Palestina e Israel na reconfiguração do sistema mundial

Khaled Hourani, Paisagem não natural, 2020
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Por MARTÍN MARTINELLI*

Três fatores na mesa global contextualizam este novo derramamento de sangue

Esta geografia é controversa para explicar apenas tirando uma foto do presente. Que relação particular têm com esta porção relativamente pequena de território, que não possui grandes jazidas nem riquezas em matérias-primas? É uma instalação nuclear a nível geoestratégico e geopolítico.

Por que a nova escalada de violência? Isto é um reflexo da reconfiguração do sistema mundial. Três fatores na mesa global contextualizam este novo derramamento de sangue. A influência dos Estados Unidos e o seu relativo declínio no Médio Oriente, mais a erosão do conflito na Ucrânia, o poder da China e a sua aliança com a Rússia. Influência dos EUA e o seu declínio relativo na região e no Médio Oriente. É por isso que é crucial compreender a importância de analisar o contexto regional e as implicações geopolíticas desta questão.

Embora esta violência seja cíclica, mostra como o mundo mudou, especialmente desde 2013-2014. Enfrentamos uma crise de longa duração nos Estados Unidos, um declínio relativo em vários aspectos económicos, além de mantermos a primazia financeira e tecnológica, a sua hegemonia global está a ser questionada. Orienta-se com o “pivô asiático” desde Obama em 2011, anterior à Iniciativa Cinturão e Rota de 2013, e com os freios da Rússia e da China à destruição iminente da Síria, que teria sido o corolário da destruição do Iraque (1991). e 2003), Afeganistão (2001), Líbia (2011). Por isso, recua em alguns locais-chave como o Oriente Médio, onde a China e a Rússia estão avançando.

Os Estados Unidos em sua estratégia de não ceder sua primazia, tem buscado a expansão e a intervenção militar. Três áreas de tensão se colocam como principales: Europa do leste com o conflito Ucrânia-Rússia; o Oriente Médio, Israel-Irán, e Taiwán na região da Ásia Pacífico com a China. Além dessas, temos que levar em conta a região do Sahel revolucionada por movimientos emancipadores o de uma “segunda onda de independências”, na África atlântica.

O padrão de violência simbólica e material em todo o mundo, especialmente desde 1945, aumentou em 2001, com o que chamaram de “guerra contra o terrorismo”. Agora tenta-se renovar esta reconfiguração do sistema mundial, com a ascensão do poder chinês acompanhada pela aliança estratégica com a Rússia, à qual o Irã adere.

A Ucrânia como eixo de confronto está mais desgastada. Acrescenta-se um incipiente processo de desdolarização devido ao planeamento neste sentido por parte das grandes potências emergentes que procuram desta forma equilibrar o poder mundial e evitar a arma das sanções económicas dos EUA como aconteceu com a Rússia ou o Irão. O sistema mundial também é reconfigurado pelos dez anos da “Faixa e Rota”. Temos eixos de tensão nessas rotas e na reconciliação entre a Arábia Saudita e o Irão. É um erro analítico observar apenas o que acontece na Palestina-Israel e dissociá-lo do seu contexto regional e global.

BRICS+ muda tudo, ou quase

A chave é a expansão dos BRICS+ (mais as eleições dos Estados Unidos em 2024) para onze países: Egipto, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Irão (mais Argentina). Constituem um novo eixo de abordagem à Eurásia, de aumento da produção petrolífera e de passagens geoestratégicas globais que atravessam a região como o Canal de Suez, o Estreito de Bab el-Mandeb e o Estreito de Ormuz. Com exceção da Rússia, são países colonizados ou semicolônias das potências do G7 nos últimos séculos.

É uma mudança fundamental que abre novas possibilidades de relacionamento, de troca, a nível simbólico, mas sobretudo a nível geoestratégico, geopolítico e geoeconômico. Com a possibilidade de equilibrar o tabuleiro mundial de diversas formas dado que com o maior domínio ocidental das organizações internacionais, económicas e financeiras, para além das militares, (OTAN, FMI, Banco Mundial, utilização do dólar) o cenário mudou em pelo menos nesse sentido e um grupo de países defende de forma organizada e conjunta.

Representa “uma explosão sistêmica na ordem internacional”, segundo José Luís Fiori. Gera expectativas não só entre os seus onze associados, mas também naquilo que espalha aos demais. Adquire uma nuance planetária, junta-se à Organização de Cooperação de Xangai (OCS) (China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Paquistão, Índia e Irão), à OPEP+ e à EAEU (União Económica Eurasiática). Novos vínculos globais são tecidos com uma ótica que desafia a Tríade.

Estas organizações minam o poder hegemónico daquelas promovidas pelos Estados Unidos desde Bretton Woods, como o FMI, o Banco Mundial e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, continuação de 1949). Poderia assim ser criada uma gama de possibilidades com mais dimensões e uma oportunidade para unificar as políticas da Nossa América ou do Médio Oriente para lidar com as potências.

Uma aliança desta magnitude reflete as mudanças geoeconômicas e tectônicas que implicam um reequilíbrio hegemônico do sistema capitalista. Entre elas está a possibilidade de o gás e o petróleo não serem cotados ou comercializados sob a égide do dólar. Uma mudança sistêmica em ascensão desde a crise capitalista de 2008, depois com o anúncio da BRI em 2013, que marca a sua primeira década. As relações culturais, econômicas e mesmo tecnológicas, incluindo a energia nuclear, serão favorecidas pela sua incorporação neste projeto multipolar. A médio prazo, poderá estabelecer um novo paradigma de transição energética para as energias renováveis desses mesmos países. Apesar disso, a desigualdade continua a aumentar nas sociedades dos países BRICS+ e no estrangeiro, e essa é a questão a ser resolvida.

BRICS+ ou BRICS 11 envolve o redesenho de políticas económicas e financeiras que abrangem vários continentes e, portanto, adquirem relevância global. As novas adições indicam a soma dos recursos atualmente estratégicos em energia, território, população e localizações geoestratégicas. Portanto, a organização destes países com uma visão coletiva e o estabelecimento de outros tipos de relações entre os países em relação àquelas que temos testemunhado, especialmente desde a queda do muro e o desenvolvimento do chamado neoliberalismo, gera uma certa expectativa de mudar “a ordem baseada em regras”. E isto é evidente, por exemplo, no pagamento da Argentina ao FMI em yuan, e na correspondência à dependência do dólar em muitos outros países.

Palestina-Israel é um dos epicentros da nova guerra fria ou híbrida

O exército israelita é um bastião do sistema imperial dos Estados Unidos e da OTAN que possui armas nucleares e a mais moderna tecnologia destrutiva, com a qual enfrenta uma guerrilha e uma população civil. Embora ambos os povos sofram, a assimetria de poder entre os contendores e a situação do avanço colonial israelita mostram quem deve pôr fim à sua postura bélica. É sustentado graças ao seu papel co-imperial como apêndice do sistema imperial (Katz, 2023) liderado pelos Estados Unidos. Naquela região, nesta continuidade de mais de duas décadas chamada guerra ao terror, os custos humanos são terríveis, milhões de refugiados, mortes e pessoas afetadas em toda a região.

Joe Biden no Congresso, em 1986, declarou: “Israel é o melhor investimento de três mil milhões de dólares por ano que fazemos. Se Israel não existisse, os Estados Unidos teriam de inventar um Israel para proteger os nossos interesses na região.” A maior ajuda militar estrangeira num cenário de disputa como o Médio Oriente que acelera ou antecipa mudanças sistémicas a nível mundial.

O pequeno país da costa mediterrânica dirige três políticas para a Palestina. Primeiro, um Plano diretor de judaização, de desarabização, de geração de uma maioria da população judaica como uma questão de maioria política e baseado no racismo estrutural. Podemos diferenciar a forma utilizada em Jerusalém, declarada capital única, indivisível e eterna em 1980, unilateralmente e com a intenção de minar (há quarenta anos) a possibilidade de os palestinos alcançarem a sua autodeterminação, o seu autogoverno. A Colónia Maale Adunim pretende dissecar a Cisjordânia em duas, ou o que dela resta.

O plano para o território cumpre-se em Al-Quds/Jerusalém de forma exponencial. Uma cidade internacional de “corpus separatum” de acordo com a recomendação de partição injusta da Declaração 181 da ONU de 1947, dado o seu estatuto sagrado para três religiões monoteístas que consideram locais como a Esplanada da Mesquita para os muçulmanos – 1,6 bilhões de crentes –, o Muro das Lamentações para os judeus – 15 milhões – e o Santo Sepulcro para os cristãos – 2,4 bilhões.

Em segundo lugar, na Cisjordânia, onde também se pretende uma anexação territorial, que se quis legitimar em 2020. A expulsão por gotejamento segue-se às deportações em massa de 1948 e 1967, e às deste ano. As colônias de colonatos (colonialismo do século XXI), o órgão da conquista territorial israelita, cresceram duas vezes mais que a taxa de crescimento das outras áreas de Israel.

O acima exposto é complementado pela estratégia para a chamada “Judeia e Samaria” (nomes da Torá) Cisjordânia, uma série de estradas, postos de controle, colonos armados e ideologicamente preparados para avançar contra seus vizinhos palestinos, e uma presença diária de o exército israelita a todos os níveis, isto é, de um ocupante contra um povo impedido de exercer a sua soberania.

Terceiro, Israel, o único possuidor de armas nucleares na região e um dos mais sofisticados, irrompe com assassinatos em massa na Faixa de Gaza em 2023, depois do que foi feito em 2008-2009, 2012, 2014, 2021, 2021. Este território bloqueado por terra, mar e ar, são bombardeadas populações inteiras, que tentam resistir com lançamentos de foguetes, cujo poder é diametralmente oposto. Em suma, Israel pretende colonizar e apoderar-se destas terras, controlá-las através das suas forças militares de ocupação, o resultado é uma série de populações sem ligação ou de bantustões ao estilo sul-africano.

Terrorismo, apartheid, resistência, BDS

A microviolência cotidiana torna-se menos perceptível para a mídia, ou melhor, eles optam por não mostrá-la. Qual é a intenção por trás do termo terrorismo? É um conceito distorcido a ponto de perder o seu significado possível, ao mesmo tempo utilizado com uma intenção acrítica, e depois fazer incursões contra um determinado país. Quando não há dúvida de que o capitalismo é o eixo de todos os dilemas dos últimos cinco séculos, e especialmente destes dois últimos, acentuados ainda mais pela dissolução da União Soviética. Na média destas últimas três décadas, a “Guerra Global contra o Terrorismo” (GWOT) estava a virar-se para a “Competição entre Grandes Potências” (GPC). A GWOT é o nome que procura esconder o dispositivo de destruição e reconfiguração do Médio Oriente.

Diferentes organizações verificaram que Israel estabeleceu um regime de apartheid que oprime o povo palestino. Sobre os direitos humanos, o B’Tselem israelita (2021) afirmou: “O regime israelita decreta um regime de apartheid em todo o território que controla (território soberano de Israel, Jerusalém Oriental, Cisjordânia e Faixa de Gaza). As políticas israelitas procuram perpetuar a supremacia de um grupo, os judeus, sobre outro, os palestinianos. “Rejeita a percepção de Israel como uma democracia (dentro da Linha Verde) que defende a ocupação militar temporária (além).” Além disso, concluiu: “…a linha divisória para definir o regime israelita como um regime de apartheid foi alcançada depois de considerar a acumulação de políticas e leis que Israel concebeu para fortalecer o seu controlo sobre os palestinos”.

A Quarta Convenção de Genebra proíbe explicitamente a transferência da população civil da potência ocupante para o território que invade. E tanto o Conselho de Segurança das Nações Unidas como o Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) decretaram a ilegalidade dos colonatos israelitas na Cisjordânia.

A Faixa de Gaza é a maior prisão ao ar livre do mundo. Isto foi beneficiado pelos recursos israelenses, no início, no final dos anos 1980, Israel apoiou o Hamas para dividir o movimento palestino. A intenção era fragmentá-los como movimento político nacional, geograficamente e no movimento estratégico para derrubar os regimes nacionalistas seculares na região. O Hamas é um movimento político que tem um braço armado, as Brigadas Izzedin Al-Qassam, tal como Israel tem um exército, que devido à disparidade de poder utiliza ambas as formas de violência diferentes mas questionáveis. O contraste está no contexto e na circunstância anterior, além dos resultados desiguais e da manipulação midiática.

Há resistência palestina ao apartheid, pacífica (como Boicote, Desinvestimento e Sanções BDS) e por vezes violenta, através de reivindicações de direitos humanos e formas de resistência armada. A situação das invasões anteriores perturba o cenário territorial e a população dos dois países paga as consequências, também desiguais, como tudo o que ali acontece.

A incursão palestiniana no território israelita está ligada a um longo período de opressão anterior e diária dos palestinianos em geral, tanto na Cisjordânia como em Gaza. Embora isso não o justifique, contextualiza-o nas espirais de violência daquele território. A Faixa de Gaza é um dos lugares mais densamente povoados do mundo. Possuem pouquíssimas horas de luz diária e pouca disponibilidade de água potável.

Os Acordos de Oslo de 1993 procuraram evitar sofrer novamente intifadas – o que também ocorreu – ou que a Autoridade Nacional Palestina (ANP) controlasse os palestinianos mais revolucionários. Como isso difere de qualquer monopólio sobre o exercício da violência por parte de outros Estados? Os israelitas procuram conquistar mais terras, mas o dispositivo falha ao não considerar uma população palestiniana. Eles continuam com os seus planos de anexação e desde 1967, cada vez mais, a população palestiniana tem sido engolida por uma rede de cidades israelitas, mas sem ter os direitos que essa cidadania proporcionaria.

A disputa, desigual na maioria dos aspectos, ocorre em limites geográficos, históricos, linguísticos, arqueológicos, artísticos e que quebra o equilíbrio, como é e tem sido a mídia. Contudo, o poder tecnológico e militar israelita é garantido pela maior potência histórica nesse sentido, que lhe promete abertamente uma “vantagem militar qualitativa” na região, o Pentágono, o grande mestre dos fantoches.

Martín Martinelli é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidad Nacional de Luján (Argentina). Autor do libro Palestina (e Israel). Entre intifadas, revoluciones y resistencias (EdUNLu).

Referência


Katz, Claudio (2023). A crise do sistema imperial.


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