Por ARI MARCELO SOLON*
Aquaman como símbolo da resistência e a iluminar o erro de Theodor Adorno
Para Platão, como está no Timeu, o reino de Atlântida era uma alegoria sobre aquilo que acontece quando os humanos se imaginam divorciados da vida. Ao invés de viver em harmonia com outras sociedades, outras geografias e outras espécies, Atlântis torna-se um império levado à expansão colonial, com um desejo insaciável de riqueza material.
No Timeu de Platão, Atlântida era uma potência naval localizada “para lá das Colunas de Hércules”, que conquistou muitas partes da Europa Ocidental e África 9.000 anos antes da era de Solon, ou seja, aproximadamente 9.600 a.C. Após uma tentativa fracassada de invadir Atenas, Atlântida afundou no oceano “em um único dia e noite de infortúnio”.
Nesse sentido: “Deste modo, podemos considerar abordar a narrativa sob uma de duas perspectivas: reconhecer-lhe um fundo histórico; ou considerá-la uma ficção forjada pelo próprio Platão. Além destas duas hipóteses, alguns autores consideram uma terceira que vinculam ao seu alcance alegórico. Em nosso entender, esta via não está no mesmo plano que as anteriores, na medida em que é compatível com ambas; constituirá, pois, o segundo nível de intencionalidade da narrativa, seja ela histórica ou ficcional” (Lopes, 2010, p. 54).
Agora, especificamente em relação ao gênero de super-heróis, no qual se coloca D.C. e o Aquaman, tem suas raízes na experiência judaica nos anos da 2ª Guerra Mundial.
A afirmação acima procede a partir da perspectiva empregada pelos autores e os artistas, que se usavam de símbolos para tornar visível os horrores do regime nazista, assim Mort Weisinger, filho de imigrantes judeus da Áustria, foi o criador de Aquaman.
No início de Aquaman, o herói resgata “refugiados e trabalhadores de hospitais” de um ataque de um submarino nazista. Assim, mesmo nos quadrinhos, o oceano é reconhecido como um espaço político, um campo de batalha ideológico e uma geografia de justiça e de injustiça.
O início de Aquaman é um submarino nazista enviando um torpedo a um navio sem nome, que erra, no alto-mar, sem misericórdia. O navio transporta pessoas que o regime fascista considera como descartáveis.
Segundo Walter Benjamin, alegorias florescem quando a realidade está em crise, quando os paradigmas para a compreensão do mundo ruem. Uma alegoria assinala uma era de calamidade em um modo para responder a essa crise. Ele torna visível como o oceano tornou-se um local de expansão colonial capitalista crescente. É o que se depreende e ao que nos baseamos a fim de dialogar com o gênero dos super-heróis:
A imanência é a lei absoluta desse drama. “No drama barroco, nem o monarca nem os mártires escapam à imanência” (p. 91). Para ele, a história é um mero espetáculo, e um espetáculo triste: Trauerspiel. Ele é Spiel, mero espetáculo, porque a vida, privada de qualquer sentido último, perdeu sua seriedade. É ilusão, é jogo, aparência: theatrum mundi. E é Trauer, espetáculo lutuoso, porque exprime a tristeza de um mundo sem teleologia, e porque seu enredo, por mais ilusório que seja, é um tecido de crimes e calamidades.
O espetáculo é a ilusão lúdica que reflete o mundo ilusório, e sua estrutura lutuosa está a serviço dos enlutados: um teatro para enlutados. Não existe uma instância transfiguradora que fizesse da vida mais que um espetáculo, e que consolasse o homem do seu luto. A transcendência, quando aparece, é como num jogo, e com isso se confirma como ilusória. Assim, o artifício tipicamente barroco do espetáculo dentro do espetáculo introduz na cena uma instância que à primeira vista remete a outra realidade, não-ilusória, mas essa segunda realidade é apenas uma cena atrás da cena, e, portanto, é uma duplicação ilusória da primeira ilusão (Benjamin, 1984, p. 32-33).
Durante a 2ª Guerra Mundial, Carl Schmitt publicou Terra e mar, uma história mundial de meditação, em 1942, um ano depois que o autor judeu criou o Aquaman. Terra e mar situa o oceano como o centro da história mundial.
Segundo Carl Schmitt, a história do mundo é uma história da batalha dos poderes marítimos contra os poderes terrestres, e dos poderes terrestres contra os poderes marítimos. É o que se observa nessa passagem: “A história mundial é a história da luta das potências marítimas contra as potências terrestres e das potências terrestres contra as potências marítimas. Um especialista francês especialista francês em ciências militares, o almirante Castex, deu ao seu livro estratégico o subtítulo abrangente: “O mar contra a terra“, (La Mer contre la Terre). Com este subtítulo, mantém-se numa grande tradição (Schmitt, 2015, p. 11).
Na teoria de Carl Schmitt, o oceano é uma superfície a ser conquistada por impérios, não um lugar vivo que merece reconhecimento, respeito e cuidado. A fim de sustentar essa perspectiva, recobra duas perspectivas, quais sejam, a de Michelet e a de Melville:
Só me posso atrever a fazê-lo porque sou adepto de dois grandes arautos e mensageiros destas duas maravilhas do mar, de um eloquente historiador francês, Jules Michelet, e um grande poeta americano, Herman Melville. O francês publicou um livro sobre o mar no ano de 1861, “um hino à beleza do mar e ao mundo das suas maravilhas por descobrir”, à riqueza de continentes inteiros, que recebem do fundo do mar a sua vida e o seu crescimento e que o “cruel rei deste mundo”, o homem, ainda não conquistou e explorou.
Herman Melville, no entanto, é para os oceanos do mundo o que Homero é para o Mediterrâneo oriental. Melville escreveu a história da grande baleia, Moby Dick, e do seu caçador, o capitão Ahab, num poderoso conto Moby Dick (1851) e com ele compôs a maior epopeia do oceano como um elemento (Schmitt, 2015, p. 26).
Em 1930, Hitler e outros nazistas ficaram obcecados com Atlântida, e acreditaram que a ilha perdida era a origem da raça ariana. De fato, Hitler financiou um programa para descobrir a Atlântida histórica, de modo a provar que os arianos descendiam de um poder puro e poderoso (Poll, 2022, p. 158).
Hoje, o oceano é o esgoto em que fertilizantes e petróleo são derramados. Fertilizantes químicos contém altos níveis de nitrogênio e fósforo suficientes para fazer uma bomba, e, quando jogados ao mar, levam o oxigênio ao mínimo, até mesmo zerado. Há várias zonas mortas ao longo do oceano.
A indústria de Hollywood é capaz de fazer propaganda para uma resistência a essa invasão capitalista do mar. Aquaman simboliza essa resistência, principalmente com a escolha de um personagem maori, que contesta a supremacia branca, o racismo, o capitalismo e o colonialismo. Portanto, a partir deste artigo, lançamos luz ao erro de Theodor Adorno.
*Ari Marcelo Solon é professor na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prisma). [https://amzn.to/3Plq3jT]
Referências
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
LOPES, Rodolfo. Introdução. In: PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução de Rodolfo Lopes. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2010. p. 12-68.
PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução de Rodolfo Lopes. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2010.
POLL, Ryan. Aquaman and the War against Oceans: Comics Activism and Allegory in the Anthropocene. Lincoln: University of Nebraska Press, 2022.
SCHMITT, Carl. Land and Sea: A World-Historical Meditation. Translated by Samuel Garrett Zeitlin. Candor: Telos Press Publishing, 2015.
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