arrocho salarial e instabilidade no emprego (o FGTS surgiu em 1966/1967, eliminando a estabilidade por permanência no mesmo posto de trabalho), pouco aparece, embora sofresse duros golpes naquela ditadura: somente na p 511, o arrocho salarial e o medo entre trabalhadores, que os afastava de manifestações públicas contra as práticas ditatoriais, surge, sucedido por um alardeado crescimento econômico brasileiro, que foi traduzido, em termos de propaganda da ditadura, como “milagre brasileiro”. Empresários figuram igualmente de forma limitada, apesar de tanto terem se beneficiado da violência ditatorial que ajudaram a construir e administrar.

Embora Mário reconheça erros políticos de Marighella, seu livro tende à hagiografia laica, expressa numa personalidade ímpar, nos planos intelectual e pessoal, misturada com falhas da ALN nos campos de logística e interpretações que, junto com a barbárie governamental, findaram lhe custando vidas de militantes e sua derrota. Trata-se de um exemplo de Cultura Histórica que convida ao diálogo com outros materiais críticos, nos planos de análise documental e abordagem teórica.

A biografia aponta como fontes de inspiração para ações da ALN a Resistência francesa contra a ocupação nazista, a luta dos palestinos a combater o Imperialismo britânico e o combate argelino que enfrentou os colonizadores franceses, mais a sempre declarada admiração por Cuba e Vietnã pela ousadia anti-imperialista desses países.

A prisão, a tortura e o assassinato de membros da ALN paulista são narrados por Magalhães em cenas dantescas: traumatismos cranianos, sangue, hematomas, o horror em nome da alegada lei ditatorial. O assassinato de Marighella, numa emboscada preparada pelo delegado Sérgio Fleury e sua equipe, é desdobramento lógico desse contexto. Mentiras policiais tentaram sustentar que Carlos, quando morreu, estaria armado, acompanhado por segurança, que houvera um ataque de guerrilheiros contra os policiais ali presentes etc.

O triste fim da extensa narrativa é amainado pelas histórias posteriores dos sobreviventes da ALN e seus aliados, suas participações na política brasileira e em lutas populares depois da ditadura. A imagem da pandorga que se desliga das amarras e some no céu, epílogo do livro, introduz um toque de beleza nesse desfecho, relembra potencialidades de lutas que permanecem como inspirações para novas práticas sociais.

Mário Magalhães é um talentoso narrador jornalístico, que prende a atenção do leitor num volume longo e, frequentemente, tenso, sobrecarregado por informações nem sempre contextualizadas.

O recorte temporal que o filme de Wagner Moura fez, ao se concentrar na luta contra a ditadura de 1964/1985, tem uma vantagem: outros filmes sobre juventude, amores, cotidiano de trabalhadores pobres e mais tópicos daquele personagem e seu tempo poderão ainda ser feitos a partir do mesmo livro, novos desdobramentos inspiradores para outros públicos.

*Marcos Silva é professor titular do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Ensinar história no século XX: Em busca do tempo entendido (Papirus).

 

Referência


Mario Magalhães. Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, 736 págs.

 

Nota


[1] Marighella. Brasil, 2019 (lançado em 2021). Direção: Wagner Moura. Produção: Andrea Barata Ribeiro, Fernando Meirelles, Wagner Moura e outros. Roteiro: Felipe Braga, Mário Magalhães e Wagner Moura. Argumento: baseado no livro Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mario Magalhães. Fotografia: Adrian Teijido. Montagem: Lucas Gonzaga. Elenco: Seu Jorge, Bruno Gagliasso, Adriana Esteves, Herson Capri e outros. Duração: 155 minutos. Cores

[2] SILVA, Marcos. “Marighella”.  Comentário sobre o filme Marighella, de Wagner Moura.  Rio de Janeiro: Andreia Barata Ribeiro e outros, 2019. A Terra é redonda. São Paulo, 22 de dezembro. Disponível em https://aterraeredonda.com.br/marighella/.

 

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