Por TATIANA CARLOTTI*
Comentário sobre a coletânea recém-lançada, organizada por Antônio Augusto R. Ioris e Rafael R. Ioris
O geógrafo Antônio Augusto R. Ioris (Universidade de Cardiff, UK) e o historiador Rafael R. Ioris (Universidade de Denver, EUA) conseguiram uma façanha ao longo das 540 páginas de Amazônia no século XXI: trajetórias, dilemas e perspectivas. Convictos de que a região demanda novas abordagens e perguntas, eles reuniram estudiosos da região, de diferentes localidades, áreas de pesquisa e atuação – lideranças indígenas, cineastas, geógrafos, ambientalistas, pesquisadores, professores universitários… – para pensar, de forma crítica, a Amazônia hoje e amanhã.
Desconhecida por imensa maioria de brasileiros, “o bioma amazônico ocupa cerca da metade do continente sul-americano, espalhando-se por nove países e habitado por cerca de 30 milhões de pessoas em incontáveis ecossistemas, áreas urbanas e bacias hidrográficas. “O que acontece na Amazônia importa para o mundo, ela está e ela é, da mesma forma, um grande mundo a ser coletiva e criticamente interrogado”, apontam os organizadores da obra.
Apesar de estar no “centro das controvérsias globais contemporâneas sobre desenvolvimento, democracia, estado de direito e desavença entre as dimensões humanas e mais-do-que-humanas – da natureza”, a Amazônia parece “não caber na academia oficial, muito menos nos gabinetes da burocracia e nos conselhos administrativos das corporações, ainda que sejam esses alguns dos principais atores decidindo sobre o seu futuro”.
Grande parte dos trabalhos acadêmicos sobre a região está baseada em “estudos de curto prazo, desinteressados de causas e responsabilidades político-ecológicas e frequentemente sem que os autores sequer tenham ido à região”, inviabilizando qualquer relação entre o pesquisador e “vida quotidiana, o espaço, as necessidades concretas das populações locais (a serem definidas por elas mesmas)”, detalham.
Amazônia no Século XXI vem, neste sentido, preencher uma lacuna, estimulando a produção de conhecimento e de diagnósticos e, também, apontando caminhos que partam, inexoravelmente, da participação dos habitantes da Amazônia nos processos decisórios do governo sobre o seu território. Entremeando artigos e entrevistas, análises e testemunhos, referências e experiências, o livro é, também, um testemunho de como o neoliberalismo vem transformando os ecossistemas amazônicos “para a imediata acumulação e transferência de capital”.
Amazônia: uma colônia dentro da colônia
Já no prefácio da obra, Ennio Candotti, diretor do Jardim Botânico e do Museu “vivo” da Amazônia de História Natural (INPA-Manaus), aborda a questão da exclusão dos povos indígenas nas decisões federais, apontando que “a Amazônia continua há duzentos anos uma colônia em seu próprio país ou, melhor, uma colônia na colônia”. Ele traz uma contundente cobrança da presença do Estado na região, “com numerosos institutos, centros de pesquisa, universidades, pós-graduações e laboratórios em cada um dos biomas e diferentes mesorregiões”, lembrando que hoje, na Amazônia, existem apenas dois jardins botânicos (em Belém e em Manaus), “duas pós-graduações em nível de doutorado em botânica, nenhuma dedicada aos estudos dos fungos e uma só em linguística, com 150 línguas indígenas ainda vivas!”.
À face do abandono do Estado se somam outras, tão ou mais devastadoras, como a do desmatamento e do genocídio (secular) dos povos indígenas e quilombolas, perpetrados pelo braço armado do Estado à serviço dos interesses do capital, personificado atualmente no agronegócio e nas corporações internacionais que o financiam, no contrabando de madeira, de minérios, de animais…, no narcotráfico (lavagem de dinheiro) e toda sorte de atividades criminosas que lucram com a exploração predatória do território e de seus habitantes.
Interesses que levam ao fenômeno do desmatamento, minuciosamente analisado pelo biólogo norte-americano Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) que traz um artigo fundamental para a compreensão sistêmica do desmatamento na Amazônia, ao longo dos anos. Explicitando as causas e apontando caminhos, ele analisa os impactos da especulação imobiliária, das commodities, dos incentivos fiscais do governo, da posse da terra, da lavagem de dinheiro, da exploração madeireira, da mineração, da construção de estradas e, sobretudo, da soja e da pecuária, na região.
Os dados impressionam e dizem sobre os governos em questão. Em 2004, a Amazônia sofria um desmatamento de 27.772 km2/ano. Oito anos depois, em 2012, o índice despencava para 4.571 km2/ano. Em 2019, voltava a subir, chegando a 10.129 km2 (o equivalente a um hectare a cada 31 segundos). Em 2020, ultrapassava os 10 mil km2.
Na sequência, o antropólogo João Pacheco de Oliveira (UFRJ) e o geógrafo Tomas Paoliello (UEMA) abordam as fronteiras nacionais e a representação da população indígena desde os tempos coloniais. “O estabelecimento de ´fronteiras´ (…) permitiu decretar como ´livres´ terras que eram ocupadas por coletividades preexistentes, considerar como ´rudimentares´ usos sociais vigentes, qualificar como ´criminosos´ os que se lhe opuseram, adotar e propagar argumentos que justificam a construção de um ´outro interno´, aos quais são inaplicáveis as regras que norteiam a convivência entre os demais cidadãos”, explicam (p.132), permitindo-nos entender como se fortalecem a exploração predatória do território e, sobretudo, o genocídio da população indígena.
Um processo contado pelo romancista amazonense Márcio Souza, também diretor de teatro e de ópera, que analisa a integração forçada e o extermínio da população indígena na Amazônia. “Vamos descobrir que os inimigos dos povos indígenas são os mesmos dos trabalhadores”, destaca o autor, citando-os nominalmente: “o próprio governo brasileiro, em suas instancias municipais, estaduais e federal, o grande capital financeiro, o latifúndio, as grandes empresas madeireiras, as grandes fazendas agropecuárias, as hidrelétricas, as empresas de mineração e as estradas”. Ele traz inclusive casos de genocídios cometidos por pesquisadores estrangeiros, como o extermínio de 20% da população Ianomami quando ela foi transformada em cobaia das experiências genéticas de James Neel, nos anos 1960, na Venezuela.
Essa primeira parte do livro se encerra com a entrevista do fundador da Pindorama Filmes, Estevão Ciavatta, que dirigiu, com Fernando Acquarone, a série Amazonia S.A. veiculada no Fantástico, da Rede Globo. “A Amazônia é onde o Brasil ainda pode se realizar em toda a sua potência cultural, espiritual, econômica e ambiental. E, internacionalmente, é o único assunto que nos dá relevância no cenário global. Por isso que a Amazônia é o nosso passado e inevitavelmente o nosso futuro”, aponta. Complementa essa entrevista, uma carta de Ciavatta e a nota dos povos mundurukus denunciando o incêndio à aldeia de Maria Leusa Kaba, líder da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborun, em 26 de maio de 2021: “atiraram contra as casas e as pessoas. Duas casas foram incendiadas, casa da própria coordenadora e de sua mãe, cacica da aldeia. A informação é que ninguém foi ferido, mas todos estão em esteado de choque”, afirma a nota.
Um planeta refém do capital financeiro
A segunda parte do livro conta com análises aprofundadas dos principais gargalos ao desenvolvimento da região. Ela abre com a análise sobre o agronegócio e sua internacionalização dos professores Rafael R. Ioris (história) e Aaron Schneider (relações internacionais), ambos da Universidade de Denver. A partir do caso da JBS, que passou de frigorífico familiar em Goiás a principal multinacional do agronegócio, eles mostram como o setor se consolidou no país, problematizando os aspectos modernos e brutalmente retrógrados de sua internacionalização, no escopo de uma modernização “conservadora, excludente e insustentável”. Uma processo de internacionalização, avaliam, que perpetua “uma dinâmica histórica eminentemente frágil e insustentável, dada a sua continuada dependência de fatores de produção e mercado sobre os quais não detêm total controle, e associado a processos de destruição dos recursos naturais de produção”.
À reflexão de fôlego sobre o agro, segue os resultados de uma pesquisa de campo, realizada pelo professor Cristiano Desconsi (Zootecnia e desenvolvimento rural – UFSC), que investigou o processo de expansão agrícola na Amazônia Legal, promovida pelos pequenos produtores rurais da região, entre 2013 e 2017, estudando as expectativas de desenvolvimento desses agricultores, em geral, proprietários de lavouras de arroz, soja e milho em territórios de 70 a 300 hectares. Ele também analisa vetores de aceleração desse processo, como as mudanças na legislação ambiental e o discurso da revisão da demarcação das terras indígenas do desgoverno Bolsonaro.
Na sequência, a professora Matilde de Souza (Relações internacionais – PUC Minas) e os pesquisadores, da mesma instituição, Jéssica R. Gonçalves, Victor de Matos Nascimento, Bárbara L. P. Pacheco e Lauana P. D. Alves abordam o impacto promovido pelas várias mudanças nas políticas ambientais do governo Bolsonaro, no que tange a segurança hídrica e alimentar da população local, antes e depois da Covid-19. Durante a pandemia, o que se observa é o aprofundamento da condição de vulnerabilidade da população mais pobre. Do total de mortes pelo novo coronavírus no país, os estados amazônicos somam 9,10% dos casos fatais. Índice bastante elevado quando considerado o quantitativo dos que vivem na região: 8% da população brasileira. As cenas desoladoras provocadas pela falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, ocorrido em março de 2021, ainda estão frescas na memória.
Um dos temas bastante controversos sobre a Amazônia, é a questão das hidrelétricas, apresentada, a partir de uma perspectiva histórica, pela pós-doutoranda Nathalia Capellini (Instituto de Estudos Políticos de Paris). Abordando as motivações e o processo de construção das primeiras barragens no país, durante a ditadura militar – Coaracy Nunes em 1975, Curuá-Una em 1977; Tucuruí ente 1975 e 1984 –, ela destaca que na implementação dessas usinas, “a hidroeletricidade foi concebida como matéria-prima”, portanto, um “ativo” “sujeito à mesma lógica predatória que ditou a exploração de outros recursos da região desde o período colonial”. Inclusive, elas foram viabilizadas junto a outros projetos de mineração de larga escala ou projetos industriais intensivos em energia, visando benefícios que extrapolam as dimensões locais, aponta a autora. Hoje, existem 44 barragens hidrelétricas e 137 pequenas centrais hidrelétricas em operação na Amazônia.
Uma das mais polêmicas foi a construção da Usina de Tucuruí, no Rio Tocantins (PA), durante a ditadura militar. O feito, que levaria à mudança no debate nacional e internacional sobre as hidrelétricas, é analisado pelo pesquisador Frederik Schulze (história – Universidade de Münster), “tanto em termos de integração econômica no mercado mundial, como em termos de proteção ambiental e imaginários sobre a região amazônica”. A análise evidencia como essas hidrelétricas foram projetadas para atender interesses alheios aos da região, apresentando o debate global, contrariamente, como um instrumento catalisador da ação política, em prol de direitos e interesses locais.
Na sequência, os múltiplos desafios da governança do garimpo na região amazônica do Escudo das Guianas, entre o Brasil, a Guiana Francesa e o Suriname, são discutidos pelo pesquisador Miguel P. P. Dhenin (geografia – UFRJ). Neste capítulo, ele analisa o impacto da mineração de pequena escala, variável conforme a demanda internacional pelo ouro, explicitando a complexa situação dos garimpeiros na região, que “circulam nas margens dos rios e das leis, [atravessando] territórios com dinâmicas culturais distintas, sem reconhecer as fronteiras como limites formais”, em um “espaço estruturado em redes organizadas que procuram contornar os bloqueios e as operações militares”.
Em seguida, a professora Edviges M. Ioris (antropologia – UFSC) apresenta um panorama histórico da emergência das reservas ambientais na Amazônia, durante a ditadura, demonstrando o papel central que elas tiveram no projeto de aceleração e modernização econômica da região dos militares, que pretendiam “grandes empreendimentos extrativistas mineiras e madeireiros, rede de estradas e portos, incentivo à migração de pessoas, centros urbanos, telecomunicações, projetos hidrelétricos”, entre outros. Ao longo desse período, destaca, foram criadas 69 reservas federais, como o Parque Nacional da Amazônia (Parna Amazônia) e a Floresta Nacional do Tapajós (Flona Tapajós), analisados pela autora, que observa nesse processo a mais completa ausência de participação dos povos locais na eleição ou definição das reservas. Em ambos os casos, as famílias foram deslocadas desses territórios com o processo de desapropriação já em curso.
No final dessa segunda parte, estão três entrevistas. A primeira, com Jorge Bodansky e Nuno Godolphim, respectivamente diretor e roteirista da série Transamazônica – Uma Estrada para o Passado. Bondansky, que conheceu a região em 1974, durante as filmagens de Iracema: uma transa amazônica, conta essa experiência. Em sua avaliação, a Amazônia vem sendo retratada com ênfase “naquilo que tem mais impacto, que está mais visível, que as pessoas já conhecem. Falta fundamentalmente ouvir as pessoas que moram lá, os originários e outros que se mudaram para lá”. Vozes, complementa Nuno Godolphim, que deixam a situação de invisibilidade para imprimir sua denúncia através das novas tecnologias. Agora, as populações locais começam a filar suas próprias comunidades. “É algo ainda muito pulverizado, mas são experiências interessantes, como as que acontecem entre os Munduruku, os Kuikuro, os Terena e muitos outros povos”, conta.
A segunda entrevista é do advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Luiz Henrique Eloy Amado, pós-doutor pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Membro dos povos Terenas, ele nos conta, em detalhes, o que foi a pandemia da Covid-19 para os povos indígenas sob o governo Bolsonaro que “não apenas negligenciou como tentou sabotar” centenas de barreiras sanitárias criadas pelas próprias comunidades indígenas. Uma ação de base, aponta, que frente ao abandono do poder público, revelou-se fundamental à mitigação do vírus nas comunidades indígenas. Hoje, detalha Amado, existem mais de 900 mil indígenas, 305 povos, 274 línguas faladas e, ainda, 114 grupos isolados ou de recente contato no Brasil. Uma população ameaçada pelos ataques diretos ou indiretos do governo, e desde antes da pandemia.
Esse segundo bloco é finalizado com a entrevista de Ulisses Manacas, dirigente estadual do MST, realizada em 2018, ano de seu falecimento devido a um câncer. Nela, Manacas analisa as forças que mandam no planeta, observando que os grandes biomas brasileiros se encontram articulados com o grande capital. Em suas palavras: “estamos vivendo, em contexto mundial, um processo cada vez mais crescente de oligopolização da produção agrícola. O planeta inteiro passou a ficar refém, na verdade, do capital financeiro. Então a agricultura passou a ser muito mais um elemento de mercado, e a produção agrícola não é mais definida nas microrregiões, mas, sim, pelo mercado internacional e mesmo pelo Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional. Nessa nova divisão internacional do trabalho, o Brasil ficou com a tarefa de ser um grande produtor de commodities para o capitalismo central. O país retrocedeu”.
“O tiro mais certeiro vem do governo federal”
Abrindo a terceira e última parte da obra, Paul E. Little, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), analisa a formulação, promulgação e implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), durante o governo Dilma, em meados de 2012. Analisando como “a mobilização étnica dos povos indígenas brasileiros e seus aliados conseguiu incorporar sua luta étnica dentro do marco das políticas de ordenamento territorial do Estado”, como participante ativo desse processo, ele comenta os principais embates entre as demandas de territorialidade indígena e as políticas ambientais e desenvolvimentistas para a região, e como eles foram resolvidos.
Na sequência, temos um capítulo dedicado à cooperação internacional socioambiental na Amazônia, de autoria da professora Cristina Y. A. Inoue (Relações internacionais – UnB) e das pesquisadoras Paula F. Moreira e Marília Bonfim Silva, da mesma instituição. Analisando a cooperação internacional, iniciada com a redemocratização, elas trazem um panorama desse processo, inclusive, elencando acordos como o Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7) (1992-2012), o Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA) (2002-presente), Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA) (2002-presente) Fundo Amazônia (2008-presente); e a cooperação com vários países, como a Alemanha e os Estados Unidos.
Já a professora de Relações Internacionais do programa San Tiago Dantas (UNESP, Unicamp, PUC-SP) Suzeley Kalil e as pesquisadoras do mesmo programa, Ana Penido e Lisa Barbosa analisam a militarização na Amazônia, a partir de cinco pressupostos: a visão soberanista inadequada, a percepção geopolítica ultrapassada, a crença de que apenas militares são comprometidos com a defesa da Amazônia, a desconfiança dos países vizinhos, e a ideia de integração da Amazônia de forma subordinada ao restante do país. Para tal, elas analisam, de maneira crítica, a presença física intensiva de militares na região, com as operações Acolhida e Controle, autorizadas por Michel Temer em 2018 e ainda vigentes; e Verde Brasil I e II,12 de Jair Bolsonaro, demonstrando a anacrônica e antinacional visão dos nossos atuais militares para a região.
Em sua análise sobre as causas e reações à pobreza nas fronteiras amazônicas, entre Bolívia e Brasil, o geógrafo Antônio Augusto Rossotto Ioris (Universidade de Cardiff) aponta que “o desenvolvimento e a perpetuação da pobreza na região amazônica não acontecem ao redor ou fora da floresta, mas sim dentro e em relação a ela”. Ele discute dois fatores propulsores da pobreza: a base antiecológica do desenvolvimentismo, e o exercício da hegemonia sobre a socionatureza, atribuindo o fracasso na promoção da equidade no manejo fundiário e florestal à “separação dos elementos sociais e naturais que em realidade compõem o mesmo sistema socioambiental”. É o caso, exemplifica, de várias iniciativas desenvolvimentistas que negligenciaram “as diferentes temporalidades da pobreza e a sazonalidade dos modos de vida”, reduzindo oportunidades de sobrevivência, inclusive, pelo “desconhecimento dos impactos das intervenções do manejo ambiental em diferentes escalas”.
O futuro da Amazônia e dos povos indígenas, por sua vez, é tema abordado pela professora Clarice Cohn (Antropologia – UFSCar) e pelos pesquisadores da mesma instituição Lucas Rodrigues Sena e Jucimara Araújo Cavalcante Souza que analisam o impacto da Constituição de 1988 para os povos indígenas, trazendo informações importantes sobre os direitos dessas populações e, também, os direitos ambientais no país. Analisando o caso dos Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá e as falhas jurídicas no licenciamento ambiental da Hidrelétrica de Belo Monte, elas frisam: “as experiencias e propostas indígenas de manejo e gestão sustentável de suas terras não são levadas em conta nos projetos estatais e de desenvolvimento da Amazônia, apesar de esforços pontuais, como a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI)”.
Em seguida, a ecóloga e artista visual Marilene Cardoso Ribeiro traz uma inovadora reflexão sobre como as práticas artísticas podem se comprometer com a busca por justiça socioambiental na Amazônia, a partir e além do contrato civil da fotografia. Com base na própria experiência, ela analisa projeto fotográfico Água Morta que realizou junto à população atingida pela hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA). Entre 2011 e 2019, ela fotografou 94 ribeirinhos atingidos pelas barragens, inclusive, de outras partes do Brasil. “Durante a sessão fotográfica (na qual eu operava a câmera), o participante (que também era a pessoa retratada) desenvolvia suas próprias ideias para seu retrato, escolhia um local relevante para a tomada fotográfica e um objeto que pudesse representar o(s) sentimento(s) dele em relação à hidrelétrica”, detalha. A ideia foi “reconstruir as paisagens sentimentais das perdas causadas pela hidrelétrica” criando uma perspectiva híbrida fotógrafa-fotografado.
Por fim, a obra termina com uma entrevista da líder indígena Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que traz uma forte denúncia contra o governo de Jair Bolsonaro. “Hoje o sentimento que a gente tem é de estarmos no meio de uma guerra. É um cenário bem perigoso, todo mundo procurando um refúgio, mas que não é fácil encontrar. Tiro de tudo quanto é lado, do garimpo ilegal, do desmatamento, das doenças, da pandemia, e o tiro mais certeiro vem do governo federal”.
Nessa entrevista, Guajajara fala sobre resistência, inclusive, traz o histórico da reação indígena, dividindo-o em três fases principais: a da articulação entre as lideranças indígenas com os Constituintes entre 1986 e 1988; a de mobilização e surgimento das organizações indígenas, entre 1989 e 2010; e a atual, em que luta se resume a “não perder os direitos conquistados”. Em sua avaliação, é fundamental que as pessoas compreendam que para proteger a Amazônia, é preciso proteger as culturas tradicionais que, na sua diversidade, são centrais para a preservação da região. E neste processo, avalia, “a academia tem um papel fundamental, especialmente na promoção dessa conscientização”.
Amazônia no século XXI é um aceno e tanto nesse sentido.
*Tatiana Carlotti, jornalista, é mestre em literatura contemporânea (PUC-SP) e doutora em linguística (USP).
Referência
Antônio Augusto R. Ioris & Rafael R. Ioris (orgs). Amazônia no século XXI: trajetórias, dilemas e perspectivas. São Paulo, Alameda, 2022, 540 págs.
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