Governo Lula – Ano I – saúde

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Por PAULO CAPEL NARVAI*

A extrema direita no governo federal feriu gravemente o SUS

“Ainda bem que o governo Lula conta com Nísia Trindade na saúde e no comando do SUS.” O elogio à ministra veio de um amigo, médico e ex-secretário municipal de saúde de uma cidade paulista, após o programa “Conversa com o Presidente”, de 12 de dezembro de 2023, que teve também a participação da ministra da Saúde. Ao completar o primeiro ano do seu terceiro mandato, o presidente Lula vem fazendo um balanço e prestando contas à sociedade.

Faz bem. É um esforço para superar as dificuldades da comunicação social do seu governo e, sobretudo, para enfrentar a desinformação e a deliberada má informação divulgada intensivamente contra ele e seus ministros. Mas algumas dificuldades do Lula3 vão além da desinformação e das fake news, tão nocivas à democracia e ao convívio social. Algumas dificuldades têm origem no próprio presidente da República.

Lula propõe soluções simplistas para questões complexas, e isso é um problema. Mas essas “soluções” têm origem na amplamente reconhecida sensibilidade de Lula para captar, compreender e tentar solucionar as dificuldades enfrentadas cotidianamente pela maioria das pessoas. “Lula acerta no diagnóstico, mas erra na terapia”, disse o amigo médico gestor do SUS.

Lula acerta no diagnóstico quando sente que a população precisa do SUS, quer manter e desenvolver nosso sistema universal de saúde, público, controlado pelo Estado e “pela comunidade”, como garante o artigo 198 da Constituição de 1988, mas quer mais e melhores serviços. Lula sabe que o povo defende o SUS, mas quer um SUS melhor do que o que temos hoje. Reconhece que é correto o foco posto, neste ano, na intensificação do esforço para recuperar perdas enormes na cobertura vacinal, na redução de filas “para tudo” em decorrência da desestruturação de serviços municipais imposta pela pandemia e pelo corte de recursos feitos na gestão anterior.

Sabe também que “a destruição” do ministério da Saúde não é apenas uma expressão retórica, própria do discurso político. Nísia Trindade e o primeiro escalão da Saúde, que reúne um punhado de craques, vêm fazendo das tripas coração para refazer as equipes e processos de gestão que, tendo levado muitos anos para se constituírem, foram brutalmente desmontados nos quase sete anos de péssima administração federal do SUS.

Esse contexto começou a ser produzido logo após o golpe de 2016, pela equipe posta por Michel Temer para cuidar do SUS, e dramaticamente agravado pelo desgoverno neofascista entre 2019 e 2022. No federalismo brasileiro, organizar programas e projetos de saúde pública leva tempo, exige muita competência e recursos. A extrema direita no governo federal feriu gravemente o SUS.

Lula sabe, portanto, que não é fácil o trabalho, minucioso e competente, que Nísia Trindade vem conduzindo com sua equipe na reorganização do seu ministério, na rearticulação e reestruturação dos entes federativos que integram o SUS, reatando e fortalecendo relações interfederativas, e, quando necessário, realizando intervenções diretas, como no caso da saúde indígena. Por isso, o presidente blindou Nísia Trindade. Freou a cobiça pelo seu cargo, chamou para si sua nomeação e a fortalece sempre que pode, como fez no encerramento da 17ª Conferência Nacional de Saúde, em 5 de julho de 2023, e no programa “Conversa com o Presidente”, ocasião em que acenou para o cenário que deseja para a saúde “no final do meu governo”, indicando claramente que Nísia Trindade permanecerá na equipe de ministros.

O tom de voz, o rigor com dados, o apoio em evidências científicas e o estilo “meia-luz” de Nísia Trindade contrastam com a busca de holofotes, as meias-palavras, a grandiloquência e a estridência de alguns ministros, do atual e de governos passados. Alguns, inclusive no partido do presidente, a consideram frágil e hesitante, mas isso é apenas aparência. O conjunto de ações que marcam o trabalho realizado pelo ministério da Saúde no Ano-1 do Lula3 mostra o oposto.

Houve recuperação do financiamento do SUS, contrariando a expectativa de que em 2023 o orçamento do SUS seria reduzido em cerca de R$ 22,7 bilhões em relação a 2022. Aconteceu o oposto. Houve, segundo Nísia Trindade, “um acréscimo de R$ 34,4 bilhões”. Ainda que o SUS tenha tido muitas perdas orçamentárias nos últimos anos, e que o cenário de subfinanciamento crônico não tenha sido superado, o orçamento aumentou substantivamente. A Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2024, prevê chegar a R$ 218,5 bilhões, o que corresponde a um aumento de 46% em relação a 2023.

Esse aumento no orçamento do SUS se traduziu, em 2023, em mais 28 mil vagas no programa “Mais Médicos”, beneficiando 96 milhões de pessoas. O programa “Farmácia Popular” ampliou o acesso gratuito a mais de 40 medicamentos para 55 milhões de pessoas. Para cirurgias, foram investidos R$ 600 milhões no programa “Redução de Filas”. O programa SAMU deu início à renovação da frota de ambulâncias com a aquisição de quase 2 mil novos veículos e teve um aporte de R$ 1,7 bilhão. No programa “Brasil Sorridente” foram credenciadas 4,3 mil novas equipes de saúde bucal e entregues 360 unidades móveis aos municípios.

A saúde indígena está tendo seus recursos duplicados: de R$ 1,6 bilhão em 2023 para R$ 2,5 bilhões em 2024. Pesado investimento foi feito também no desenvolvimento da saúde digital, modernizando a rede de unidades do SUS em todo o país, notadamente em regiões remotas, com destaque para o aplicativo e prontuário eletrônico ConecteSUS. Foi criado o programa Saúde com Ciência para valorizar a ciência, defender as vacinas e enfrentar a desinformação e a má informação.

O conjunto de ações realizadas em 2023 pelo SUS, com cerca de 1,5 bilhão de procedimentos, incluindo operações tão variadas quanto partos e transplantes (um dos quais o coração do Faustão), tratamentos dentários e aplicações de vacinas, além de ações de promoção da saúde e vigilância sanitária, mencionados por Nísia Trindade no programa “Conversando com o Presidente”, indicam que não há fragilidade nem hesitação, mas força e determinação.

Ainda bem que o governo Lula conta com a Nísia na saúde e no comando do SUS, pois, para a ira de quem quer fazer tudo na base de emendas parlamentares, a ministra vem defendendo o respeito ao planejamento e às relações republicanas com estados e municípios.

Mas o presidente da República e sua ministra da Saúde também sabem que milhares de pessoas morrem ou têm doenças agravadas pela demora em realizar exames e conseguir consultas com especialistas. Quem tem câncer, por exemplo, não pode esperar para ser atendido um ano depois de ter o diagnóstico. Tudo é muito urgente.

Um dos erros de Lula na “terapia” para os problemas do SUS é supor que todos podem ser resolvidos diretamente pelo Ministério da Saúde, seja por serviços próprios, seja por serviços particulares. Veja-se, como exemplo, o caso das mal denominadas “comunidades terapêuticas”, em que atribui a particulares sem qualificação, competência para atuar em área muito complexa, como a de saúde mental. Nesta área está um dos principais problemas do Lula3 no Ano-1 da saúde.

O simplismo de supostas soluções não resiste a análises mais críticas. Para o presidente, não haveria motivos para que os itinerários terapêuticos de problemas rotineiros de saúde não incluam a realização de exames e consultas em clínicas próximas da moradia dos doentes. “Tem clínicas particulares ali, na rua onde a pessoa mora”, como costuma dizer. Mas não é assim. O SUS, e isso Lula tem dificuldades para aceitar, não é um “grande serviço de saúde, unitário, de abrangência nacional”, em que o ministro decide o que deve ser feito em cada cidade, em cada bairro.

Lula sabe disso, compreende isso, mas, por ser sinceramente sensível às dores e sofrimentos do povo, parece não querer aceitar que não é assim que o SUS funciona. A base operacional do SUS é constituída pelos municípios, e cada município tem autonomia para decidir o que quer e o que não quer fazer no SUS sob seu comando. Isto é um empecilho para colocar em marcha as soluções simplórias. Mas isto é uma conquista da cidadania e do SUS, que pode tomar decisões sobre saúde, em nível local.

A cabeça de Lula sobre saúde segue sendo a cabeça do presidente do sindicato, que quer oferecer um ótimo ambulatório médico-odontológico, mas também quer “arrancar dos patrões” um bom “plano de saúde”. Ele crê, piamente, que “planos de saúde” são a melhor solução e se os ricos e a classe média têm planos, então quer que “planos” sejam acessíveis para todo mundo. É um erro. Mas Lula parece não saber disso, pois parece não se dar conta de que essa é uma opção que dilapida recursos, enriquece empresas, mas não produz saúde coletiva. Sobre isso, basta olhar para a saúde nos EUA.

Até a pandemia de covid-19, Lula declarava apoio ao SUS, mas não tinha maior entusiasmo por nosso sistema universal de saúde. Desde os tempos de sindicato no ABC paulista, via o SUS apenas como uma espécie de grande “plano de saúde”, controlado pelo Estado. Essa percepção mudou radicalmente quando o Brasil teve de enfrentar a covid-19. O país tinha então, à frente da Presidência da República, um tosco místico anti-SUS que recusava vacinas e pedia rezas e orações contra o vírus, e no comando do SUS uma sucessão de ministros em que despontaram, por sua notável incompetência, o general de Exército Eduardo Pazuello, e, por ser um antivacinista de araque, o médico Marcelo Queiroga.

Eduardo Pazuello, o “especialista em logística”, como se sabe, conseguiu enviar para o Amapá (AP), vacinas que deveriam ter ido para o Amazonas (AM). Marcelo Queiroga, médico cardiologista e conhecedor da segurança e eficácia das vacinas, fez-se passar por antivacinista apenas para agradar o então presidente e seus acólitos e o nefando “gabinete do ódio”.

Durante a pandemia, Lula percebeu a importância do SUS para todas as pessoas, e não apenas para pessoas pobres, “os mais humildes”, como costuma dizer. Sua compreensão da importância do SUS para além da assistência às pessoas doentes se aprofundou. No discurso de posse afirmou que “o SUS é provavelmente a mais democrática das instituições criadas pela Constituição de 1988”. Mas seu coração de sindicalista segue pulsando por “planos de saúde” para todos.

Lula reconhece a importância de vacinas e da prevenção de modo geral, mas seu olhar sempre se dirige para a assistência e os cuidados individuais. Falta-lhe, ou sente necessidade de desconsiderar, que qualquer sistema de saúde, em qualquer país, precisa equilibrar ações preventivas e cuidados assistenciais, como um imperativo de sua sustentabilidade econômica. Se esse equilíbrio é rompido pela ênfase nos cuidados assistenciais, como fazem os “planos de saúde”, o sistema perde sustentabilidade, pois as necessidades nesse lado do equilíbrio são praticamente infinitas e seus custos são crescentes.

Ações preventivas são indispensáveis, para conter o aumento das necessidades em saúde, e viabilizar sistemas universais, como o SUS. Não é fácil, claro, chegar ao ponto de equilíbrio. Mas o SUS precisa desse equilíbrio e, por essa razão, as ações que realiza, precisam chegar a todas as pessoas, e não apenas aos pobres e humildes, como supõe Lula.

É tendo essa complexidade como referência, que trabalha o Ministério da Saúde e o SUS. Lula intui a relevância desse trabalho e o apoia – ainda que não o compreenda muito bem. Como, aliás, a maioria das pessoas também não compreende, pois o assunto é mesmo complexo. Todo mundo quer, com razão, evitar dores e sofrimentos, viver bem, fugir da morte. Ouvi, dia desses, de um amigo que “a gente não precisava arder em dor durante este curto soluço que é a vida”.

Quem defende e luta pelo SUS sabe disso, conhece bem esse “arder em dor”. David Capistrano Filho, um dos idealizadores do SUS, costumava dizer, e chegou a escrever que “nosso trabalho é uma guerra contra as consequências, no campo da saúde, da miséria, da fome, da ignorância, dos ambientes de trabalho insalubres e inseguros, de toda uma forma de organização social violenta, cruel, geradora de desigualdades brutais. Numa palavra, nós travamos uma guerra em defesa da saúde e da vida, contra o rastro de sofrimento e de morte com o qual o capitalismo brasileiro marca a existência de milhões de pessoas”.

Mas Lula e Nísia Trindade sabem que os problemas do SUS, como a insatisfação com filas e demoras para consultas, exames e cirurgias podem se transformar, ou serem oportunisticamente transformados, em uma espécie de cabo eleitoral da oposição ao governo. Claro que Lula está de olho nessa possibilidade e age para neutralizar o uso político-eleitoral das dificuldades do SUS. Esta é, também, uma batalha no plano simbólico.

Por isso, já no apagar das luzes de 2023, foi muito bem recebido pelos defensores do SUS, o sinal verde simbólico aberto para o nosso sistema universal de saúde por Bill Gates, o criador da Microsoft. Em artigo em seu blog o empresário e filantropo reconheceu importantes conquistas do SUS no controle da mortalidade infantil e no financiamento da saúde pública e a articulação desses esforços com programas sociais como o Bolsa Família. Destacou que, em 1990, 24% dos brasileiros viviam com renda inferior a 2,15 dólares por dia e que, três décadas depois, essa porcentagem diminuiu para 6%. Para ele, o SUS é um exemplo para outros países, que poderiam “aprender e imitar”.

É essa compreensão, de que saúde é poder viver bem, que isso deve ser possível para todos, e que incumbe ao SUS articular as ações que forem necessárias para viabilizar o viver bem para todos, que vem marcando a gestão da saúde e do SUS no Ano-1 do Lula3.

Ainda bem que o governo Lula conta com a Nísia Trindade na saúde e no comando do SUS, pois se o Lula sente a necessidade de dar ao SUS esse rumo para um viver bem para todos, sua ministra da saúde não apenas sente essa necessidade, mas põe em prática ações nesse rumo, pois sabe o que precisa ser feito e como fazer. Aliás, vem fazendo.

Concluo com outro erro de Lula, que costuma citar José Serra e Nísia Trindade como ministros da Saúde que “não são médicos”. Deve ser por um desses processos em que nossa cabeça se recusa a aceitar algo, que Lula se “esquece” de colocar nessa lista de ministros da saúde não médicos, o general de Exército Eduardo Pazuello. Não vou me alongar nisso, mas vários ex-ministros da saúde não eram médicos.

A longa lista inclui os advogados Antônio Balbino, o primeiro a ser nomeado ministro da saúde do Brasil (1953), Armando Falcão (1961), Vasco Leitão da Cunha (1964) e Gilberto Occhi (2018); Pedro Paulo Penido (1960), dentista; José Goldemberg (1992), físico; Barjas Negri (2002-03), economista; Agenor Álvares (2006-07), bioquímico-sanitarista; e Ricardo Barros (2016-18), engenheiro. Quase todos, é verdade, com passagens efêmeras pelo ministério.

Mas os três anos de Ricardo Barros foram um verdadeiro pesadelo. Nada se compara, porém, aos 10 meses da gestão de Eduardo Pazuello, marcado como um dos maiores desastres na gestão da saúde brasileira. Seu sucessor, Marcelo Queiroga, até que se esforçou para igualá-lo em incompetência e descrédito, mas há que reconhecer que não chegou nem aos pés do general-ministro.

Por essa razão, é mesmo compreensível o erro do presidente da República. Eu quero errar com Lula nisso, pois eu também gostaria muito de esquecer que, um dia, nossa saúde, e muitas vidas, estiveram dependentes de decisões tomadas por Eduardo Pazuello.

Ainda bem que o governo Lula, e o Brasil, contam hoje com a Dra. Nísia Trindade na saúde e no comando do SUS.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/45IhkhQ]


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