Cinema distópico

LEDA CATUNDA, Lago Japonês, 1986, acrílica s/ tela e nylon, 130x250cm
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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Filmes politicamente notáveis desmentem a irrelevância da alegoria no trato da distopia e do apocalipse

Magistral é Se o vento tomba (2020), raro filme armênio dirigido por Nora Martirozyan, uma armênia que vive na França. Tem elenco armênio, exceto pelo protagonista francês. O entrecho se situa num minúsculo país encravado no Cáucaso, por nome Nagorno-Karabakh, sobrevivente de uma guerra civil que o dilacerou por três anos, entre 1991 e 1994. O espantoso é que, quando o espectador se convence de estar vendo mais um science-fiction distópico, descobre que é tudo verdade, ou seja, que o país existe, embora sem estatuto geopolítico reconhecido, e que ninguém ouviu falar dessa guerra porque coincidiu com os conflitos balcânicos que fragmentaram a antiga Iugoslávia. Mais uma alegoria…

Na capital há um aeroporto desativado que aguarda licença das entidades internacionais para recomeçar a funcionar, e o auditor francês que chega de fora vai-se inteirando das condições do país para dar seu laudo. Daí decorre o enredo. Intrigante é o menino que atravessa a cena a toda hora, levando em cada mão um garrafão de água, que vai vendendo aos copos. O filme é de uma beleza espantosa, sempre enigmático, e tenta decifrar as condições de vida num lugar assim, com tão duras memórias e cicatrizes. Paralelos com Bacurau se impõem, pois se lá há um pequeno país que não se encontra no mapa, aqui há uma pequena cidade que potências não tão ocultas decidiram apagar do mapa.

Já que estamos no plano do distópico, não custa nada ver o interessantíssimo Não olhe para cima (2021). Esnobado pelo Oscar, pois os membros da Academia não devem ter gostado de ver um retrato tão fiel, é uma sátira arrasadora à era Trump e seu legado de fake news, obscurantismo, canalhice, boçalidade e truculência anti-democrática.

Uma dupla de astrônomos alerta para um cometa a caminho da Terra em rota de colisão e enfrenta chacota, desmoralização e os habituais ataques do negacionismo. A notar que os dois protagonistas são desglamurizados: não são bem vestidos, nem bem arrumados, nem estão na moda. A presidente da República, vivida pela grande Meryl Streep, é uma caricatura: além de ter aparência de piranha só pensa em se reeleger e não tem a menor noção do que estão falando. Nomeou um filho horrível – tão horrível quanto ela, e lembrando outros filhos de outros presidentes – para chefe da Casa Civil, onde ele se esbalda mobilizando os poderes de repressão e espionagem a seu dispor. Ambos, mãe e filho, da maior desfaçatez.

É a primeira vez que vemos na tela o alcance a longo prazo das políticas de Donald Trump. Os apresentadores de televisão não estão preparados para coisa séria, e também são da maior cafajestice: o desprestígio porfiado da ciência e do conhecimento leva a isso. E assim por diante. E se o espectador espera uma boa solução, pode desistir. O filme não é otimista, embora persista no humor cáustico.

Aqui reencontramos Mark Rylance, de À espera dos bárbaros, em papel adequado a sua grandeza. Sua personagem é uma síntese dos magnatas do Vale do Silício, que se tornaram bilionários criando o maior aparato totalitário da história da humanidade. E sempre com aquele aura de puros e cientistas, fiados que estão na falsa neutralidade do algoritmo, insistindo que nada têm a ver com os resultados e as consequências para as pessoas. Assim chegamos ao ápice da desigualdade, com essas ferramentas preparadas para tornar os ricos ainda mais ricos e os pobres ainda mais pobres.

Filmes politicamente tão notáveis quanto esses desmentem a irrelevância da alegoria no trato da distopia e do apocalipse. Tarefa para críticos profissionais, seria o caso de ter paciência para assistir uma quantidade enorme de filmes de vampiro, de mortos-vivos, de science-fiction ou fantásticos, sem falar nos de super-herois que resvalam nesses outros ou assim têm a pretensão. Quem sabe então se poderia pensar na possibilidade de arriscar algumas hipóteses sobre sua proliferação.  Certamente infantilizaram o público, mas, para além do ataque que implicaram ao cinema como instrumento de reflexão sobre o mundo contemporâneo, podem estar justamente através de alegorias e símbolos expressando algumas das mais profundas preocupações que nos espicaçam.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).


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