A crise climática exige mudanças na vida cotidiana

Gustave Le Gray (1820-1884), A grande onda, 1857.
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Por RICARDO ABRAMOVAY*

Para que as ambiciosas metas estabelecidas no Acordo de Paris sejam atingidas, a contribuição dos indivíduos e das famílias terá de ser cada vez maior

A luta contra a crise climática, nos países desenvolvidos, está entrando numa nova, difícil, e fascinante etapa. As conquistas obtidas até aqui, e que respondem pela queda nas emissões de gases de efeito estufa nos Estados Unidos e em quase toda a Europa Ocidental, apoiaram-se em transformações que pouco alteraram os modos de vida dos cidadãos.

Só que agora isso vai ter que mudar. A crise climática tem sido enfrentada, nas últimas décadas, sem exigir alteração nos comportamentos das pessoas. Mas, para que as ambiciosas metas estabelecidas no Acordo de Paris sejam atingidas, a contribuição dos indivíduos e das famílias terá de ser cada vez maior.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a descarbonização da matriz energética está ocorrendo fundamentalmente graças à substituição do carvão pelo gás, que emite muito menos que o carvão. Esta substituição é produto da introdução do fracionamento hidráulico na obtenção de fósseis, que permitiu ao país deixar de ser importador de petróleo, abrindo caminho à tão almejada meta de sua independência energética.

Na Europa Ocidental (onde o corte de emissões foi bem maior que nos EUA) tecnologias renováveis modernas (solar, eólica, geotérmica e bioenergia) contribuíram decisivamente para esta salutar queda. E nos dois lados do Atlântico foi massiva a transferência de indústrias intensivas em carbono para a China, o que explica também a redução de suas emissões. O “made in China” consumido no mundo todo entra na conta das emissões chinesas e não na dos países aos quais os produtos são vendidos.

Estas conquistas correspondem ao que, em inglês, se costuma chamar de “low hang fruit”, que significa literalmente, “fruto pendendo para baixo”, expressão usada para descrever o fruto que se colhe primeiro, por estar mais à mão, ou seja, algo relativamente fácil de obter. Mas por mais relevantes que tenham sido as conquistas alcançadas até aqui nestes países, o maior desafio começa a ser enfrentado agora. E este enfrentamento só terá um resultado positivo se houver transformações importantes não só nas tecnologias, mas, sobretudo, na maneira como estas tecnologias entram na vida cotidiana dos cidadãos.

Esta é a mensagem central do relatório que acaba de ser lançado por Brett Meyer e Tim Lord, pesquisadores do Tony Blair Institute for Global Change. Entre 2009 e 2019, mostram Meyer e Lord, 87% da redução das emissões não se originaram em mudanças comportamentais. Mas nos próximos quinze anos, somente 41% desta queda poderão vir destas fontes: o restante depende de mudanças nos comportamentos das famílias.

Quais são estas mudanças? Meyer e Lord insistem que não se trata de converter toda a população ao vegetarianismo ou abolir o uso do automóvel individual. Ainda assim, são mudanças que envolvem decisões tomadas pelos indivíduos e não só aquilo que fazem as empresas e os governos.

Estas transformações atingem seis dimensões da vida cotidiana:

• Mudança no aquecimento e no uso de energia no domicílio

• Redução de descarte de resíduos sólidos e aumento de reciclagem

• Aumento de deslocamentos a pé, de bicicleta e em transporte público.

• Substituição do automóvel a gasolina ou diesel pelo automóvel elétrico,

• Diminuição de viagens aéreas

• Queda no consumo de leite e carne.

As pesquisas em que se apoia o trabalho, mostram que a maior parte das pessoas julga já estar fazendo o máximo que pode para evitar o agravamento da crise climática. Mas quando a elas se pergunta, por exemplo, quais seus planos para mudar o sistema de aquecimento domiciliar (o que é trabalhoso e caro), só a minoria afirma estar engajada nesta direção (embora este número esteja aumentando). Apenas 20% dos britânicos estão comprometidos em usar menos o carro nos próximos anos ou a diminuir suas viagens aéreas.

Além disso, substituir o carro a gasolina pelo elétrico reduz as emissões, mas não diminui os congestionamentos. Será necessário, como mostra outro relatório do Instituto Tony Blair, cobrar um imposto sobre cada quilômetro rodado para que diminua, de fato, o uso do automóvel individual. Nem é preciso ressaltar o quanto tal medida pode ser impopular e, portanto, difícil de ser adotada…

Este abismo entre o conhecimento sobre a gravidade da crise climática e aquilo que as pessoas se dispõem a fazer é generalizado e explicável tanto pelos custos da transição, como pelos transtornos que as mudanças trazem para a organização da vida cotidiana. Além disso, são transformações que exigem que os cidadãos encontrem financiamento, equipamentos, técnicos qualificados e materiais para levar adiante as mudanças. E é ilusório imaginar que basta mobilizar incentivos econômicos (que, evidentemente, são importantes, mas têm limites) para enfrentar problema.

São três as recomendações do trabalho de Brett e Lord, diante destes desafios. A primeira é o engajamento ativo dos cidadãos e dos consumidores, por mobilizações em que pessoas comuns conversam com especialistas e elaboram recomendações de políticas públicas. Na Grã-Bretanha e na França Convenções Cidadãs para o Clima desempenharam este papel. São técnicas de mobilização aplicáveis aos mais variados temas.

A segunda recomendação é a exigência de uma comunicação governamental honesta, clara e bem dirigida sobre a importância de mudar comportamentos, expondo exemplos e alternativas e, sobretudo, criando uma comunidade de práticas em que o cidadão perceba que estas transformações estão também sendo seguidas por seus pares. Os trabalhos de cientistas políticos em torno daquilo que as pessoas pensam sobre o que os outros pensam oferecem caminhos promissores para lidar com o tema.

A terceira recomendação envolve um sentido de justiça: a transição só terá sucesso se ela se inspirar na ideia cada vez mais evidente de que é impossível combater a crise climática sem reduzir as desigualdades. É o caminho que Grã-Bretanha, União Europeia e Estados Unidos estão, com imensas dificuldades e obstáculos, é claro, tentando adotar. Mas é um caminho muito mais promissor do que ignorar o assunto e fingir que é possível tapar o sol com a peneira.

*Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

 

 

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