Por PAULO EDUARDO DE BARROS VEIGA, LUCAS EDUARDO DA SILVA GALON & RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI*
A Filarmônica de Minas Gerais corre o risco de ser extinta, e a sua belíssima Sala Minas Gerais, de ser reduzida a mais um centro cultural do showbiz
Embora o estado de Minas Gerais seja governado por um partido denominado Novo, trata-se, na verdade, do velho neoliberalismo que remonta à tríade Augusto Pinochet, Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Inimiga da democracia, a sua política monoglota da privatização conduz à destruição do bem comum. Portanto, no contexto neoliberal, o que se pode esperar de um espaço físico de excelência para a arte, tal como a Sala Minas Gerais?
Ou, ainda, do mais importante projeto artístico em Minas Gerais no século XXI: a Filarmônica de Minas Gerais? Mesmo sendo uma das melhores orquestras da América Latina, o que, de fato, significa a Filarmônica de Minas Gerais para um secretário neoliberal de [indústria da] cultura? Eis que vivenciamos agora uma crise na música em Belo Horizonte – lembrando que krísis, em grego, significa julgamento, momento de decisão.
Não obstante o antagonismo previsível – de um governo neoliberal que tem como meta oficial a destruição das instituições públicas – cabe aqui um questionamento crítico e autocrítico, entre nós músicos e os amigos da arte, sobre as demais razões pelas quais chegamos a esta situação em que a Filarmônica de Minas Gerais corre o risco de ser extinta, e a sua belíssima Sala Minas Gerais, de ser reduzida a mais um centro cultural do showbiz.
Na verdade, com o fim da Filarmônica de Minas Gerais e com a apropriação da Sala Minas Gerais para fins empresariais, o projeto neoliberal é bem simples: cai fora a arte e, no seu lugar, entra a indústria da cultura. Mas seria a culpa somente dos políticos? Quais subsídios eles tiveram para uma maior aproximação da arte musical e sinfônica?
São três os problemas centrais que reconhecemos nessa crise: (i) as orquestras que priorizam os repertórios de indústria da cultura fora das salas de concerto; (ii) a confusão conceitual entre arte e [indústria da] cultura; e (iii) a quantidade insuficiente de bons projetos de formação musical no Brasil.
A primeira questão não diz respeito à Filarmônica de Minas Gerais, mas a outras orquestras no Brasil, cuja programação, de uns anos para cá, vem substituindo os concertos nas salas sinfônicas pelos shows a céu aberto. Entretanto, mesmo as orquestras que jamais aderiram à indústria da cultura – entre outras, a própria Filarmônica de Minas Gerais – acabam pagando o pato.
É um caso evidente de aquilo deu nisso. Com a boa intenção inicial dos showcertos (os tais shows que substituem os concertos) – ainda que justificados com a deturpação ideológica da tal popularização, como se assim a música sinfônica se aproximasse mais do público, o que não passa de uma falácia – as orquestras optaram por apresentações em estádios, praças ou praias com palcos desmontáveis. Em vista disso, instaurou-se uma cultura do desprezo em relação aos espaços mais dignos à arte.
As sonoridades sinfônicas foram amplificadas por autofalantes ruidosos – em geral aniquilando o potencial timbrístico dos próprios instrumentos musicais. No lugar das cores sutis das sonoridades sinfônicas, entram as cores espalhafatosas dos feixes de luzes. Com o som negligenciado, prioriza-se o sensacionalismo visual. Assim, numa alienação evidente em relação às linguagens da arte do som no tempo, o cerimonial nebuloso do showbiz alastra toda a pirotecnologia inebriada pelo fumacê de gelo-seco.
Fora a insalubridade do ambiente, quando a orquestra se converte à indústria da cultura, ainda por conta da rigidez da bateria socada – com seus volumes verticalizados, agressivos e acima dos mais altos decibéis – o resultado é uma indústria da cultura fake e invariavelmente pior que o próprio showbiz.
O repertório destas orquestras que aderiram à indústria da cultura tornou-se cada vez mais kitsch. Entre outros, os gêneros preferidos – em boa parte oriundos da indústria da cultura neoliberal de matiz ianque-estadunidense – têm sido o gospel (que já se apropriou até da MPB), o sertanejo universitário (que não é sertanejo nem universitário) e o funk (uma invasão cultural que agora monopoliza os ambientes outrora dedicados às artes populares brasileiras).
Como vimos, a música deixa de ser a protagonista, cedendo lugar à pirotecnologia do showbiz de indústria da cultura, resultando na compreensão, por parte dos secretários de [indústria da] cultura, de que as salas fechadas que comportam públicos menores – ainda que com a casa cheia – são simplesmente desnecessárias. Tal processo, de converter os concertos em shows ou em espetáculos de comunicação sem cuidados artísticos, influencia drasticamente as decisões dos políticos quanto ao funcionamento das orquestras no Brasil.
Na verdade, pouco importa se as salas de concerto têm boa ou má acústica. Já não se compreende o que seja ouvir o silêncio, nem contrastes, agógica, dinâmicas, timbres ou fraseados. Por fim, muitos políticos preferem os alto-falantes ruidosos e as pirotecnologias com efeitos de luzes dignos de uma boate – assim, inclusive, sentem-se mais em casa. Se o ambiente da indústria da cultura lhes é familiar, por sua vez, o ambiente das artes lhes é estranho. E a culpa, em parte, também é nossa – como dissemos, não apenas por conta da programação de showcertos, mas também pela carência de projetos que visam à formação musical – voltaremos a esta outra questão mais adiante.
Diferentemente do showbiz, a música enquanto arte requer uma escuta concentrada, a exemplo da música sinfônica, de câmara, das récitas de óperas e balés ou dos demais eventos coletivos e individuais, incluindo a música em tom popular, com vozes e instrumentos. Nós só ouvimos de fato quando somos todos ouvidos. Importa um ambiente com boa acústica para que se ouçam, dos parâmetros artísticos, não apenas os timbres e as intensidades, mas também os silêncios, bem como as dinâmicas e as articulações das frases (fraseados), as texturas (monódica, homofônica, polifônica ou melodia acompanhada), a experimentação dos extremos da tessitura (desde o mais grave ao mais agudo) e a variedade no ritmo e na agógica.
O tempo na música é existencial e heterogêneo como o mundo da vida – em meio aos princípios estruturais dinâmicos de unidade, contraste e variação. “A forma é a possibilidade da estrutura”, como dizia Ludwig Wittgenstein – portanto, jamais prefixada. Na verdade, “a forma de uma obra de arte não é nada além da completa organização do seu conteúdo, o seu valor, por conta disso, totalmente dependente deste”, como dizia Bertolt Brecht. É por isso que a separação entre forma e conteúdo, na arte, não faz sentido. Não há liberdade inventiva no conteúdo sem que seja ao mesmo tempo uma liberdade inventiva também na forma.
Já na indústria da cultura, com os seus rituais pirotecnológicos, salvo exceções aqui e ali, a métrica inflexível (sem invenções rítmicas) prevalece ainda com pulso constante sem agógica (o tempo homogêneo é rígido como do relógio, sem accelerando nem ritardando, ou seja, sem alteração de andamento), nem articulação (as notas são executadas sempre com a mesma intensidade), nem dinâmica (não há crescendo nem diminuendo), nem contraste, variação, extremos da tessitura, experimentos texturais e nem silêncios – sequer há preocupação com o timbre e a configuração sonora, pois tudo adquire um mesmo efeito padrão de alto-falante.
Como já dissemos antes, o ritual da indústria da cultura depende de toda uma sofisticada pirotecnologia audiovisual com sons e luzes, entretanto, em meio a ruídos de todo o tipo. A escuta é perturbada porque elementos não musicais dominam a cena sob os holofotes – tudo importa, menos a música. Na indústria da cultura, a forma já não é mais a possibilidade da estrutura: o formato do fonograma ou do videoclipe é prefixado.
A forma padronizada a priori, impedindo o experimento, inviabiliza também a liberdade inventiva no seu conteúdo. Numa palavra, substituir as salas de concertos por shows de indústria da cultura não é só um problema de populismo barato (não obstante os preços caríssimos dos ingressos e da produção dos shows), mas também de cerceamento da liberdade artística.
Quando surgiram os primeiros concertos convertidos em shows – a referida parafernália de luzes chamativas com sonoridades barulhentas – a crítica prudente havia sido a seguinte: “tudo bem, parabéns, saiu lindo, mas vocês precisam compensar com um tal modus operandi: há que se cuidar para que haja pelo menos 30 concertos sinfônicos dignos para cada um desses showcertos de indústria da cultura – senão a população e os políticos vão identificar as orquestras tão somente nesses espaços abertos, próprios do showbiz”.
Ainda mais trágico é quando o político faz a conta. Em função de uma aparência alienada que em nada diz da essência da linguagem, ele crê no maior sucesso da orquestra nesses espaços abertos: o público pode ser maior e se permite programar, em especial, os repertórios populistas e chamativos. Logo, por que um político investiria numa sala sinfônica de verdade?
Na Bahia, por exemplo, até hoje não há uma sala sinfônica. Quando estava na iminência de ter uma, um governador do PT avaliou que custava mais que um hospital e, assim, engavetou o projeto. Ou seja, conclui-se que os shows com microfones e alto-falantes são melhores para os intentos políticos. O que era para ser arte, reduz-se agora a um arrivismo. Os governantes atuais – da pseudoesquerda identitária à extrema direita – raramente compreendem a importância de um espaço específico para uma orquestra, tanto para ela se desenvolver quanto para ela atuar com todas as suas potencialidades, incluindo os projetos sociais visando à formação musical.
Desse modo, a culpa – reiteramos – é também dos próprios maestros e gestores que caem nessa armadilha dos showcertos. Na verdade, tem sido um tiro no pé: nós, os músicos que temos condições de atuar fora da indústria da cultura, estamos cavando a nossa própria cova – estamos travando as batalhas no terreno do adversário. Vai ter público? Agora até vai, só que depois as salas de concertos e mesmo as orquestras serão fechadas, porque, no cálculo político, conclui-se que não há sentido em manter salas sinfônicas nem orquestras. Ou, quando muito, basta levar as orquestras de indústria da cultura, uma ou duas vezes por mês, a um Parque Ibirapuera ou a qualquer show na praia que todos estarão felizes – todos morderam a isca neoliberal!
São os casos, entre tantos outros, dos showcertos BaianaSystem, Na Trilha do Rock ou Sinfonia Rock Iron Maden on Stage. Há quem parabenize o sucesso, pois, de fato, são eventos incríveis – lembrando que “evento” = “é vento”. Não é por menos, os empreendimentos da indústria da cultura são arrebanhados pelo espetáculo super bem-produzido da apoteose neoliberal na sua aglomeração massiva de elite – sim, elite, porque a indústria da cultura é, em geral, bastante rica no Brasil, invariavelmente paga com orçamento público.
Ainda assim, no tocante à programação de showcertos, sempre aconselhamos: “tomem cuidado, porque na hora em que o político fizer a conta, ele não vai querer mais as salas sinfônicas”. Dito e feito: é exatamente o que ocorre agora em Belo Horizonte. Mais uma vez, aquilo dá nisso.
Inclui-se, ainda em nossa culpa, a militância (neo)pentecostal de grande parte dos músicos nas orquestras brasileiras, os quais votam no Novo e nos demais partidos de extrema direita. De fato, (neo)pentecostalismo e neoliberalismo são um só – ou seja, esses inúmeros colegas não compreendem que a ampla privatização inviabiliza a própria sobrevivência no ofício de músico extrínseco à indústria da cultura.
Já a segunda questão diz respeito à reiterada confusão entre cultura e arte. Quem se preocupa em trabalhar crítica e conceitualmente as diferenças entre arte e indústria da cultura no Brasil? Ninguém. O músico, para sobreviver, prioriza o seu próprio salário. Até estamos trabalhando e tentando manter as orquestras, mas como dialogar com as forças dirigentes do nosso país? Se hoje há uma surdez diante das questões artísticas, em parte, a culpa é também de nós mesmos, os músicos e os maestros, pois confundimos arte com cultura e sequer diferenciamos arte popular de indústria da cultura. Não temos aqui uma mera discussão conceitual, mas de natureza da linguagem – essencial à sobrevivência do nosso ofício.
Está claro que, no Brasil, as secretarias municipais, estaduais e mesmo o Ministério da [Indústria da] Cultura deixam as artes caírem em ruínas. Precisamos compreender que as artes não são bens culturais: a cultura é ordinária; a arte, extraordinária. Ou como diria Jean-Luc Godard, “a cultura é a regra, a arte a exceção… A regra quer a morte da exceção”. Numa palavra, a cultura não abriga, mas sufoca a arte.
Por parte dos maestros e músicos, portanto, o argumento da tal “relevância cultural” é péssimo para a sobrevivência da Filarmônica de Minas Gerais. Dizer que “lutamos pela cultura” é dar argumentos justamente a quem quer destruir a orquestra.
A elite econômica, de fato, argumenta que a Filarmônica de Minas Gerais tem que se retirar da Sala Minas Gerais para que as “culturas mineiras” sejam favorecidas – a mais absurda fake news. Em matéria de [indústria da] cultura, entretanto, o argumento daqueles contrários às artes acaba sendo mais forte. Conferem até uma crítica tanto pejorativa quanto mentirosa à Filarmônica de Minas Gerais, de que a orquestra representa a tal “elite econômica” – o que não passa de uma deturpação ideológica a mais cínica, numa inversão da realidade, pois eles, empresários, é que são a elite de fato.
Mas tal falácia acaba convencendo a maioria. Qual é a tal cultura que as elites econômicas defendem? As ditas culturas mineiras? Claro que não. Eles defendem a indústria da cultura atrelada aos seus próprios empreendimentos neoliberais. Portanto, é menos arriscada a nossa posição em defesa das artes – e não da cultura. Temos que defender a arte sinfônica, a música brasileira de todas as épocas desde a música mineira do século XVIII – e não a atual indústria da cultura de matiz ianque-estadunidense.
Temos que defender os compositores de todas as épocas e lugares, bem como os instrumentistas e os cantores brasileiros de hoje, os quais tocam e cantam sem microfone em concertos sem alto-falantes – e é claro, sem gelo-seco nem pirotecnologias nebulosas. Como dito, já pensando numa matiz vietcongue, temos que travar as batalhas no terreno das artes, não da cultura.
Além disso, precisamos de uma grande Funarte atuante em todo o território brasileiro, que seja uma autarquia livre, soberana e desatrelada da [indústria da] cultura. A gestão das artes é essencialmente diferente da gestão da [indústria da] cultura. Hoje em dia, os artistas mal comem das migalhas que caem da mesa dos senhores da indústria da cultura.
Quando chamamos a atenção, de início, para o problema da conversão à indústria da cultura por parte das orquestras, a reação esmagadora nas redes sociais foi de cancelamento virtual contrário às nossas críticas, pois disseram que nós seríamos contra a tal cultura popular. A moral neoliberal em sua postura politicamente correta censura como preconceituosa toda tentativa crítico-epistemológica por uma melhor definição de indústria da cultura. Contudo, como ela é óbvia, evidente e se encontra em toda a parte (ou seja, ubíqua) – vamos sim buscar uma definição: indústria da cultura não é arte popular.
Hoje, os gêneros musicais da indústria da cultura são axé, cantores apresentadores de programas televisivos infantis, disco, easy listening ou muzak (chamada escuta fácil ou de ambiente, música de consultório, Shopping Center, supermercado etc.), funk, gospel, hip-hop, j-pop, k-pop, pop, rap, rave, reggaeton (ou reguetão), sertanejo universitário, show de DJ, techno, world music etc. Nas outras mídias, também temos equivalentes: os pintores neoliberais e as suas estampas gaiatas, os arquitetos de templos das seitas (neo)pentecostais ou do kitsch pseudoclássico das fachadas que reproduzem a atmosfera de consumo ianque-estadunidense – sem faltar os simulacros da Estátua da Liberdade –, os super-heróis de cinema da Marvel e DC, Hollywood & Bollywood, a agenda cultural de Shopping Centers, best-sellers de coachs e autoajuda pseudorreligiosa (quer em verso, quer em prosa), ciberliteratura, youtubers, influencers, streamers e ainda quase a totalidade da programação na mais respeitável imprensa.
Segundo Theodor W. Adorno, “com a consciência da classe dominante já coincidindo com a tendência geral da sociedade, dilui-se a tensão entre cultura e kitsch”. Mais que isso, com o neoliberalismo, cultura e kitsch tornaram-se um só. O kitsch predomina desde a ideologia da pseudoperiferia propagada pelo identitarismo até os ideólogos streamers, todos sincronizados com a mentalidade de classe média e vinculados à propaganda dos bancos e das cervejas fakes.
Hoje em dia, a diversidade dos gêneros musicais neoliberais da indústria da cultura não passa de uma engabelação. Não raramente, os fonogramas ou vídeos descartáveis do funk, do hip-hop, do gospel e do sertanejo universitário, por exemplo, são industrializados de acordo com as diretrizes de um mesmo e único escritório de marketing – como uma multinacional que destina a variedade dos seus produtos aos diversos perfis e nichos de consumidores em cada país – configurando precisamente a “identidade imediata produção/consumo”, definida por Karl Marx.
A nossa classificação não exclui as áreas cinzentas: um material da arte pode servir à indústria da cultura e um material da indústria da cultura pode servir à arte. Tanto a poética artística como as estratégias de marketing podem ser dinâmicas. Contudo, é sempre desastrosa a submissão dos projetos de linguagem ao marketing – em geral se perde a condição de arte e mesmo da arte popular. Por conta dessa última hipótese, há que se verificar com cuidado: os gêneros da indústria da cultura são engendrados nos escritórios de marketing nos grandes centros, sem vínculos originários com comunidades específicas nas suas singularidades. Nenhum gênero da indústria da cultura citado deve ser confundido com arte nem arte popular, ainda que seja um simulacro de uma cor local – como o axé, por exemplo.
Para que não se confundam com a indústria da cultura, são gêneros da música popular brasileira desde os tempos coloniais na sua rica multifariedade: folguedo, lundum, batuque, fofa, cantiga, moda ou modinha, moda de viola, chula, xiba, batuque etíope e demais danças africanas das diversas nações, baiana, donda, cateretê, samba e depois samba canção, choro e chorinho (denominados, inicialmente, por tango ou até mesmo por polca), coco, repentista e demais execuções de embolada, chotice, valsa-choro e valsa caipira, dupla caipira, ponteio, congada, banda de pífaros, baião, frevo, maracatu, forró e até os gêneros divulgados posteriormente pela própria indústria da cultura, sendo a bossa nova o mais importante entre eles. Está claro que, antes do neoliberalismo, havia arte na música atrelada à indústria da cultura. Em alguns casos, uma arte excepcional.
De início, até mais ou menos os anos de 1960, a indústria da cultura ainda contemplava elementos artísticos na sua produção. Mas sempre gradativamente menos – daí podermos inferir um afastamento gradativo da indústria da cultura em relação às artes. Coincidência ou não, com os meios de produção transformando as condições ideológicas, desde o advento do neoliberalismo, a indústria da cultura se afastou drasticamente das artes (em especial na música) e estabeleceu os seus próprios gêneros ou remodelou antigos. Segundo Karl Marx, “não é a consciência dos seres humanos que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência”. Numa palavra: a indústria da cultura é hoje o ser social previsto por Marx, aquele que determina a consciência da sociedade.
Partindo da condição de resistência própria da arte, as orquestras devem priorizar as salas de concertos e os teatros de ópera e de balés sinfônicos – e não os shows de indústria da cultura a céu aberto. De modo algum, entretanto, isso significa que devemos nos cristalizar enquanto instituições herméticas ou inacessíveis. Muito pelo contrário, as orquestras podem se dividir em diversas formações camerísticas e devem atender a toda demanda de concertos nos mais diversos locais em que a formação musical se torna viável na sociedade, incluindo a música folclórica ou popular – afinal, o Brasil tem quase 300 anos de história de repertório musical reconstituível. As orquestras precisam ouvir as demandas da sociedade – apenas que de modo crítico, sem perder de vista a dignidade da arte.
Por fim, temos a última e talvez a mais importante questão: no Brasil, os projetos artísticos com recursos públicos devem estar atrelados, imprescindivelmente, a processos educacionais. Com isso, construímos um projeto mais fecundo de futuro, pois, se pensarmos daqui a 20 ou 30 anos, teremos uma nova geração de políticos, os quais, com maior probabilidade, terão vivenciado alguma educação artística de qualidade.
Quem poderá reverter o atual quadro em nada favorável para as artes? Os pedagogos culturalistas? Entendemos que não. Essa tarefa cabe a nós, pedagogos artistas.
Nós temos que estar à frente dos projetos de educação artística – ou em nosso caso específico, temos que ser responsáveis pela educação musical das novas gerações. As bases desses possíveis processos estão enfraquecidas. Então que fique claro, se as universidades atuam na formação de profissionais, estamos nos referindo aqui a uma formação pré-universitária que atinja um amplo público de crianças e adolescentes – inclusive, entre aqueles que daqui a alguns anos possam ter a caneta na mão e desenvolver políticas favoráveis às artes.
Temos que ter a humildade, enquanto artistas, de reconhecer que a culpa pela atual crise é em grande parte nossa, pois não estamos viabilizando os processos educacionais em arte – os quais cumprem a missão de transformar a sociedade para melhor.
Então, aqueles que se voltam aos seus próprios assuntos particulares (em grego, idiotikós) ou restringem a sua própria atuação como músicos da práxis (interpretação-execução musical) sem cuidado ou atenção para com a realidade do país – os assim ditos que querem apenas tocar bonitinho para receber o salário – ou seja, os colegas alienados das questões sociais e da questão maior da formação educacional por meio da arte, que eles não reclamem depois, quando os nossos empregos sumirem no Brasil.
Essa lição de casa cabe a todos os corpos estáveis musicais – mesmo a Filarmônica de Minas Gerais demorou para iniciar a sua atuação educacional – além dos projetos de formação atrelados às extensões universitárias e demais projetos sociais com educação artística. A educação artística e musical deve ser prioritária no Brasil. Nós devemos lutar por esta bandeira em todas as frentes.
*Paulo Eduardo de Barros Veiga, violinista, é doutor em estudos literários pela UNESP de Araraquara com pós-doutorado em música pela USP de Ribeirão Preto.
*Lucas Eduardo da Silva Galon, compositor e maestro, é professor do Departamento de Música da USP em Ribeirão Preto e coordenador do projeto USP Música Criança em São Joaquim da Barra.
*Rubens Russomanno Ricciardi é professor titular do Departamento de Música da USP de Ribeirão Preto e maestro da USP Filarmônica. Autor do livro Contra o identitarismo neoliberal – um ensaio de Poíesis Crítica pela apologia das artes (Contracorrente).
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